Dorival e o grito da Mar

o teatro mais uma vez. e a música. viver, reviver, desremoer, viver uma catarse e fazer tudo virar arte, teatro, música. mais uma vez.

conheci a música de dorival caymmi principalmente através de minha mãe, que sempre amou aquele vozeirão, as canções de mar e pro mar. pramar. ela contava sempre da maravilha que foi uma vez em Copacabana, e lá estava, em algum daqueles bares restaurantes da beira da praia, lá estava em uma mesa qualquer o Dorival com seu violão, cantando uma de suas pequenas imensas obras de arte canção.

muitos e muitos anos depois desses tempos, muitos anos já que minha mãe está ouvindo Dorival na música das esferas, recebo um convite pra cantar uma de suas canções. temporal que se aproxima. Dorival e A Mar.

em cada respiração, cada nota dessa canção, ali está minha mãe, e a dor da minha mãe. conheço bem outras dores, mas essa não vou experimentar nessa vida. a dor de perder um filho. o filho.

meu irmão meu amado irmão se matou tão jovem. agora que sou velha guarda vinte e três anos parece quase uma criança. e eu então, que tinha dezoito. que virei adulta vivida ali bem rápido. meu irmão adorado, que saudade.

daí ganhei esse presente de meus tão amados parceiros no teatro. cantar com eles, cantar a dor de minha mãe, minha dor de irmã, a dor de todas as mães que perdem seus filhos. das mães de tantos vicentes que se vão tão cedo.

tem alguns momentos da vida de que a gente se lembra sempre como se fosse hoje. o grito de dor de minha mãe quando soube do acontecido. contaram pra ela no quarto lá longe, nós na sala já sabíamos. e aquele grito.

esse grito está dentro de mim até hoje. ele já quase apareceu em uma cena lá mesmo no teatro, mas era um grito surdo. agora, tantos e tantos anos depois, tantas encarnações, esse grito de minha mãe sai de mim como música ali na pista do Oficina. numa linda canção de Dorival Caymmi. vai sem o vozeirão, não é beira-mar em Copacabana, mas vem lá de longe também. lá daquele quarto, do fundo do quarto de todas as mães do mundo.

Seminais Tecnizados

3 maneiras de criar e estar no Teatro Oficina.
num dos projetos gigantes do Oficina – as Dionisíacas em Viagem – caiu pra mim a função burocrática de organizar os relatórios vindos de todas as áreas: atuação, música, vídeo, direção de arte, figurino, direção de cena, produção, luz, divulgação, dramaturgia, corpo, voz, e mais os que eu esqueço agora. trabalho enorme que acabou sendo tão interessante pela possibilidade de ver um mesmo trabalho por tantos ângulos diferentes. aqueles relatórios que vazavam paixão foram a melhor aula de teatro que tive na vida.
esses vídeos indicados abaixo me deram de novo um pouco desse gosto. uma viagem deliciosa pelo universo dos figurinos pela prática amorosa da nossa diva camareira Cida Melo, os labirintos da tradução de textos com tantos sentidos e a operação em cena da nossa poliglota Maria Bitarello, e um pouco do samba no Oficina pelo cavaquinho e voz desta que vos escreve.
entra lá! esses 3 saem agora, mas já tem também o da nossa arquiteta cênica Marília Piraju, e em breve novos ângulos virão!
boa viagem ! ! !

 

Realizados no Teatro Oficina, dentro dos Seminais Tecnizados da Universidade Antropófaga. Vídeo-aulas contemplada pelo PROAC DIRETO Nº 39/2021 – FOMENTO DIRETO A PROFISSIONAIS DO SETOR CULTURAL E CRIATIVO

TV UZYNA apresenta três videoaulas de uma vez já disponíveis no nosso canal do YouTube – vídeos mais abaixo, continue lendo.

1. NAS ALTURAS DO TEATRO OFICINA
Cida Melo
, camareira do Teatro Oficina desde 1999 até hoje, participou neste período de todas as montagens da Companhia. Responsável pelo enorme acervo de figurinos do Oficina, Cida fala aqui de seu trabalho no teatro, desde a organização dos figurinos de cada montagem, conservação, manutenção, organização da lavanderia, até sua relação com atores e atrizes durante as temporadas dos espetáculos. E ainda vamos conhecer melhor essa personagem vital para o teatro em seu canto de trabalho: Nas Alturas do Oficina.

2. O SAMBA NO TEATRO OFICINA
Letícia Coura 
e seu cavaquinho nos convidam para um passeio pela história do Teatro Oficina através do samba. Há mais de 20 anos atuando na Companhia como cantora, compositora e atriz, Letícia apresenta um breve repertório de sambas do cancioneiro do Oficina, parte dele composto – por ela e outros autores – especialmente para espetáculos como Os Sertões, Bacantes e Acordes.

3. TRADUZINDO O INTRADUZÍVEL
Maria Bitarello
, tradutora do Teatro Oficina desde 2015, traduziu e operou as legendas dos espetáculos montados pela companhia até 2020. Neste breve episódio, Maria conta um pouco sobre a prática de traduzir durante os ensaios, as difíceis escolhas do tradutor-traidor, as atualizações e alterações do texto ao longo da temporada, a concisão do formato legenda e as sutilezas da operação ao vivo.

câmeras Igor Marotti
edições Kael Studart
artes Igor e Kael

Assista também à videoaula da Marília Piraju:
ARQUITETURA CÊNICA DO TEAT(R)O OFICINA projeto de Lina Bo Bardi y Edson Elito SEMINAIS TECNIZADOS #1

 

Meu adeus pro Gordo. Ou até breve . . .

Descobri outro dia que estou involuntariamente escrevendo um obituário. Tem morrido tanta gente, e numas dessas mortes vem o impulso de escrever, relembrar, fazer viver mais e sempre. Algum encontro, real ou imaginário com aquela pessoa que foi animar outros mundos, impressões de sua passagem pela nossa vida, seus rastros, sua energia, inspiração.

Ontem foi a vez do Jô. Engraçado que o chamo assim sem nunca tê-lo conhecido pessoalmente, com intimidade, eu e tantos e tantos brasileiros que cresceram assistindo a seus programas, rindo dele e de seus personagens, rindo de nós mesmos, desde criança.

