Dorival e o grito da Mar

o teatro mais uma vez. e a música. viver, reviver, desremoer, viver uma catarse e fazer tudo virar arte, teatro, música. mais uma vez.

conheci a música de dorival caymmi principalmente através de minha mãe, que sempre amou aquele vozeirão, as canções de mar e pro mar. pramar. ela contava sempre da maravilha que foi uma vez em Copacabana, e lá estava, em algum daqueles bares restaurantes da beira da praia, lá estava em uma mesa qualquer o Dorival com seu violão, cantando uma de suas pequenas imensas obras de arte canção.

muitos e muitos anos depois desses tempos, muitos anos já que minha mãe está ouvindo Dorival na música das esferas, recebo um convite pra cantar uma de suas canções. temporal que se aproxima. Dorival e A Mar.

em cada respiração, cada nota dessa canção, ali está minha mãe, e a dor da minha mãe. conheço bem outras dores, mas essa não vou experimentar nessa vida. a dor de perder um filho. o filho.

meu irmão meu amado irmão se matou tão jovem. agora que sou velha guarda vinte e três anos parece quase uma criança. e eu então, que tinha dezoito. que virei adulta vivida ali bem rápido. meu irmão adorado, que saudade.

daí ganhei esse presente de meus tão amados parceiros no teatro. cantar com eles, cantar a dor de minha mãe, minha dor de irmã, a dor de todas as mães que perdem seus filhos. das mães de tantos vicentes que se vão tão cedo.

tem alguns momentos da vida de que a gente se lembra sempre como se fosse hoje. o grito de dor de minha mãe quando soube do acontecido. contaram pra ela no quarto lá longe, nós na sala já sabíamos. e aquele grito.

esse grito está dentro de mim até hoje. ele já quase apareceu em uma cena lá mesmo no teatro, mas era um grito surdo. agora, tantos e tantos anos depois, tantas encarnações, esse grito de minha mãe sai de mim como música ali na pista do Oficina. numa linda canção de Dorival Caymmi. vai sem o vozeirão, não é beira-mar em Copacabana, mas vem lá de longe também. lá daquele quarto, do fundo do quarto de todas as mães do mundo.

Seminais Tecnizados

3 maneiras de criar e estar no Teatro Oficina.
num dos projetos gigantes do Oficina – as Dionisíacas em Viagem – caiu pra mim a função burocrática de organizar os relatórios vindos de todas as áreas: atuação, música, vídeo, direção de arte, figurino, direção de cena, produção, luz, divulgação, dramaturgia, corpo, voz, e mais os que eu esqueço agora. trabalho enorme que acabou sendo tão interessante pela possibilidade de ver um mesmo trabalho por tantos ângulos diferentes. aqueles relatórios que vazavam paixão foram a melhor aula de teatro que tive na vida.
esses vídeos indicados abaixo me deram de novo um pouco desse gosto. uma viagem deliciosa pelo universo dos figurinos pela prática amorosa da nossa diva camareira Cida Melo, os labirintos da tradução de textos com tantos sentidos e a operação em cena da nossa poliglota Maria Bitarello, e um pouco do samba no Oficina pelo cavaquinho e voz desta que vos escreve.
entra lá! esses 3 saem agora, mas já tem também o da nossa arquiteta cênica Marília Piraju, e em breve novos ângulos virão!
boa viagem ! ! !

 

Realizados no Teatro Oficina, dentro dos Seminais Tecnizados da Universidade Antropófaga. Vídeo-aulas contemplada pelo PROAC DIRETO Nº 39/2021 – FOMENTO DIRETO A PROFISSIONAIS DO SETOR CULTURAL E CRIATIVO

TV UZYNA apresenta três videoaulas de uma vez já disponíveis no nosso canal do YouTube – vídeos mais abaixo, continue lendo.

1. NAS ALTURAS DO TEATRO OFICINA
Cida Melo
, camareira do Teatro Oficina desde 1999 até hoje, participou neste período de todas as montagens da Companhia. Responsável pelo enorme acervo de figurinos do Oficina, Cida fala aqui de seu trabalho no teatro, desde a organização dos figurinos de cada montagem, conservação, manutenção, organização da lavanderia, até sua relação com atores e atrizes durante as temporadas dos espetáculos. E ainda vamos conhecer melhor essa personagem vital para o teatro em seu canto de trabalho: Nas Alturas do Oficina.

