O mais que perfeito

*conto do livro Então é isso?!  que há de existir

 

O MAIS QUE PERFEITO  

(pétala de rosa)

 

Andava pensando porque não fodera mais na vida.

O mais que perfeito. Seu marido, o mais que perfeito. Um homem exemplar, quarenta e cinco anos juntos, três filhos, sete netos. Um mau negócio do filho, que confiara num sócio muito honesto, ah, meu pai que dizia se alguém diz de outro alguém que fulano é muito honesto, pode desconfiar. Ou se é honesto ou não é. E ele confiara. Se fodera.

Mas vai entender os caminhos que a vida nos apresenta. É só saber ver, aprendera naqueles livros de autoajuda que não ajudaram muito, e até ocuparam um tempo que pena que não usara para outros fins, mas o presente é o que interessa, o tempo perfeito já fora, as pessoas teimam em dizer que é a juventude o mais que perfeito tempo, mas pra ela o mais que perfeito já era. O negócio é agora.

Perderam tudo. Até o sítio foi na falência do filho, e agora pra não perder o apartamento onde moram ela voltou a trabalhar. É, sessenta e nove anos e daí, sentia-se bem e animada. Seus anos de colégio de freira estudando francês finalmente lhe seriam úteis. Conhecera nas aulas de yoga um rapaz muito simpático que falava sempre com ela, tinham alguns autores preferidos comuns, falavam de Paris, da neve, histórias de reis, museus, que ela conhecera em viagens de lua de mel, bodas de papel, prata, e ele não, nunca fora, mas conhecia bem dos livros que lera. Ele começou a tirar dúvidas com ela, contar dos textos novos, dublagem de filmes, documentários, palestras. Ela comentara com ele que outrora ensinara francês, ele perguntou se ela fazia traduções. Era a oportunidade.

Até bula de remédio traduziu. Aos poucos ele foi lhe passando textos mais complexos. Artigos de revistas femininas, documentos de estrangeiros para imigração, currículos para bolsas de estudo, narração de documentários, diálogos de filmes. Até que um dia ele chegou com um livrinho pequeno, velhinho, que encontrara por acaso em um sebo. Entregou a ela e pediu que lesse. Que dissesse depois o que achara. Se topava traduzir.

Nos dicionários que tinha em casa não encontrava nada daquilo. Já há alguns anos frequentava uma lan house para terceira idade, com monitores que orientavam os velhos que não se davam muito bem com o mundo virtual. Ali encontraria o que procurava. Dicionários virtuais.

Sites pornográficos ali eram discretamente repelidos, mas ninguém suspeitara do conteúdo do que andava buscando. No início era o verbo. Fora. E foi assim que foi descobrindo palavras que não conhecia, que significavam atos que não praticara, talvez porque não havia palavras que os significassem em português? Até o latim das missas de outrora era mais rico em vocabulários libertinos.

A primeira palavra pela qual se apaixonou, e na sequência pelo que significava a palavra, foi godemichê. Em algum lugar encontrou consolo, mas não significava o que queria dizer. Vibrador muito menos, já que o godemichê tradicional não vibrava. E outra, não precisava de consolo, queria era novas ideias. Ainda tinha bastante força e ritmo nas mãos, preferia o sistema biomecânico, ou seja, com as próprias mãos, sentia mais vigor. E era um ótimo exercício para os braços. E o significado, dá-me alegria, dá-me prazer, me faz gozar, tudo isso de bom e ainda estava aprendendo latim! Sim, vinha do latim, godemichet, rejouis-moi, não se aguentou, contou pro marido, que já observara a mudança na esposa, cada vez mais animada, acordava dizendo que tivera um sonho bom, andara descobrindo coisas, aprendendo…