Uma vez quase participei de seu programa, eu e o Revista do Samba, parceiros de boa parte de uma vida inteira. Conhecemos, nos idos de 2002 no Embu das Artes, a cantora egípcia Natacha Atlas. Ótima cantora, e super gente boa. Estávamos – o trio Revista do Samba – tocando no Garimpo, um bar restaurante – e agora também pousada – alemão, em troca de uma dívida eterna que temos com o simpático dono Hörst. Graças a ele conseguimos uma ida a Berlim que permitiu que gravássemos nosso primeiro álbum lá. O cara gosta mesmo é de rock, mas se animou com nosso samba misturado e nos levou pra tocar em sua festa de despedida dos trabalhos formais com gente do mundo inteiro. Que festa! Mas não é disso que eu vim falar aqui.

Nessa noite, no Garimpo, lá estava a cantora Natacha, por conta de um parente inglês que adotou o Embu como lar. Ela tinha vindo ao Brasil divulgar seu novo álbum, aproveitar que estava bombando por aqui por conta de uma música sua na novela O Clone, da Globo. Na época nem tínhamos gravado ainda nosso primeiro álbum. Mas ela gostou de nós, do nosso som, improvisamos juntos, ela ao microfone cantando em egípcio com nossas harmonias, melodias e diferentes levadas de samba. Distinguíamos aqui e ali em suas palavras um Ya Habib em escalas árabes, que se casaram muito bem com o nosso samba, e que agradaram aos poucos mas fiéis frequentadores do bar naquela noite fria. Foram momentos deliciosos, música e assuntos diversos com ela, o tio inglês, o anfitrião alemão, e muito samba egípcio esquentando o Embu das Artes.

Ela então se empolgou e nos convidou para repetirmos a parceria em sua participação no Programa do Jô, um de seus compromissos profissionais dos dias seguintes em São Paulo. Seus produtores não apreciaram tanto a proposta, já que estavam aqui pra que ela falasse de sua participação na novela, de sua música que estava bombando no país, da sua carreira internacional. A ideia dela cantar num programa de grande audiência no maior canal de TV do país com um trio de samba desconhecido não lhes pareceu muito boa. Mesmo assim, ela insistiu para que fôssemos ao programa, que ela tentaria nos chamar ali de surpresa, e ver se colava. E lá fomos nós, agora nem lembro se levamos instrumentos, acho que não, senão teria uma lembrança menos feliz da situação. Que só não foi uma roubada daquelas pra rir da gente mesmo anos depois porque o programa era divertido ali da plateia também, e depois rimos juntos de tudo e trocamos mais ideias sobre nossas músicas, viagens, costumes, aventuras.

Outro momento em que estive no mesmo ambiente que o Jô foi na casa de uma grande amiga, a atriz Regina Braga, em seu aniversário há uns anos atrás. Foi uma festa em que sobramos no final, pr’aqueles últimos drinks, numa intimidade gostosa de quem sabe a hora de tomar uma boa cachaça. E momentos antes lá estava o Jô na sala, e percebi que estava emocionada por estar ali respirando o mesmo ar que todos aqueles personagens que haviam povoado minha vida durante tantos anos. Ele emanava uma energia que enchia todo o ambiente, como uma luz que deixava todos ali mais animados.

E ontem estava eu lá na estreia de São Paulo, em que Regina canta seu amor pela cidade que ela escolheu pra viver, e ao final do espetáculo, a homenagem ao Jô. Que normalmente estaria ali celebrando a vida conosco, mas que naquela noite não pudera comparecer. Celebramos sua vida da melhor forma, com aplausos quentes ao final de um belo espetáculo.

Escrevo tudo isso pra fazer presentes esses pequenos e preciosos momentos. Saborear um pouco mais essas pequenas grandes impressões que experimentamos, e que já já voltarão ao turbilhão da vida. Todas essas homenagens que vêm bombando pela internet só confirmam a presença dele em nossas vidas todas, e na minha em particular, com tantos personagens que vi e acompanhei na infância e dos quais me lembro até hoje, com destaque para a cantora Norminha, “paz, amor, som, e Norminha ! ! ! wow ! ! ” ou algo assim, que repeti e repeti, e também pra Nanayá com Y, que inspiravam meus showzinhos em casa, com destaque para o PicoLetsQuel, wow wow wow wow!!!

E depois ainda os programas de entrevista. Se alguém ainda acha que dá pra ser neutro nesse momento político do país, ou ainda acreditar que pode ser artista e de direita, torço pra que se depare com trechos de alguns programas compartilhados pelas redes, como com o patético lavajatista Dallagnol, ou na contracenação com um inesperado bolsonarista da plateia, nas conversas sobre o impeachment, e tantos outros bons momentos vividos nas madrugadas televisivas. Não estava acompanhando mais esse momento do Jô, e deu uma esperança na humanidade de ver como ele se posicionava durante as entrevistas. E pra terminar a manhã com chave de ouro, li ainda uma carta dele aberta ao presidente, dando uma esclarecida sobre o nazismo. Sempre com humor, mesmo nesses assuntos não muito engraçados.

Mais um artista que se vai e nos deixa nesse mundo que atravessa esse momento tão esquisito. Também momento de grandes transformações. Pegando emprestada a frase do filósofo italiano Antonio Gramsci, que trouxe pra casa num cartaz da última Bienal de São Paulo e que mantenho na porta da cozinha: “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros”. E aqui continuamos nós no mundo agonizante, agora tendo que contracenar com os monstros sem o auxílio luxuoso do aliado humor do Jô.

Que a gente continue aprendendo com ele a desconstruir esses monstros, de preferência com humor, a arma mais poderosa. E a seguir seus exemplos de colocar em prática as palavras de outro palhaço, o da burguesia, como se autodenominava o antropófago Oswald de Andrade. Transformar o tabu em totem. E Viva o Gordo ! ! !

Esse samba dá história . . . ou vice-versa

tudo preparado pra começar as gravações dos 20 anos de Revista do Samba no Teatro Popular Solano Trindade, no Embu das Artes – março/abril 2021

Tenho esse personagem sambista que me dá muitas alegrias nessa vida. E estamos comemorando – dentro do possível que esse verbo possa ter de sentido nesse momento – 20 anos de Revista do Samba, nosso trio criado lá atrás, por amor ao samba, à amizade, e ao prazer de tocar e cantar junto. E que hoje, talvez mais do que em toda a nossa trajetória, é tão importante pra gente lembrar quem a gente é, que cultura tão rica que temos, que música maravilhosa, e sim, que pessoas legais e criativas, que criaram esse gênero, essa música, essa dança, com uma história tão diversa quanto interessante e instigante.

É um pouco de tudo isso que procuramos passar com esse projeto, com essas apresentações, lives, shows, não sei que nome dar a isso que fizemos, um trio de dois no mesmo lugar e um em outra cidade, usando e abusando do que conhecemos dessas tecnolorgias – sim, foi assim mesmo que escrevi – atuais, pra poder cantar e tocar, e chegar às pessoas.