2. O SAMBA NO TEATRO OFICINA
Letícia Coura 
e seu cavaquinho nos convidam para um passeio pela história do Teatro Oficina através do samba. Há mais de 20 anos atuando na Companhia como cantora, compositora e atriz, Letícia apresenta um breve repertório de sambas do cancioneiro do Oficina, parte dele composto – por ela e outros autores – especialmente para espetáculos como Os Sertões, Bacantes e Acordes.

3. TRADUZINDO O INTRADUZÍVEL
Maria Bitarello
, tradutora do Teatro Oficina desde 2015, traduziu e operou as legendas dos espetáculos montados pela companhia até 2020. Neste breve episódio, Maria conta um pouco sobre a prática de traduzir durante os ensaios, as difíceis escolhas do tradutor-traidor, as atualizações e alterações do texto ao longo da temporada, a concisão do formato legenda e as sutilezas da operação ao vivo.

câmeras Igor Marotti
edições Kael Studart
artes Igor e Kael

Assista também à videoaula da Marília Piraju:
ARQUITETURA CÊNICA DO TEAT(R)O OFICINA projeto de Lina Bo Bardi y Edson Elito SEMINAIS TECNIZADOS #1

 

Ah!… é Tarsila do Amaral ! Tarsila Popular no MASP

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Fiquei 3 horas em pé na fila para ver os quadros de Tarsila do Amaral no MASP. Poderia ter evitado a fila longa, mas minha irmã veio para poucos dias em São Paulo e hoje era quando poderíamos ir juntas. E eu já queria ir desde o primeiro dia.

Chegamos e um rapaz – que depois soubemos que não era funcionário ali – nos avisou que ficaríamos na fila de 40 minutos a uma hora. Pareceu longo mas sim, valia a pena, o dia estava lindo, estávamos no vão livre do museu, a vista gloriosa, o verde cantante do parque Trianon em frente, pessoas animadas na fila, crianças, velhos, jovens, casais de todos os gêneros e idades, e um vento nos corpos.

3 horas é tempo pra muito assunto, muita observação, muito pensamento. Estava eu ali pensando em meus momentos de Tarsila, ali mesmo na escadaria do MASP, quando fomos buscar o acervo do palhaço Piolin em 2015 para levar pro Centro de Memória do Circo, em carreata até o centro da cidade. Tivemos o momento palhaços e todos pra foto e até o de dar uma fugidinha com Oswald e fazer uma foto com os cavaletes de vidro da Lina Bo Bardi que receberiam as obras para a nova exposição do museu.

Fui aproveitando as 3 horas de fila – quando é que temos 3 horas para passar o tempo? – pra pensar então no Circo que foi montado ali mesmo no vão, em 1972, para as comemorações dos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Uma homenagem a Abelardo Pinto, o palhaço Piolin, que então há mais de dez anos estava sem sua lona montada na cidade. E fiquei pensando nos meus quadros ali, quer dizer, de Tarsila, naquelas pessoas como eu, nas horas inventadas de tempo para conhecer Tarsila do Amaral.

Fui contando para minha irmã da minha vida passada – no teatro – como Tarsila, o perfume que usava, minhas tardes e noites com Oswald, a pintura dele nu em cena como no desenho, a origem da cena do absinto com ouro, nossa descoberta como antropófagos por causa da rã, que me levou à viagem com a rã do Parque da Aclimação, o leite da cabrinha, a Cacilda sozinha com os fantasmas do TBC que viraria Tarsila com a batida do tambor e a explosão do fogo. O fogo do teatro, fogo de criação, que foi dar em tantas obras impressionantes. Tarsila à frente de seu tempo – ou atrás, já que tudo é circular -, com seus amores, seus talentos, seu charme.

Sabe aqueles sonhos acordados que temos, em que morremos e estamos vendo as pessoas vindo até nós no caixão, um pra chorar um pouco já de saudade, outro para se desculpar, outro pra rogar sua última praga até o além, uns outros arrependidos por terem nos tratado tão mal… ou tão bem. Ali estava eu, na Tarsila que está em meu corpo, ou no pouco muito de Tarsila que vive em mim, vendo as pessoas que escolheram me conhecer (um pouco mais ou pela primeira vez) no sábado de aleluia. Saíram de suas casas, reuniram famílias, amigos, até um cego e seu cão guia, e foram ali, ficar horas na fila pra conhecer o que passei a vida fazendo, buscando, criando.