Descobrira uma expressão, e não achava paralelo em português. Sentiu-se novamente uma ignorante no assunto, quarenta e cinco anos de casada e o marido não era assim um especialista nem em expressões libertinas francesas e infelizmente muito menos nos atos que elas podiam descrever. Faire feuille de rose, que poético, fazer pétala de rosa, só de brincadeira pedira a seu marido à noite, para fazer-lhe um pouco de pétala de rosa. Ele não entendeu, mas deu-lhe um beijo de borboleta muito carinhoso, de que ela sempre gostara muito quando mais jovem, um piscar de olhos sobre a bochecha, chegara até o pescoço já com uma expressão quase safada, J. era mesmo um romântico. Como explicar a ele que estava descobrindo novas expressões, e que esta poética fazer pétala de rosa era nada menos que dar ou receber uma lambida no cu? Perguntou às amigas da aula de pilates, mas nenhuma sabia o que era, e ela fingiu ainda não saber também. Passou então a imaginar quantas pessoas fariam pétala de rosa em seu prédio. O casal vizinho? Ouvira os gritos da mulher, uma cinquentona gorda sempre de cara boa, será? Pensou que sim, eles deviam saber fazer muitas coisas sem palavras em português para definir. E o casal de cima, dois homens, esses provavelmente faziam muita pétala de rosa, o nome já significava, casal gay, estavam sempre alegres, animados. Será que só ela e o marido não faziam pétala de rosa?

Estava entusiasmada, aprendera outra. Faire minette. Que gracioso. Foi descobrir em dicionários de gírias francesas do século XVII. Chupar buceta… que interessante, por que não temos uma expressão assim em português? Fazer minete, fazer mimi para os íntimos. Redundante. Apesar de não conhecer muito a prática, tinha certeza que isso sim, muita gente fazia. Será que só não ela e seu marido? J. sempre fora muito respeitador. Ela fora feliz assim com ele, sentia-se preservada das maldades do mundo. Mas agora lendo tudo aquilo não podia evitar de sentir uma certa curiosidade. Se todas aquelas palavras e expressões existiam, é porque deviam dar alegria às pessoas. A exemplo do godemichê. Me dá alegria, prazer, me faz gozar! Sim, ter um godemichê, fazer minete com as amigas? Ou pedir pro marido? A essa altura da vida, qual o problema em experimentar novas práticas? Só os dois em casa, nunca gostara muito de pôquer bisca ou truco, por que não experimentar as novas palavras na prática?

Resolveu tentar.

O marido também se ocupava com algumas aulas grátis na vizinhança, mas separado dela, pra sentir saudades e encontrá-la à noite pro jantar. Se viravam como podiam com o excesso de tempo e a falta de dinheiro.

Comprara um vinho. Gastara quase tudo o que recebera com a última tradução, justamente um conto anônimo francês do século XVII. Ou de agora mesmo, não tinha certeza do alcance da cultura nem do caráter de pesquisador de seu colega de yoga, mas também pouco se importara. O que contava era o conteúdo, a inspiração que dera e, claro, os trocados suficientes para comprar aquela garrafa. Aquelas, eram duas. Sentia-se na Paris seiscentista, ou uma camponesa do sul da França, trabalhando nas vinhas, pisando as uvas, de sol a sol nas plantações, e à noite em festas bárbaras. Foi contando algumas dessas histórias para o marido, já na terceira taça de vinho, resolveram se recostar num canto mais confortável da casa, à luz de velas do jantar, tudo mais bonito, quase rodando, um calor vindo de dentro, do vinho, da pimenta da comida, das velas…

Vão descobrindo prazeres, lugares nunca antes tocados. Tinham tempo! Um belo dia, depois de gloriosos momentos juntos, o godemichê, sucessivas minetes, ela soltou esguichos no rosto do marido. Na hora ficara envergonhada, achou que estava tendo problemas de falta de retenção urinária, foi ao médico. Descobriu que estava começando um novo momento em sua vida, ejaculara! sim, as mulheres ejaculam, esporram, mas ela não conhecia nenhum termo específico pra isso, em português – ao menos em seu círculo de amigas – nunca ouvira falar nada parecido. Ou seja, não existia. Viu que em francês usavam muito o termo descarregar, para ejaculação masculina e feminina, e aquela passou a ser a senha entre ela e o marido. Acho que hoje quero descarregar um pouco… falavam isso na frente dos filhos, netos, de amigos, ninguém entendia ou não percebia mesmo o sorrisinho safado dos dois. Anoitecera. Seria mais uma noite de delícias.

E mais tantas palavras a aprender.