Esses são os movimentos – 6 ao todo, como pedia o edital –, cada um abordando um trabalho, um álbum, cada um com um repertório diferente, tendo no último nosso gran finale das mais mais, selecionadas entre as tantas que tocamos tantas vezes nas nossas tardes e noites de samba e outras aventuras. Esse texto é um convite pra conhecer um pouco das histórias dos sambas e dos sambas das histórias, que fomos entrelaçando com as nossas, e pra ver e ouvir a gente lá no YouTube – Revista do Samba Oficial. Continuo acreditando que é com essa alegria que vem lá do fundo da nossa cultura e alma que vamos conseguir atravessar esses tempos de prov(oc)ação.

20 anos Revista do Samba - flyer

Beto Bianchi, Letícia Coura e Vítor da Trindade, no início dos trabalhos do trio, ano 2001. foto de Paulo Sommer, no estúdio PAC do percussionista Dudu Tucci, em Berlim.

Esse projeto nos possibilitou também revisitar algumas histórias que fomos colecionando nesses 20 anos de samba, de viagens e shows pelo mundo. Falo um pouquinho delas a seguir.

 

As primeiras viagens

Sempre associei nosso início das viagens – e da maravilhosa carreira internacional! – ao 11 de setembro. Acordei com um telefonema do – agora extinto – Ministério da Cultura: “Letícia Barbosa Coura? você não vai querer as passagens?” Custei a entender. Era 2001, eu estava no meio do processo de ensaios do espetáculo Bacantes do Teatro Oficina. “Duas passagens, Revista do Samba, é isso?”, a voz perguntou do outro lado. Sim ! ! respondi já então animada, lembrando da nossa tentativa no edital com o pedido de duas passagens para Berlim, para nos apresentarmos como Revista do Samba. Vítor já estava na Alemanha, as passagens seriam para mim e para o Beto. Foi uma surpresa, super em cima da hora, e ficou a impressão de que conseguimos as passagens porque alguém provavelmente havia desistido de alguma viagem, por conta do medo que se instaurou no mundo logo após o ataque às torres gêmeas. E assim fomos, intrépidos, para o outro lado do Atlântico, dar o pontapé inicial para uma bela e promissora história de shows em vários países, e participações em muitos festivais de música por esse mundão afora.

 

Paquistão e o Rasta-pé do cercadinho

Revista do Samba no World Performing Arts Festival em Lahore, Paquistão, 2006.

Fomos parar no Paquistão em 2006. Esses telefonemas em horários inusitados com surpresas realmente surpreendentes. World Performing Arts Festival, realizado em Lahore, quase na divisa com a Índia, reunindo música, teatro, teatro de bonecos, poesia, dança. Foram 10 dias de muita arte, muita troca com artistas de muitos países diferentes, e uma enxurrada de cores, sons, idiomas, comidas. Por indicação dos organizadores do festival, fomos a uma cerimônia sufi, na companhia de um bailarino francês, alguém da embaixada brasileira e um simpático paquistanês que se dispôs a ir como nosso guia, nos iniciando nos mistérios locais. Eu era a única mulher do grupo, e passei por uma experiência que felizmente acabei conseguindo transformar em samba, o Rasta-pé do cercadinho. Como o nome já sugere, tive que assistir à cerimônia separada de meus companheiros homens, sentada sozinha num cercadinho, onde os participantes deixavam seus sapatos. Pra saber um pouco mais da história, só ouvir o samba e deixar o esqueleto balançar…

 

Samba no Monte das Oliveiras

RDS Monte das Oliveiras

Em 2005 fomos tocar em Israel. Eu estava em cartaz com Os Sertões, no Teatro Oficina – 26 horas de peça no total –, e a vida foi bem alucinante nessa época. Me lembro de pagar uma daquelas massagens de aeroporto, porque ia viajar a noite inteira depois de fazer uma peça de 6 horas… Daí já dentro do avião, antes de apagar e acordar do outro lado do Atlântico, descobri no guia que tinha comprado que Tel-Aviv, onde íamos nos apresentar, era uma cidade à beira-mar… ignorâncias à parte, na hora de passar na alfândega, acho que pra entrar no país, nos pararam com as bagagens. Um rapaz bem jovem – como eram os policiais e militares em geral que vimos em Israel – queria saber o que era aquele objeto estranho, perguntou se era algum tipo de arma. Vítor explicou então que era um instrumento musical, e não pareceu convencer o funcionário da imigração. Contamos que éramos um trio brasileiro que tocava samba, e nada. Daí Vítor pegou o berimbau e começou a tocar, e logo outro rapaz, agora com o uniforme do exército, se aproximou animado e começou a ensaiar uns passos de capoeira. “Conheço, é capoeira!”, e logo puxou conversa com o Vítor sobre essa dança luta brasileira, várias pessoas se aproximaram pra ver os passos e ouvir aquele instrumento estranho em ação. Por um breve momento aquela parte do aeroporto se descontraiu com um pouco de música e dança.

 

Do outro lado do mundo

em frente ao Palácio Imperial em Seul, Coreia do Sul, 2009.

Em 2009 fomos convidados para um festival em Seul, na Coreia do Sul. E de lá fomos tocar em uma outra cidade coreana, à beira do mar do Japão, Gangneung. Tocamos num belo teatro e também no mercado de peixes, lugar maravilhoso e indescritível, com tantos peixes que nunca tinha visto na vida, muito menos saboreado… e no jantar da noite pós-show dei o meu primeiro fora ao tentar escolher alguma iguaria da cozinha coreana, sem entender nada no cardápio, e perguntei se eles tinham sushi – de peixe, já que tínhamos acabado de conhecer o mercado. Ao que o produtor da cidade com uma cara não muito amigável respondeu que sushi de peixe era ‘coisa de japoneses’. Me senti uma daquelas pessoas que muito animadas chegam no Brasil e perguntam da capital, Buenos Aires… Mas para compensar minha gafe, tinha aprendido no camarim, com uma moça que nos acompanhou na cidade, a cantar uma canção coreana, da qual consegui cantar um pedaço pro nosso anfitrião, melhorando um pouco minha imagem com ele. E quando voltei pra peça da época, Cacilda!! – é, continuava na minha vida dupla entre o teatro e o samba –, ainda consegui fazer o público cantar em coreano comigo. Tinha uma cena no meio do segundo ato, que servia pra acordar parte do público desavisado em uma peça de 6 horas, em que eu ‘interpretava’ uma preparadora vocal que fazia um aquecimento com o público. Normalmente eram exercícios de voz, mas nesse dia o público – e elenco – cantaram comigo: A ri ranga há, ri ranga há ! ou algo assim …

E a experiência na Coreia do Sul ainda deu outro samba, o Kamzahammidá, como conseguimos dizer obrigada em coreano..