Depois da fila embaixo, outra em cima. E então entramos. Um pouco perturbador todo mundo fazendo selfies com os celulares, mas incrível também ver tanta gente querendo se fotografar em frente aos quadros de Tarsila. E fotografar os quadros, que podem ser encontrados facilmente na internet. Mas ali está o quadro e eu, no mesmo lugar e ao mesmo tempo. O melhor sorriso, o melhor ângulo, no momento da selfie não se vê mais nada nem ninguém, o que importa no mundo é estar no seu melhor para literalmente ‘ficar bem na foto’.

Mas passado o susto das selfies, era de um prazer indescritível ver crianças reconhecendo a Cuca no quadro, uma outra impressionada com o Sapo, outra com os chifres do Touro. As adolescentes animadas, uma dizendo pra outra, olha a Mona Lisa dela, o Abaporu, rodeado de gente, muita gente, todos ali olhando, querendo talvez entender alguma coisa, sentir as cores, saber o que significa Abaporu – em tupi, homem que come gente, antropófago -, imaginar o que levou a artista a inventar aquela figura. O cego que conhecia todos os quadros e suas histórias e ia contando pros amigos; os que liam todos os textos explicativos, os que não liam nada, os que ficavam muito tempo olhando o mesmo quadro, os que só tiravam uma selfie e iam embora sem ver, as mulheres velhas encantadas com as cenas da Procissão, o Batizado de Macunaíma meio desprezado e enorme no meio da sala, os desenhos das montanhas e igrejas de Minas, de Recife, do Rio de Janeiro, a curiosidade realimentada, as biografias, dela, de Oswald, a história de São Paulo de um outro ângulo, as crônicas de Tarsila pro jornal O Estado de S. Paulo, o Mandú Çárárá de Villa Lobos de novo na cabeça.

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Macumba Antropófaga – Teatro Oficina 2011 – foto de Acauã Sol

Li antes de sair de casa que Tarsila pediu o Abaporu de volta ao Oswald quando eles se separaram. Ela o havia presenteado com o quadro em seu aniversário de 1928, que acabou dando origem ao Manifesto Antropófago, que veio a dar na Antropofagia nas artes, que inspirou depois tanta gente, e que deu até no espetáculo Macumba Antropófaga do Teatro Oficina onde eu virei a Tarsila pela primeira vez em 2010 e depois de novo e de novo, que me fez descobrir o prazer de desenhar depois de tantos anos sem saber que podia.

As voltas da vida, sempre girando, eu chegando de Minas em São Paulo lá atrás, Zé Celso e Marcelo Drummond cantando o Soneto do Olho do Cu no Teatro Municipal, onde aconteceu em 1922 a Semana de Arte Moderna, anos depois a Macumba Antropófaga no Teatro Oficina, Tarsila nascendo vermelha, amarela, azul e verde no cavalete de vidro da Lina e em mim, e outra vez no Dia do Circo, com Oswald Marcelo, os modernistas, Piolin e muitos palhaços no Largo do Paissandu pro Festim Antropofágico desse ano de 2019, e hoje Tarsila exposta em cores, bichos, pedras e folhas pra multidão, e queimando aqui dentro. Roda Viva.

Tantas histórias numa história. Voltando às 3 horas da fila, pude pensar ainda que loucura a vida das pessoas, Tarsila e Oswald que foram tão ricos, viveram vidas quase inimagináveis nas mais altas rodas artísticas de Paris e daqui, depois o mundo dando uma virada e eles também com a queda do café e da bolsa, daí conheceram outras realidades, continuaram suas buscas artísticas por outros caminhos, e hoje a Antropofagia é estudada no mundo todo (exageros incluídos) e Tarsila é uma pintora que desperta interesse renovado no Brasil e fora, com obras espalhadas por diversos países, seu quadro A Lua recém adquirido e exposto pelo MoMA de Nova Iorque, e o Abaporu cotado em aproximados 100 milhões de reais. Quantia abstrata pros padrões matemáticos e financeiros comuns, e contraditório com o final da vida da artista, que morreu em 1973 aos 87 anos sem ver sua obra reconhecida a esse ponto. De dinheiro, de crítica e de gente. Não necessariamente nessa ordem.

