[:pb]Nota da tradutora d’As Onze Mil Varas, de Apollinaire[:]

[:pb] 

quentinho da gráfica, já nas livrarias.  feliz de traduzir – e ver o livro pronto! – um autor tão livre e inventivo com as ideias e com as palavras, nessa ordem e vice-versa.  uma nota da tradutora pra me explicar, me absolver desse ofício tão desafiador, estimulante e inspirador.  e que dá um trabalho ! . . . . .

 

sobre erotizar a própria linguagem

na orelha do livro, por Contador Borges: “em As Onze Mil Varas, as peripécias libertinas não se fazem sem erotizar a própria linguagem (o que se deixa ver muito bem na tradução de Letícia Coura), produzindo um efeito de significância, aquilo que Roland Barthes define como produção sensual dos sentidos.  É nesse ponto que a experiência erótica e a poética coincidem”.

 

 

Nota da tradutora

Nota do tradutor já é estranha em si, já que o tradutor ideal talvez seja aquele ser invisível, que cumpre quieto seu trabalho de fazer chegar em seu idioma as palavras do autor a seus leitores e ponto. Mas o fantasma do tradutor traidor, a angústia da consciência do perigo de se perder um sentido, um duplo sentido, triplo, um jogo, uma invenção, uma possibilidade… parece impor que se apresente uma justificativa, um álibi, ou ao menos que se explique esta ou aquela decisão, a escolha de uma certa palavra, vírgula, tempo.

Me faz lembrar um dramaturgo alemão que afirmou traduzir um autor que admirava justamente porque não falava seu idioma, o francês, e queria compreendê-lo em sua própria língua. Ao que o autor respondeu muito feliz que queria mais era ser reinventado por seu tradutor, já que a admiração era recíproca. Ok, situações como essa não se repetem tanto, mas são uma lembrança estimulante pros piores momentos.

Na verdade sabemos que as palavras têm vida própria, escolhem onde querem estar, que sentido dar às coisas, ações, sensações, sentimentos. O que fazemos é humildemente dar passagem a elas, mesmo que seja apenas de um idioma pra outro.

Então, minha defesa. O que me trouxe a esta árdua, ousada e fascinante tarefa de tradução foi primeiro a música e quase junto o teatro.

Há muitos anos introduzi em meu repertório uma canção de Boris Vian, e me frustrava quando cantava em francês e percebia que ninguém se divertia tanto com a letra como eu. Aí sim, me sentia traindo o autor. Fiz então uma primeira versão para o português que acabou levando a outras, que acabaram virando um cd, que acabou virando um espetáculo meio cabaré que fizemos na abertura dos Satyros na Praça Roosevelt em São Paulo, com direção de Rodolfo García Vazquez e com o ator Ivam Cabral como um anagrama de Vian, o pianista Beba Zanettini e o percussionista Vítor da Trindade como parceiros de cena. As palavras cantadas e faladas em português e francês se encaixaram bem, era tudo música.

Paralelamente, conheci através da poeta e diretora de teatro Beatriz Azevedo o dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès, e aqui a necessidade da tradução se deu pelo projeto de montar um espetáculo, que resultou em um mergulho na obra dele, com o estudo de várias peças, entrevistas, artigos, críticas, onde tive a sorte de ir lapidando as traduções a partir das leituras de atores como Maria Alice Vergueiro, Fernando Peixoto, Magali Biff , Adílson Barros e tantos outros que participaram do processo.

Tudo isso pra situar que o que sempre me guiou na tradução foi a música e a teatralidade do texto. A vontade da palavra viva. E neste caso específico d’As Onze Mil Varas, de Guillaume Apollinaire, o ritmo das cenas.

As barreiras da época em que foi escrito, do tom de um outro idioma, tentei transpor deixando o ritmo e a necessidade das cenas falarem por si. O jogo entre a liberdade e violência descaradas e as formalidades ‘civilizadas’, o uso de expressões populares ou de época, gírias, deram o tom do autor aos diálogos e narrativas, e a dica para a tradução. E nos momentos mais quentes, uma pequena fugida do esmero nas concordâncias gramaticais. Pra não perder o compasso.

E a opção por algumas traduções literais com pequenas notas explicativas. Como não traduzir literalmente o ato de fazer ‘pétala de rosa’ em alguém? Mesmo que tenha sentido a necessidade de explicar a expressão que se refere a uma lambida no cu, optei por deixar a beleza da imagem quase falar por si.

Que essas pequenas enormes traições então continuem, se assim quiserem, e que venham mais libertinos franceses, com muita música e ação.[:]

Leave a Reply