 

Saara, Atlas, Marrakesh . . .

Letícia Coura e Vítor da Trindade em Rabat, Marrocos, 2007. Em frente ao cartaz anunciando o show do Revista do Samba no Festival Mawazine.

Depois do nosso maravilhoso show em pleno Saara, resolvemos continuar no Marrocos, aproveitar a oportunidade e ir conhecer Marrakesh. Sim, Marrakesh!, a cidade dos hippies, a terra prometida dos doidões, do imaginários de príncipes, reis, califas, camelos… continuaríamos por nossa conta – e risco –, e logo percebemos a mudança de patamar quando o táxi chegou. Era um carro bem pequeno, e nós com todas aquelas bagagens de músicos, olhamos meio desanimados pro cara do hotel. Ele logo então se prontificou e chamou outro táxi. Em seguida chegou um Mercedes Benz, e pensamos, uau!, nos demos bem ! entramos no carro animados, com nossas malas, instrumentos, íamos até a rodoviária pegar um ônibus que desceria os Atlas até Marrakesh. Mas o caminho até a rodoviária era longo, e logo percebemos que o táxi não era só pra nós, e parecia pegar todo mundo que estava no caminho, humanos e mais alguns animais como galinhas e cabras. E malas. . . .

E em Marrakesh, ao lado da praça . . . , precisávamos de uma informação pra nos localizarmos por ali, e eu sabiamente perguntei pra uma moça que passava por nós. NiquI ela começou a nos indicar como chegar no local que procurávamos, passou um rapaz muito falante, simpático, dando a entender que conhecia a cidade mais que a moça, falando mais alto, gesticulando, e meus parceiros deram ouvidos a ele… a moça fez uma cara que na hora não consegui ler muito bem, meio de preguiça do cara, e não querendo competir quem falava mais alto, acabou indo embora. Resultado, fomos atrás do cara, e logo chegamos na casa de um primo dele, que nada tinha a ver com o endereço que procurávamos, mas o primo tinha uns tapetes muito bonitos – e bem caros – para nos oferecer . . .

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Minhocão de bicicleta depois do ensaio – Agora Vai

Procurando escritos sobre certo assunto em diários passados, encontrei esse. Publico como homenagem ao bloco querido Agora Vai – que já começaram os ensaios pro Carnaval 2020 -, e à lua cheia que vem chegando. Daqueles momentos em que sentimos amor por essa cidade maluca.

MINHOCÃO

10.2.2014

Voltando do ensaio do Bloco Agora Vai, na Barra Funda.  De bicicleta pelo minhocão, terça-feira 11 da noite.

Quando cheguei em SP morei na Praça Roosevelt.  Quando ainda tinha o Pão de Açúcar, a padaria, o bar Corsarius, o cineclube, nenhum teatro, e o motel ao ar livre da praça.  Um domingo glorioso de sol resolvi pegar a bicicleta e passear no minhocão, que tinha visto que fechava pros carros.  Quem sabe chegar até o Sesc Pompéia.  Fiquei tão chocada com a feiúra daquele cimento sem fim entrando nos apartamentos, o sol de rachar, as pessoas andando naquela desolação de concreto como num parque, comprando picolé e passeando com as crianças. É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi . . . voltei correndo pra casa e não lembro como terminei o domingo.

Hoje, passados os mais de vinte anos, não moro mais na praça, mas atuei nela algumas vezes e até compus a Lua Cheia que se passa ali, que ainda canto.  E voltei de bicicleta pelo minhocão, depois do ensaio animadíssimo do Agora Vai.  O caminho de volta era exatamente o minhocão inteiro.  Noite quente.  Muito quente, depois de muitos dias muito quentes.  E aquele ventinho do caminho de ciclista, cruzando outros e outras, trocando cumplicidade, reparando na lanterna de um, no capacete do outro, no prazer de todos.  Logo fui tomada pela beleza dos prédios, pela beleza da feiúra de muitos, muitos descuidados, muitos velhos e lindos, grandes portas, grandes janelas, grandes salas, quartos, cozinhas, varandas.  Entra-se em cada apartamento, convivemos com os moradores, que na noite quente abriram suas janelas, saíram às varandas, ou apenas continuaram levando suas vidas, fazendo comida, o cheiro se espalhando pelo ar quente e poluído da noite seca, sentados com as tvs ligadas, computadores, livros, brinquedos de criança, bicicletas estacionadas, roupas secando, prédios art-decó, art-nouveau, ou sem arte nenhuma, só velhos, sujos e caindo.  Famílias juntas nas salas, separadas em quartos, banheiros, cozinhas, ao alcance dos olhos, da voz.  E o minhocão cheio de gente, andando, namorando, casais de homens, de mulheres, misturados, pais e filhos, turmas de amigos, amigos tomando chimarrão, cabeludos fazendo penteados, exibindo tatuagens, ciclistas da noite.  Pedalo devagar, pra aproveitar cada janela, cada sotaque, cada língua diferente, pedaços de assunto.  Um menino vem correndo, desafiando.  Uma criança, oito, dez anos?  E eu só queria ganhar a corrida, ele na frente correndo, rápido, acelerei, me emparelhei com ele, disputamos cada centímetro, até que embalei, ganhei ! ! !  e nos despedimos como adversários à altura.  Trabalhadores com roupas fosforescentes dentro de um caminhão – o único carro ali àquela hora – e remexendo num buraco negro, fios, labirintos, segredos da cidade, ratos, baratas, subterrâneos de tudo.  Pessoas nuas, meio nuas, dava pra ver até a cintura de fora pra dentro através das janelas, casais antes e depois do amor, intimidades.  Árvores, folhas muito verdes no escuro, tentei sentir algum perfume mas não veio nenhum.  Angélica, Igreja de Santa Cecília, Largo do Arouche, uma subidinha, outras janelas, varandas, cozinhas, camas, geladeiras, tvs. Outras luzes – o minhocão tem uma penumbra romântica. Uma luz indireta, que faz ver mas não demais. E a lua, quase cheia. De repente mais luzes, de todos os lados, dois caminhos. O minhocão foi acabando . ..  cheguei na Praça Roosevelt.  A rua, as pessoas.  Aqui do lado, logo ali.  Calor, movimento, vento.  E tanta gente que não vê nada disso, enlatada nos carros, dentro dos shoppings, atrás de muros, com medo da sombra e cercada de (in)seguranças.