E também quanta energia uma exposição dessa movimenta. Só por estarmos ali na fila, logo apareceram vendedores de água, salgados, brigadeiros. Até uma performance relativa à Páscoa, meio sem graça mas bem aplaudida. E todos os trabalhadores ali mesmo do MASP. E todo o trabalho para organizar a exposição, todas as pessoas envolvidas, vários países onde as obras moram hoje. E todas aquelas pessoas que foram ver. E os restaurantes e lanchonetes ao redor e do próprio museu que venderam um pouco mais hoje pra nos alimentar na fila, durante e depois da visita à exposição. Os transportes. As outras exposições visitadas. Outras obras e autores conhecidos no próprio museu, por causa da visita de hoje. Lembranças desta e de outras exposições, que vão durar muito tempo.

E agora os meus olhos, meu corpo e minha imaginação, e da tanta gente que foi ali hoje, estão impregnados com tantas cores, bichos, gentes, lugares. Os rostos d’Os Operários, d’Os Trabalhadores, os Autorretratos, os mandacarus, palmeiras, manacás, as plantas gigantes, lugares, festas, o Carnaval em Madureira, os olhos tristes da Segunda Classe, a vontade de ler mais e de novo Oswald e Mário de Andrade, Raul Bopp, de conhecer mais Piolin, de saber mais sobre o cubismo, sobre Anita Malfatti, Pagu, de conhecer um pouco mais dos anos 20 em Paris, da história de São Paulo, dos povos originários daqui, dos invasores bandeirantes, dos jesuítas, dos imigrantes todos, voluntários e não, da crise do café, da queda da bolsa, dos casarões da Avenida Paulista e dos moradores do bairro do Bixiga vindos de toda parte.

Inspiração que dias sombrios não tiram. É a arte que sempre dá a virada.

[:pb]a rã do parque da aclimAção[:]

[:pb]Voltando de um exame ultrassom transvaginal passo no parque. Aproveitar que moro perto de um numa cidade como São Paulo. O médico passou o gel e enfiou aquele pau eletrônico com camisinha em mim, saí de lá com fotos dos meus ovários, do útero e outras coisas. Tudo muito asséptico mas mesmo assim me fez lembrar que sou um corpo. E que no geral a gente esquece dele e de tudo que tem dentro.

Me dou um tempo pra meditar o que faltou no parque. Sentei de frente pro lago, por do sol, árvores, pássaros cantando. Estou ali há alguns minutos e um barulho no chão de folhas ao lado. Abro o olho e . . . uma rã !

Deu uns três pulos, passou calmamente na minha frente. Eu imóvel, agora de olhos abertos, observo. Ela parou um pouco à minha direita e ficou imóvel como eu.   De vez em quando os olhos se mexiam. Eu só via o olho direito, aquele olho fora do corpo, mas imaginei que ela mexia os dois ao mesmo tempo. Na verdade poderia ser um sapo, mas acho que era uma rã. Uma sapinha.

Ficamos ali as duas, meditando. Observando. Ela de um verde meio musgo, diferente das folhas do chão. Há quatorze anos frequento esse parque – moro do lado desde então – e nunca tinha visto uma rã ali. E agora estávamos as duas lado a lado em silêncio, meditando, observando o sol se por. Logo pensei nas rãs que tenho comido todo sábado e domingo por volta das seis da tarde. Eu não, Tarsila. Mas eu também. E as falas do Oswald na cabeça “é, eu comi muito, muita gente tua. Tanta gente tua eu tracei que de tanto comer enjoei.” Daí o Murubixaba, “você se empanturrou dos nossos, deixa de prosa, por isso tua carne é gostosa !” E eu ali, do lado da rã, ouvindo isso dela.

É, eu comi muita gente tua. Tanta gente tua eu tracei que de tanto comer, enjoei. Não, eu não enjoei. Só estava um pouco envergonhada ali ao lado dela. E ela tranquila, parecia me perdoar, entender. É a natureza, é isso mesmo. Eu sei, ela dizia.

“Um ser desprovido de razão seu semelhante não come. Como pode um homem comer outro homem?” Uma sapa comer outra sapa? “Somos todos bichos humanos iguais . . . ..”   e a música peça que não sai da cabeça.

Que nobreza essa rã. Me perdoar assim, do nada, e me deixar ficar ao seu lado, as duas observando o lago, a sol – que na peça o sol é a sol -, as árvores, o vento. As pessoas passavam no caminho embaixo, cada uma com seu celular ou seu cachorro. Crianças de bicicleta, patins. Até uma mulher com araras coloridas treinadas. E nós ali, imóveis, eu pensando nas rãs que comia todo final de semana, tentando então aceitar que essa é a lei da vida. Antropofagia. Depois todos viramos terra mesmo, essa aqui bem embaixo das nossas bundas. Aliás como as pernas dela parecem as minhas. Abaporu.

Macumba Antropófaga – Teatro Oficina 2017 – foto Jennifer Glass

E nós ali. O relógio da igreja bateu quatro vezes, quatro horas. Sol de inverno, vento nas folhas, cantos de pássaros, uns três cantos diferentes, não sei qual de qual. Ela imóvel e eu também. Comecei a pedir perdão a ela. Envergonhada de todas as rãs que comi na vida e ao mesmo tempo aceitando, como ela mesma parecia dizer mantendo-se calma ali do lado, a vida é assim mesmo. De vez em quando um barulho de gente me desviava a atenção dela, e quando eu voltava os olhos pra onde ela estava, por alguns segundos não conseguia vê-la. Ela da cor das folhas, da textura do chão, imóvel ali, ela era o chão e as folhas e a terra. Quantas coisas vemos mas não enxergamos. Olhamos mas não distinguimos. Porque não conhecemos ou simplesmente porque não estamos ali. Porque não sabemos ver. Não queremos. Ignorância ou desinteresse. Mas logo eu a via de novo, e continuávamos ali, lado a lado, existindo.

Quando criança passava férias no Rancho Alegre – a alegria é a prova dos nove ! é é é ! ! ! – e os primos saíam à noite com os adultos da região pra caçar rãs e tatus. Apesar de gostar de alguns programas ‘dos meninos’, nesse eu nunca quis ir. Via aqueles paus com a ponta afiada e não conseguia imaginar como alguém pode ser tão cruel pra querer espetar aquilo numa rã indefesa ou num tatu perdido no mato. A caça era à noite, com a lanterna eles os cegavam, e daí conseguiam atacá-los atordoados. Eu achava aquilo um horror mas depois comia a rã bem feliz. Agora pedia perdão também por essas rãs devoradas no passado. Mas a vida é assim mesmo, ela continuava me dizendo e me aceitando em silêncio ali quieta.

Estava ficando tarde, minhas pernas doíam de muito tempo na mesma posição. Meditando, evitando a dor de cabeça. Mais de quarenta anos tendo enxaqueca e de repente eu sabia lidar com ela, não tinha mais. Queria dizer isso pra todo mundo, escrever receitas de como acabar com sua enxaqueca, mas quem iria ouvir ou ler? Tentei umas vezes logo que voltei do meu retiro meditativo mas entendi que não é bem assim. Pensava na enxaqueca que aprendi a conhecer e que não tenho mais, ou tenho mas agora sei contracenar com ela, e me lembrei da sapinha ou sapinho meu amigo lá da praia. Numa das outras encarnações construí uma casa na praia e ficava lá às noites sozinha na casa em construção, e por um bom tempo tive um amigo sapo. Bem pequenininho, vinha ficar comigo à noite na cozinha. Ou ao lado da cadeira de balanço onde ficava olhando as árvores e o mar. A mar, que no teatro é a mar. Ficávamos ali em silêncio. Ele mexia pouco, de vez em quando comia um pernilongo. Até que um dia ele ficou tanto tempo na mesma posição sem comer nenhum pernilongo que estranhei. Fui dar uma cutucada nele e vi que tinha morrido. Enterrei ele ali na frente da casa. Fiquei com saudade nas noites solitárias seguintes, e muito de vez em quando depois, como agora, lembrava dele.