Praça Roosevelt de agora. Desenho de um domingo ansioso, que agora com muito orgulho é capa do livro O Tempo das Coisas de Maria Bitarello

de volta pro futuro – 15 dias no Xingu

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Perturbador o tempo sem tempo passado nos Kamaiurá. Um Kwaryp que virou dois. Uma viagem de 14 dias que ainda vai ressoar muito pra frente e pra trás, um passeio pelo atávico e pelo futuro, bárbaros tecnizados para além do nosso nhén nhén nhén da cidade. Chegando na aldeia no Parque do Xingu em pleno eclipse da lua, um dia e noite inteiros de viagem – avião, ônibus, van, barco e caminhão -, e sensação de voltar pra casa, de ir visitar parentes no interior. Na roça, como se diz. Tudo muito familiar. Ao mesmo tempo não falamos a mesma língua. Eles entendem e falam português, mas eu a ignorante por não entender o que eles dizem e cantam.

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Tempo alargado. Vontade de desenhar o silêncio da aldeia. O sol do meio-dia, o centro vazio, um cachorro aqui, umas crianças pra lá e pra cá, uma vida em volta das casas em círculo. Desenhar pacientemente os telhados de palha – que agora começam a receber uma lona, que dura mais tempo. Não aparece no desenho, mas uma das lonas é prateada, parece que estamos numa estação espacial.

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O nankin que não deixa errar. O que se risca fica ali. Precisão que a calma da aldeia estimula. Tempo de olhar olhar e desenhar, sem necessidade nem vontade do instantâneo da foto de celular. Tempo esticado e desconectado.

 

 

Sentava pra desenhar e logo vinham as crianças. Ficavam olhando, e logo queriam desenhar também. Taís, moradora da casa onde eu estava, me desenhou aí. Todas as crianças que me usaram como modelo desenharam a minha pinta. Engraçado que todas a tenham percebido.

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Eram mais as meninas que se aproximavam. Rebeca, Taís, Princesa, Kanairu. Uma vez foi o Romeu. Perguntei se o desenho estava parecido, daí ele me apontou a casa onde morava.

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A lagoa Ipawu é onipresente. Toda manhã: “já banhou?” antes do sol nascer. Demorei uns dias pra entrar no esquema. Um frio danado, um pouco escuro ainda, um bafo quente saindo da lagoa, aquela bruma em cima da água. Acabei conseguindo, deixando casaco, calça, blusa e meias de lã na areia. Todos os dias seguintes “já banhou?” “já”.

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Um samba pra Beth Carvalho

Captura de tela 2019-05-01 15.23.06E lá se foi Beth Carvalho. Difícil não pensar que o Brasil vai ficando mais triste. E que a responsabilidade de não deixar a peteca cair vai ficando cada vez mais na nossa mão.

Tive a alegria de conhecer pessoalmente Beth Carvalho no Rio de Janeiro, na Tijuca, há mais de vinte anos atrás, numa ida com o letrista Costa Netto para tratar de assuntos da Dabliú, seu selo que ia lançar meu primeiro cd, o Bam Bam Bam. Que delícia uma noite de samba na casa do compositor Moacyr Luz, recém colega de gravadora e vizinho de prédio de Aldir Blanc, que também estava lá. Muita cerveja muito gelada, cachaça daquelas que descem acariciando a garganta e esquentando o corpo todo, tira-gostos maravilhosos, uma fartura danada, e a música que não parava. Muito bamba do samba, o violão que passava pra lá e pra cá, Beth no cavaquinho…

Sentei num canto ouvindo a música, tomando cerveja, cachaça, experimentando a petiscada carioca, sem conhecer ninguém mas já conhecendo todo mundo, e engreno uma conversa com um cara ao lado, falamos de sambas, música brasileira, ah, essa é demais, do fulano… adoro esse outro samba, uau, tava pensando nesse, ele então me contou que estava fazendo um livro com os sambas mais mais de todos os tempos, daí perguntei o nome dele, ele disse Almir. Uns dez segundos se passaram e eu entendi: Almir ! você é o Almir Chediak !!!, ele realmente me parecia familiar, daí agradeci muito a ele, graças às suas harmonias caprichadas tinha aprendido a tocar melhor meu violão, seus songbooks que me ensinaram tanto e me fizeram enveredar pela harmonia da bossa nova, do samba e da música brasileira de vários compositores e gêneros diversos. Que alegria de novo estar ali aquela hora, poder ouvir, trocar, e sim, agradecer todo aquele aprendizado e inspiração.

Lá pras tantas, já animada pela cerveja, pelo samba, pela cachaça, pelas conversas inspiradas, me vejo sentada ao lado dela, a madrinha do samba, a Beth Carvalho da voz rouca, estou cantando com ela, todo mundo cantando junto, feliz. Daí pergunto se ela conhece o Ziriguidum. Imagina se a Beth Carvalho, a rainha do Ziriguidum, não conhece o Ziriguidum … perguntei empolgada, tinha feito a mesma pergunta no camarim depois de um show da Elza Soares. Era o Ziriguidum cantado por ela e Monsueto numa gravação hoje facilmente encontrada no youtube, parte do filme Briga, Mulher e Samba, de 1961. É um samba irresistível, que a própria Elza Soares não se lembrava de ter gravado. Na empolgação da noite, perguntei a Beth Carvalho se ela conhecia – tipo aqueles chatos sem noção que ficam pedindo ‘aquela’ música – e ela muito naturalmente disse que não, e pediu então que eu cantasse pra ela conhecer. Ih. Agora ali não podia fugir, de onde tirei a ideia de fazer essa pergunta, maldita espontaneidade etílica, agora estava eu ali com um violão na minha frente, com um Ziriguidum a executar pra Beth Carvalho conhecer o que é Ziriguidum .. . . através de mim. Mais outros dez segundos, fazer o quê, peguei o violão, cantei, ela foi cantando junto, perguntou de quem era, Monsueto, eu disse, adoro Monsueto, ela completou, e eu feliz contei a história do camarim com a Elza Soares, duas rainhas do Ziriguidum para quem tive a honra de cantar o Ziriguidum.

Depois fui a um show dela aqui em São Paulo, e ao final fui ao camarim agradecer a noite cheia de Ziriguidum, e encontrei lá muitos compositores com um samba na mão, na esperança de ter um samba seu imortalizado na voz de Beth Carvalho, como tantos outros antes, de Cartola a Zeca Pagodinho.