E a sapinha continuava ali. Deu mais uns dois pulos, agora pra frente. Pensei em toda a cena da peça, Tarsila e Oswald vendo as rãs, ouvindo o Pica Pau do Villa Lobos, às vezes cantando um pouco junto, com o absinto ainda descendo quente. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Ela não era minha inimiga. Eu é que era a inimiga dela ali. É, eu comi muito, muita gente tua. Meu corpo tinha gente dela nele, talvez por isso ela se sentia bem ali do meu lado. E eu também do lado dela. Pensando que depois nós duas viraremos terra. Em como será que morrem as outras rãs. As outras, como ela, que não são assassinadas para serem devoradas em peças de teatro, sítios ou restaurantes. Será que elas apenas morrem como o sapinho da praia, ou são capturadas e devoradas por animais maiores? Ela parecia não se importar com nada disso, ainda imóvel ali na minha frente. Só de vez em quando um movimento dos olhos.

Eu começava a pensar que precisava ir embora, que nem tinha almoçado ainda, mas estava tão bom ali do lado dela. Éramos dois seres vivos, mais vivos que as pessoas embaixo com os celulares e os cachorros. Bobagem, ninguém mais vivo que ninguém, mas eu ali com ela entendi os deuses. As deusas. Na verdade não entendi nada, mas vi a vida nela.

Foi difícil me despedir. Ficava olhando pra ela. Desviava o olhar e olhava de novo, até conseguir distingui-la no meio das folhas e do chão da terra, todos os tons de verde e marrom. Ela ali. É que eu não tinha vontade de ir embora. Era bom ficar ali com ela. Fui indo devagar, peguei a bicicleta, ela imóvel, achando tudo muito natural. De repente eu olhava pro mesmo lugar e só via folhas e chão. Daí aguçava o olhar e a via de novo. Fui me despedindo assim. E no caminho de volta ainda encontrei o Pica Pau comendo o mamãozinho dos pássaros. É só saber ver.

Agora sei que minha amiga rã estará lá no parque sempre. Se não ela, muita gente dela. Eu vou saber que elas estão lá. Não estarei mais sozinha no parque no meio de todas aquelas pessoas correndo olhando e falando no celular. E sábado que vem vou comer mais gente tua. E lembrar dela tranquila do meu lado dizendo que a vida é assim mesmo.

(Voltando ao exame. “. . . e nunca soubemos o que é fronteiriço . . .” Roubei o roupão de papel que usei por alguns minutos e que a enfermeira mandou jogar no lixo; achei desperdício. Vai ficar ótimo na peça!)[:]

A experiência / experimentação da música n’Os Sertões

  • e outros espetáculos

*especial para a revista A Bigorna – extraordinária – parte do livro dourado do Oficina 50+ – comemorativo dos 50 anos do Teatro Oficina

 

Chegada

Minha primeira experiência como atuadora no Oficina foi em Bacantes, na virada de 1999 pra 2000. Entrei com a função de aprender tudo e ensaiar as canções com os atores, na maioria não cantores. Tínhamos pouco tempo – depois aprendi a trabalhar com pouco tempo e a estar sempre preparada pra improvisar – inventar e atuar. Foi o começo de um trabalho que resultou no fortalecimento musical do coro do teatro e na ‘oficialização’ do aquecimento vocal diário como forma de afinar, timbrar as vozes, e também concentrar o elenco, ligando-o a partir dessa e nessa sintonia fina que é a música.

Ao longo desses anos no Oficina vivi diferentes processos de criação, talvez com a única característica comum de que nada nunca está nem estará pronto. Que tudo pode e vai sempre mudar. Pensando em música, ainda mais pra ser cantada em coro, essa mudança permanente parece de uma dificuldade intransponível, mas se revela de uma riqueza muito intensa com a prática. Perde-se muitas vezes em qualidade pela dificuldade de afinação, mas ganha-se em intenção, conteúdo e interpretação.

 

O coro

“O coro ditirâmbico recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para que eles, quando o herói trágico aparecer no palco, não vejam algum informe homem mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios.” (Friedrich Nietzsche, em “O Nascimento da Tragédia”).

Falando especificamente do coro, principalmente musical, sinto que um bom exemplo dessa busca do papel do coro, organicamente integrado com o conteúdo e com a atuação do público, é a montagem dos cinco espetáculos d’Os Sertões. Processo que abriu possibilidades para evoluções em trabalhos seguintes, como nos espetáculos Banquete, Macumba Antropófaga, Acordes e Cacilda!!!, onde partimos para complexas e sofisticadas divisões de vozes, de compositores como Villa Lobos e Paul Hindemith, e composições próprias já criadas para quatro ou mais vozes distintas.

Ah, os primeiros ensaios d’A Terra… Passávamos de três a cinco horas cantando diária e ininterruptamente, no início um grupo de treze pessoas que foi virando um coro potente e coeso. Primeiro o aquecimento vocal, e então um garimpo das canções que já haviam sido criadas em ensaios realizados dez, doze anos antes, em oficinas com Tom Zé, Denise Assunção.

Durante dois meses realizamos ensaios semanais gratuitos abertos ao público, onde usávamos ainda o livro, e arriscávamos todo tipo de invenção e improvisação a partir do próprio texto de Euclides da Cunha, na íntegra. Enquanto ensaiávamos no teatro durante a semana, Zé ia trabalhando a dramaturgia com outro grupo de artistas, a partir dos improvisos –muitos deles musicais- vividos com o público. Durante esse período eu era a única ‘música’ do grupo, e nossa base musical dos ensaios era o canto. No primeiro dia da primavera Zé conduziu o ensaio com o objetivo de compor o trecho que descrevia a primavera no Sertão, e compusemos juntos toda a sequência da exuberância das plantas da caatinga, com cada ator incorporado em sua planta que trazia sua musicalidade própria para ser cantada por ele ou em coro. Depois de meses cantando juntos tínhamos atingido uma intimidade musical que permitiu essa explosão de criação coletiva de cantos de primavera.

Seguimos com O Homem I, onde o coro atua cantando o tempo todo –mesmo nas pausas musicais. Canções que compusemos em sua maioria no calor dos ensaios.

Quando iniciamos o processo do espetáculo seguinte, ainda com o anterior em cartaz, sentíamo-nos esgotados em nossas possibilidades musicais. Resolvemos então encomendar música a compositores amigos do teatro. Realizamos leituras de mapeamento musical do texto, e de acordo com a cara da cena indicada pelo diretor, pensávamos em qual compositor se encaixaria melhor para cada momento. Foi assim que passamos trechos do texto para vários compositores, e as criações foram chegando. Adriana Calcanhotto, Sérgio Ricardo, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Jards Macalé, Lirinha, Júnio Barreto enviaram suas composições, além de Chico César, Péricles Cavalcanti e José Miguel Wisnik, que já haviam composto também para as partes anteriores. Cada canção que chegava era aprendida e cantada em coro, e muitas vezes ditava o caminho de criação da cena. Outras compusemos inspirados pelo estilo de compositores que foram simpáticos ao convite mas que que por motivos diversos não puderam compor, como Caetano Veloso, Marina Lima e Arrigo Barnabé.

Seguimos assim nos espetáculos A Luta I e II, e contamos ainda com composições de Arthur Nestrovski, Celso Sim, e continuamos criando nos ensaios. Nessa altura já formávamos uma ala de compositores com Marcelo Pellegrini, Karina Buhr, Adriano Salhab, Adriana Capparelli, Mariana de Moraes, Camila Mota, Otávio Ortega e eu mesma, além dos atores, que sempre colaboravam ora com ideias interessantes, ora com a contribuição milionária de todos os erros, muitas vezes mais inseridos no conteúdo da cena do que a criação original.

 

Coro Bixigão

Somado ao coro de atores trabalhamos também durante todo o processo d’Os Sertões com o coro do Movimento Bixigão, grupo de crianças e adolescentes do bairro do Bexiga, moradores vizinhos ao teatro. Além da contracenação nos espetáculos, construímos uma comunicação imediata através da música. Tanto nas cantadas em coro nas peças, como nas canções de aquecimento, que nos uniam num repertório comum, fazendo-nos parte de um grupo com uma mesma e própria linguagem. Desenvolvemos paralelamente o projeto Revista Bixiga Oficina do Samba a partir dos sambas do Bairro do Bexiga – os do Oficina inclusive -, o que concretizou em música a ligação com o entorno do teatro, com a Escola de Samba Vai Vai, com a história musical do bairro e a ligação com o processo de pesquisa e criação d’Os Sertões, numa busca coletiva e individual das próprias origens, chegando numa identidade comum de sertanejos urbanos da periferia do centro, o tipo brasileiro sem tipo.