Outros anos depois fomos tocar – o trio Revista do Samba, meus parceiros Beto Bianchi, Vítor da Trindade, e eu – num festival no sul da França e mais tarde no mesmo festival assistimos a um show dela numa arena romana, e cantamos juntos a plenos pulmões Andança – aquela mesma que não aguentávamos mais cantar nem ouvir em alguma roda por aqui – nós e todos os brasileiros que foram lá matar um pouco da saudade do Brasil, uma emoção e um orgulho da riqueza da música brasileira encantando e alegrando o mundo. E no fim do show uma Beth Carvalho meio contrariada de ter que acabar o show antes do show acabar, tendo que seguir um horário francês de festival com muitas atrações, d’accord, uma cultura que influenciou o mundo inteiro, mas que não sabe como funciona uma roda de samba.

Depois tantas vezes vendo Beth Carvalho lançar novos sambistas, sempre presente nos atos em favor da democracia, e cantando o samba do #LulaLivre na internet.

Hoje o Brasil está um pouco mais triste. O Almir já se foi tempos atrás, deixando o Brasil mais desarmônico, agora a Beth Carvalho foi fazer um samba com Cartola noutros mundos, e as rosas daqui vão falar ainda menos. Lembrando daquela noite lá na Tijuca, vem o sentimento de responsabilidade pra nós, que conhecemos e vivemos o Brasil com esses artistas, um tempo de esperança, de criação, com a cultura daqui sendo valorizada aqui e no mundo, encontrando meios de compor, cantar, divulgar essa música brasileira tão diversa e rica por todo canto. A hora é de ter cada vez mais esses artistas conosco, nos inspirando. Os podres poderes vão e vêm, sobem e caem, mas o samba continua fazendo o mundo todo e até Marte rebolar. E fico – e deixo vocês – com a voz da carioca Beth Carvalho mergulhando no samba paulista, cantando a Tradição do compositor Geraldo Filme, que há décadas atrás já compunha contra a verticalização do bairro: quem nunca viu o samba amanhecer, vai no Bixiga pra ver, vai no Bixiga pra ver . . .

Ah!… é Tarsila do Amaral ! Tarsila Popular no MASP

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Fiquei 3 horas em pé na fila para ver os quadros de Tarsila do Amaral no MASP. Poderia ter evitado a fila longa, mas minha irmã veio para poucos dias em São Paulo e hoje era quando poderíamos ir juntas. E eu já queria ir desde o primeiro dia.

Chegamos e um rapaz – que depois soubemos que não era funcionário ali – nos avisou que ficaríamos na fila de 40 minutos a uma hora. Pareceu longo mas sim, valia a pena, o dia estava lindo, estávamos no vão livre do museu, a vista gloriosa, o verde cantante do parque Trianon em frente, pessoas animadas na fila, crianças, velhos, jovens, casais de todos os gêneros e idades, e um vento nos corpos.

3 horas é tempo pra muito assunto, muita observação, muito pensamento. Estava eu ali pensando em meus momentos de Tarsila, ali mesmo na escadaria do MASP, quando fomos buscar o acervo do palhaço Piolin em 2015 para levar pro Centro de Memória do Circo, em carreata até o centro da cidade. Tivemos o momento palhaços e todos pra foto e até o de dar uma fugidinha com Oswald e fazer uma foto com os cavaletes de vidro da Lina Bo Bardi que receberiam as obras para a nova exposição do museu.

Fui aproveitando as 3 horas de fila – quando é que temos 3 horas para passar o tempo? – pra pensar então no Circo que foi montado ali mesmo no vão, em 1972, para as comemorações dos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Uma homenagem a Abelardo Pinto, o palhaço Piolin, que então há mais de dez anos estava sem sua lona montada na cidade. E fiquei pensando nos meus quadros ali, quer dizer, de Tarsila, naquelas pessoas como eu, nas horas inventadas de tempo para conhecer Tarsila do Amaral.

Fui contando para minha irmã da minha vida passada – no teatro – como Tarsila, o perfume que usava, minhas tardes e noites com Oswald, a pintura dele nu em cena como no desenho, a origem da cena do absinto com ouro, nossa descoberta como antropófagos por causa da rã, que me levou à viagem com a rã do Parque da Aclimação, o leite da cabrinha, a Cacilda sozinha com os fantasmas do TBC que viraria Tarsila com a batida do tambor e a explosão do fogo. O fogo do teatro, fogo de criação, que foi dar em tantas obras impressionantes. Tarsila à frente de seu tempo – ou atrás, já que tudo é circular -, com seus amores, seus talentos, seu charme.

Sabe aqueles sonhos acordados que temos, em que morremos e estamos vendo as pessoas vindo até nós no caixão, um pra chorar um pouco já de saudade, outro para se desculpar, outro pra rogar sua última praga até o além, uns outros arrependidos por terem nos tratado tão mal… ou tão bem. Ali estava eu, na Tarsila que está em meu corpo, ou no pouco muito de Tarsila que vive em mim, vendo as pessoas que escolheram me conhecer (um pouco mais ou pela primeira vez) no sábado de aleluia. Saíram de suas casas, reuniram famílias, amigos, até um cego e seu cão guia, e foram ali, ficar horas na fila pra conhecer o que passei a vida fazendo, buscando, criando.

Depois da fila embaixo, outra em cima. E então entramos. Um pouco perturbador todo mundo fazendo selfies com os celulares, mas incrível também ver tanta gente querendo se fotografar em frente aos quadros de Tarsila. E fotografar os quadros, que podem ser encontrados facilmente na internet. Mas ali está o quadro e eu, no mesmo lugar e ao mesmo tempo. O melhor sorriso, o melhor ângulo, no momento da selfie não se vê mais nada nem ninguém, o que importa no mundo é estar no seu melhor para literalmente ‘ficar bem na foto’.

Mas passado o susto das selfies, era de um prazer indescritível ver crianças reconhecendo a Cuca no quadro, uma outra impressionada com o Sapo, outra com os chifres do Touro. As adolescentes animadas, uma dizendo pra outra, olha a Mona Lisa dela, o Abaporu, rodeado de gente, muita gente, todos ali olhando, querendo talvez entender alguma coisa, sentir as cores, saber o que significa Abaporu – em tupi, homem que come gente, antropófago -, imaginar o que levou a artista a inventar aquela figura. O cego que conhecia todos os quadros e suas histórias e ia contando pros amigos; os que liam todos os textos explicativos, os que não liam nada, os que ficavam muito tempo olhando o mesmo quadro, os que só tiravam uma selfie e iam embora sem ver, as mulheres velhas encantadas com as cenas da Procissão, o Batizado de Macunaíma meio desprezado e enorme no meio da sala, os desenhos das montanhas e igrejas de Minas, de Recife, do Rio de Janeiro, a curiosidade realimentada, as biografias, dela, de Oswald, a história de São Paulo de um outro ângulo, as crônicas de Tarsila pro jornal O Estado de S. Paulo, o Mandú Çárárá de Villa Lobos de novo na cabeça.