 

MOMENTOS DE PROCESSOS DO CORO PROTAGONISTA

Zagreb, Croácia, e Teatro Oficina São Paulo, 2009. Leitura encenada d’O Banquete de Platão – pra levantar com uma pequena equipe do Oficina e atores e músicos croatas, depois montagem em São Paulo. Importamos um canto eslavo de fertilidade e renascimento, Oj Dodole, cantado lá por um coro feminino. Os ensaios em São Paulo começaram com o aprendizado desta canção, adaptando para um coro misto. Idioma croata cujo som nos remetia a línguas indígenas daqui, abaixo da linha do equador.

São Paulo, abril 2011. Montagem da Macumba Antropófaga, a partir do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. Começamos os ensaios com o aprendizado dos coros do choro no. 10 e de Mandú Çárárá de Villa Lobos. Divisão de vozes difícil para um grupo pequeno de atores e quatro músicos. Adaptação do arranjo de orquestra para a banda, com ênfase no ritmo. Sem quórum suficiente pra todas as vozes necessárias, adaptações.

Setembro 2012. Acordes. Transcriação da obra de Paul Hindemith e Bertolt Brecht. Apresentando Macumba Antropófaga no interior de São Paulo e ensaiando Acordes no Oficina entre uma cidade e outra. Divisão de vozes, intervalos difíceis. Música alemã, contagens retas, ritmo quase marcial. Adaptação do texto em português a partir do alemão, encaixando na partitura pra quatro e mais vozes. A cada noite após o trabalho árduo de tirar a música do papel e conseguir cantar em coro, enviávamos pros diretores que detestavam tudo, achando a música muito dura e cantada sem interpretação. Verdade. Nos concentrávamos tanto pra acertar a nota que o sentido não aparecia. Ainda. Isso viria com a repetição e ensaios. Mas como convencer o diretor?

Setembro 2013. Cacilda!!! Como em muitos processos, dificuldade inicial de juntar as pessoas. Buscar união do coro com um novo desafio. Executar partituras difíceis, divisão de muitas vozes, intervalos estranhos. Decidimos começar os ensaios com o Pica Pau – choro n.3 de Villa Lobos.

O processo de criação musical já tem uma cara, quase um método, desenvolvido ao longo de anos de trabalho, longos ensaios dedicados muitas vezes à criação da música de uma única cena, que depois pode vir a ser descartada. O não método. Um dos músicos traz uma ideia musical, uma canção. Que vai sendo modificada a partir da cena, do ator/atriz que vai cantar, do coro que canta junto, do Zé que canta a cada momento uma melodia e ritmo diferentes, mas dando a direção do que quer como interpretação. É nesse ponto que entramos sempre no mesmo conflito. Eu tentando definir melodia e ritmo, para que possam ser apreendidos e cantados. Principalmente se for em coro. Por um coro de não músicos, que não tem a destreza de improvisar ou inventar vozes harmônicas, ou executar um ritmo comum a partir da comunicação do olhar, ou feeling comum. A necessidade de repetir. E a direção que diz que a interpretação, o sentido do que se canta é que vai trazer a afinação e a necessidade do ritmo. E eu penso: um ator precisa do texto pra daí experimentar interpretações, criar a partir da direção. Um cantor ator precisa da melodia, das notas musicais que serão seu texto, e ao menos da sugestão do ritmo. E lá se vão minutos preciosos do ensaio no embate do ovo ou da galinha, notas musicais/melodia e ritmo definidos versus incorporação/interpretação. Apolo e/ou Dionisio?

E a certeza de que canções criadas assim, no calor do ensaio, com a presença e energia de todos, e pequenas contribuições melódicas de um ator mais musical, ou mesmo do ‘erro’ de muitos, resultam em canções totalmente incorporadas ao texto, conteúdo e cena, e apropriadas em cada nota e tempo por todos os atuadores presentes. O prazer de cantar isso em coro a cada apresentação, e mesmo a cada ensaio é contagiante. É esse contágio que vai vencer o desafio de excitar o ânimo dos ouvintes.

Outubro 2013