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Macumba Antropófaga – Teatro Oficina 2011 – foto de Acauã Sol

Li antes de sair de casa que Tarsila pediu o Abaporu de volta ao Oswald quando eles se separaram. Ela o havia presenteado com o quadro em seu aniversário de 1928, que acabou dando origem ao Manifesto Antropófago, que veio a dar na Antropofagia nas artes, que inspirou depois tanta gente, e que deu até no espetáculo Macumba Antropófaga do Teatro Oficina onde eu virei a Tarsila pela primeira vez em 2010 e depois de novo e de novo, que me fez descobrir o prazer de desenhar depois de tantos anos sem saber que podia.

As voltas da vida, sempre girando, eu chegando de Minas em São Paulo lá atrás, Zé Celso e Marcelo Drummond cantando o Soneto do Olho do Cu no Teatro Municipal, onde aconteceu em 1922 a Semana de Arte Moderna, anos depois a Macumba Antropófaga no Teatro Oficina, Tarsila nascendo vermelha, amarela, azul e verde no cavalete de vidro da Lina e em mim, e outra vez no Dia do Circo, com Oswald Marcelo, os modernistas, Piolin e muitos palhaços no Largo do Paissandu pro Festim Antropofágico desse ano de 2019, e hoje Tarsila exposta em cores, bichos, pedras e folhas pra multidão, e queimando aqui dentro. Roda Viva.

Tantas histórias numa história. Voltando às 3 horas da fila, pude pensar ainda que loucura a vida das pessoas, Tarsila e Oswald que foram tão ricos, viveram vidas quase inimagináveis nas mais altas rodas artísticas de Paris e daqui, depois o mundo dando uma virada e eles também com a queda do café e da bolsa, daí conheceram outras realidades, continuaram suas buscas artísticas por outros caminhos, e hoje a Antropofagia é estudada no mundo todo (exageros incluídos) e Tarsila é uma pintora que desperta interesse renovado no Brasil e fora, com obras espalhadas por diversos países, seu quadro A Lua recém adquirido e exposto pelo MoMA de Nova Iorque, e o Abaporu cotado em aproximados 100 milhões de reais. Quantia abstrata pros padrões matemáticos e financeiros comuns, e contraditório com o final da vida da artista, que morreu em 1973 aos 87 anos sem ver sua obra reconhecida a esse ponto. De dinheiro, de crítica e de gente. Não necessariamente nessa ordem.

E também quanta energia uma exposição dessa movimenta. Só por estarmos ali na fila, logo apareceram vendedores de água, salgados, brigadeiros. Até uma performance relativa à Páscoa, meio sem graça mas bem aplaudida. E todos os trabalhadores ali mesmo do MASP. E todo o trabalho para organizar a exposição, todas as pessoas envolvidas, vários países onde as obras moram hoje. E todas aquelas pessoas que foram ver. E os restaurantes e lanchonetes ao redor e do próprio museu que venderam um pouco mais hoje pra nos alimentar na fila, durante e depois da visita à exposição. Os transportes. As outras exposições visitadas. Outras obras e autores conhecidos no próprio museu, por causa da visita de hoje. Lembranças desta e de outras exposições, que vão durar muito tempo.

E agora os meus olhos, meu corpo e minha imaginação, e da tanta gente que foi ali hoje, estão impregnados com tantas cores, bichos, gentes, lugares. Os rostos d’Os Operários, d’Os Trabalhadores, os Autorretratos, os mandacarus, palmeiras, manacás, as plantas gigantes, lugares, festas, o Carnaval em Madureira, os olhos tristes da Segunda Classe, a vontade de ler mais e de novo Oswald e Mário de Andrade, Raul Bopp, de conhecer mais Piolin, de saber mais sobre o cubismo, sobre Anita Malfatti, Pagu, de conhecer um pouco mais dos anos 20 em Paris, da história de São Paulo, dos povos originários daqui, dos invasores bandeirantes, dos jesuítas, dos imigrantes todos, voluntários e não, da crise do café, da queda da bolsa, dos casarões da Avenida Paulista e dos moradores do bairro do Bixiga vindos de toda parte.

Inspiração que dias sombrios não tiram. É a arte que sempre dá a virada.

[:pb]On Se Comprend, Sans Tradução, ou Tradução / Traição . . .[:]

[:pb]Estou penando aqui pra traduzir Alfred Jarry. Ontem fiz faxina na casa, usei a furadora que esperava há dias na sala pra ser usada e instalei finalmente a rede da subida do rio Amazonas, li os atrasados guardados, estudei, lavei louça, roupa, e mais, mais, tudo pra postergar um pouco mais o momento da dúvida, esta ou aquela palavra, ou será que tem outros sentidos que não descobri, será que ele quis dizer exatamente o contrário, tem humor, ironia, ou desta vez ele está apenas dizendo o que queria dizer, simplesmente, ou, ou . . . .

Dessas torturas que a gente cria pra gente mesmo, aquilo que eu fazia com prazer e simplesmente porque queria, de repente é uma responsabilidade, um compromisso, um trabalho, daí tudo outro parece melhor e mais importante e mais urgente.

Só pra dizer que sofro aqui traduzindo, mas gozo gozo, quando descubro a palavra certa, ou invento algum sentido, ou entendo ou acho que entendo o que ele quis dizer. Não posso perguntar pra ele o que ele quis dizer, mas se fosse possível, será que perguntaria?   Na minha (nada) humilde e árdua tarefa de tradutora, às vezes me sinto tão escrava e outras tão livre, resumindo, é bom. Eu gosto. Sofro sofro, mas qual delícia não sofre junto??

capa cd Hortênsia du Samba

capa cd Hortênsia du Samba

E nesses labirintos das línguas, hoje fiquei feliz de saber que nosso cd bilíngue, bi várias coisas, parcerias variadas, nosso Hortênsia du Samba, parceria do Revista do Samba (esse trio que me dá tantas alegrias há tantos anos, com meus parceiros Vítor da Trindade e Beto Bianchi) e da banda francesa Tante Hortense, está agora disponível nas redes de música virtual, ITunes, Spotify, Deezer, e tal. Foi um trabalho tão único, invenção e proposta do compositor francês Stéphane Massy, que conheci por causa e no Teatro Oficina, e que nos convidou – o Revista do Samba – pra fazer um trabalho juntos. Nos reunimos primeiro em São Paulo para as criações – já havíamos trocado algumas ideias virtualmente – e primeiros shows, daí logo gravamos. No Estúdio Outra Margem do Paulo Lepetit, com produção musical luxuosa dele. Isso foi em 2009. Em 2011 fomos à França lançar o cd, com shows em Marseille, Paris, Aix-en-Provence e Lille. Daí ficou a vontade de tocar mais juntos, fazer mais coisas, e acho que nesse ano de 2017 conseguiremos. O cd teve uma primeira tiragem, que já está esgotada, tivemos tipo um tube, a canção Le Bel Amant du Berry, que entrou na programação de algumas rádios francesas, críticas boas por lá, e agora que bom!, hora de divulgar de novo. Não chegamos a fazer shows de lançamento aqui, com o cd já pronto, mas enquanto gravávamos tocamos no Oficina e na Cidade Tiradentes, o que foi bem ótimo e nos preparou pros shows franceses. Nos demos bem em cena.

O trabalho de criação em parceria foi uma experiência de ter que criar alguma coisa naqueles dias com aquelas pessoas. Algumas já íntimas pessoal e artisticamente e outras que conhecíamos ali naquele dia e hora. A banda Tante Hortense: Stéphane Massy que inventou a história toda, que já era um amante do Brasil, da música daqui, compositor cheio de ideias e muitas palavras, M-Jo cantora doce, minimalista, alquimista de sons sutis, Christophe Rodomisto, guitarrista elegante e chic das melhores notas, Jean-Phi baterista amante e parceiro de teatro e dança, e meu companheiro cavaquinista Eddy, com seu jeito marselhês único de tocar cavaco, e nós três, os Revistas: Vítor com seu mundo dos ritmos e ancestralidades, Beto com suas harmonias pop e swing contradizendo a máxima infeliz do poeta, e eu com a minha cara-de-pau esculpida no teatro e meu cavaquinho Paulinho da Viola. Numa casa lá no Embu das Artes e depois aqui em SP, Oficina, estúdio e os shows, tocando e cantando juntos.

As canções, algumas já prontas que encaixavam no projeto, outras feitas nas parcerias com prazo determinado, parcerias de dois, três, quatro, ideias nascidas ali, todos criando o arranjo juntos – no total somamos 8, 5 do Tante Hortense e 3 do Revista do Samba.  Misturar os idiomas, trocar as línguas, musicar palavras francesas com ritmos brasileiros e vice-versa, cantar em português e francês, inventar uma língua comum, a compreensão e não compreensão. Duas canções que falam disso, On Se Comprend e Sans Tradução, o amor entre uma brasileira e um caipira francês, Le Bel Amant du Berry, a São Paulo Big Brother Grande Irmão, o samba-enredo da cidade do Rio de Janvier em francês, uma Baleia no rio Sena, uma Piroca no pulso, uma tristeza com algo de chic na bossa Je Suis Aussi, La Révolution que começa pelo cu, La Vache surrealista e a máquina de moer tudo isso e mais outro tudo, Moissonner et Battre. Uma viagem a partir das cinco semanas que experimentamos criar juntos, trabalhar e dividir intimidades e dia-a-dia.

(*pra ouvir as canções é só teclar no título da música em azul).

Pra quem entende as duas línguas ouvir pode ser uma viagem divertida e cheia de sentidos, pra quem entende uma pode adivinhar a outra na música, talvez entenda mais, descubra outros sentidos. Pra quem gosta desse mundo da tradução traição, um descanso, ou um desafio, ou um deleite.

Escrevi tudo isso pra fugir um pouco do Jarry, e volto a ele já com saudade. Um pouco mais musical. Fica a dica então, entra lá – ou por aqui mesmo – e ouve. Hortênsia du Samba. Um exercício real pra compreensão do outro, ou puro deleite. Um pouco mais disso no mundo e estaríamos mais em paz.

 

De onde apareceu, passou, já foi

ou vai ser bom

Dans la confusion

J’étais content . . . . .

 [:]

Bacantes praticantes nas Satyrianas – Então é isso?!

capa

capa do livro com a bacantinha

Então é isso?!   Será que finalmente estou conseguindo parar com as vidas paralelas? Amanhã é lua cheia na Praça Roosevelt, e lá vamos nós com Então é isso?! nos Parlapatões, nas Satyrianas da Phedra. Morei lá antes dos Satyros e fiz essa canção – Lua Cheia – esperando um amor voltar do ensaio eterno de Bacantes no Teatro Oficina . . . hoje estou fazendo Bacantes (de novo!) no Oficina, postando a Lua Cheia que foi composta ali de frente pra Praça, pra lançar o livro que tem o conto Praça Roosevelt, escrito ali também, antes da praça ser o que é hoje, cheia de teatro e de gente. E de lua.

E com parceiros colegas de camarim e de tantas ali do terceiro andar . . . Marcelo Drummond, sempre Dionisios mesmo quando nem sabe, parceiro silencioso de carnavais e ótimas e bad trips, Sylvia Prado, Cacilda, mana teus cabelos mana . .. e tantas, cabrocha do samba no Bixiga, parceira de Bixigão e carnavais, Dani Rosa, rainha da bateria, parceira de voz, de confissões de camarim e samba no pé e nos quadris pelas ruas de Oropa França e Bahia, Joana Medeiros, irmã incestuosa Cadméééééia, do olhar e palavras de loucura sagrada, pipoca e videogame, Wallace, cabelos de fogo e entusiasmo exuberante e doce, desafio novo e instigante. E uma surpresa da noite, que pode vir ou não, a caligrafia milenar aqui agora, de rua, desenho do nome.

Bacantes praticantes no trabalho diário do teatro, no vagabundear sem descanso das artes. Mais um Então é isso?!, de descoberta, contos que mudam de cara e de voz, diferentes e novos a cada leitura. E mais uma vez aquele obrigadíssima a todos que emprestam sua voz e corpo a esses personagens que foram aparecendo aqui e ali e me azucrinando até conseguirem existir em palavra e som. A alegria é a prova dos 9 ! ! ! ! M E R D A ! ! ! ! !

Ouça a faixa 8 – é a Lua Cheia.