[:pb]Edilson Eduardo Santos[:]

[:pb]

Essa foto bateu como um espelho trágico. Parece que estou vendo o que vem pela frente, e uma sensação de não saber o que fazer pra impedir, ou ao menos saber enfrentar o que for se descortinando como futuro. Já o Edilson está sereno, como que vendo o que vai acontecer, e se preparando para viver o que a vida apresenta pra ele. Uma sabedoria de amor aos fatos. Um sentimento trágico da vida.

Aí somos mãe e filho. Fui mãe dos irmãos Edísio, Edna e Edilson em vários momentos da montagem d’Os Sertões. E também na hora de passar com nossa felicidade guerreira na imigração entrando na Alemanha (pra apresentar os espetáculos), mostrar passaportes, enfrentar aquela cara de desprezo dos fiscais olhando para os pobres do terceiro mundo entrando em seu lindo e rico país. Somos parecidos, da mesma cor, da mesma mistura de preto, branco e índio (que não existe, mas como ainda chamamos qualquer povo originário desse sertão). Ele é Antônio Conselheiro menino, nascido no meio de uma guerra de famílias, comum até hoje tanto nos cafundós do sertão brasileiro como nas imensas e provincianas capitais do país. Nesse rápido momento da peça tínhamos uma intimidade tão grande, ele sentava ali comigo, entregue, tranquilo, e olhávamos o destino trágico à nossa frente.

Ali estávamos bem. Estávamos juntos. No teatro vivíamos um momento muito especial, que começou com uma leitura em voz alta d’Os Sertões de Euclides da Cunha por um coro gigante, e que seguiu por mais sete anos, até a última apresentação dos cinco espetáculos no sertão da Bahia, em Canudos, onde a esperança de uma outra sociedade possível despontou como uma flor de cereus, e acabou queimada pelo exército brasileiro e depois alagada pela ditadura militar, submersa pelo açude de Cocorobó em 1969.

Foram anos de mergulho na história e identidade de cada um que participou do processo, na identidade de um país, uma nação, uma grande multidão de gente acreditando num mundo mais legal (sem jogo de palavras ou com, a lei, ora a lei . . .), mais divertido, mais cheio de música, dança, comida boa, e o amor é livre e grande demais, pra ser julgado por nós, pobres mortais . .. anos de alegria é a prova dos 9, viajando pelo Brasil, pelo mundo, conhecendo gentes e lugares, com artistas fugindo com o circo e vindo fazer parte da equipe sertaneja. Brasil afora, sertão adentro.

Bixiga adentro também com o samba do Bixiga, samba de multidão, coro d’Os Sertões, sambistas da Vai Vai, do bairro, o Revista Bixiga Oficina do Samba. Nos reconhecíamos nas diferenças, e a capoeira, o circo, o teatro e o samba nos fortalecia. Não à toa foram anos que coincidiram com os governos Lula, e o luxo dos ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, até o lançamento dos DVDs em 2010.

Só uma reflexão de saudade do Edilson, de nós, da esperança que esse momento significou e significa. Que ele e ela continuem esquentando nossos corações, é esse sonho possível que nos fortalece agora e sempre.

#ethernidade

#edilsoneduardo

#ossertões

#Haddad13

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[:pb]Moléculas de água e mundos de plástico[:]

[:pb]

foto Chico Castro

 

A partir da informação de que nosso corpo humano é constituído de 60 a 70% de água, me instiga saber como as moléculas de água reagem aos sons (o pesquisador japonês Masaru Emoto inventou um experimento para fotografar cristais de água congelada que haviam ‘ouvido’ sons diversos; as formas encontradas são inúmeras, diversas e impressionantes). Basicamente então, a água expressa como grande parte do nosso corpo reage aos sons. Os outros 30, 40%, pelo andar da indústria alimentícia, devem estar constituídos em boa parte por plástico, já que numa velocidade assustadora tudo o que comemos vem sendo adulterado e acobertado pelo imenso poder financeiro desta mesma indústria. E o plástico é a matéria da vez. Somos água e plástico.

A proposta original da minha segunda pele seria um penetrável de água envolta em plástico e duas caixas de som potentes ao redor. Para qualquer um de nós penetrar, sentir a água e o plástico em volta como uma segunda pele e sentir o som vibrar pelo corpo através da água. O plástico formaria a superfície de contato. Orelhas sensitivas de água e plástico espalhadas por todo o corpo, proporcionando uma outra percepção do som. Ouviríamos então ali as canções dos espetáculos d’Os Sertões que eu havia citado nos textos anteriores.

Como o resultado esperado da proposta segunda pele seria principalmente visual já que a ser fotografado, e não haveria tempo para outras pessoas penetrarem minha instalação, aceitei o som ambiente discreto (que estava acontecendo no teatro) e penetrei eu mesma minha extensão aquo-plástica, e ao invés de me concentrar para tentar sentir o som através da água, ou ampliar minha percepção auditiva vibracional do corpo todo, experimentei um prolongamento do meu corpo em contato com o plástico, a água, e através da luz.
Qual é o limite do meu corpo? Até onde nossos sentidos – audição, visão e tato – estão sub-utilizados, sub-explorados? Como experimentar uma possível ampliação dos sentidos? Como sentir o próprio corpo a partir de elementos externos?

E para fechar com chave de ouro o semestre das Arquiteturas do Corpo, Oswald de Andrade, hoje e sempre: “a alegria dos que não sabem e descobrem.”

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[:pb]a rã do parque da aclimAção[:]

[:pb]Voltando de um exame ultrassom transvaginal passo no parque. Aproveitar que moro perto de um numa cidade como São Paulo. O médico passou o gel e enfiou aquele pau eletrônico com camisinha em mim, saí de lá com fotos dos meus ovários, do útero e outras coisas. Tudo muito asséptico mas mesmo assim me fez lembrar que sou um corpo. E que no geral a gente esquece dele e de tudo que tem dentro.

Me dou um tempo pra meditar o que faltou no parque. Sentei de frente pro lago, por do sol, árvores, pássaros cantando. Estou ali há alguns minutos e um barulho no chão de folhas ao lado. Abro o olho e . . . uma rã !

Deu uns três pulos, passou calmamente na minha frente. Eu imóvel, agora de olhos abertos, observo. Ela parou um pouco à minha direita e ficou imóvel como eu.   De vez em quando os olhos se mexiam. Eu só via o olho direito, aquele olho fora do corpo, mas imaginei que ela mexia os dois ao mesmo tempo. Na verdade poderia ser um sapo, mas acho que era uma rã. Uma sapinha.

Ficamos ali as duas, meditando. Observando. Ela de um verde meio musgo, diferente das folhas do chão. Há quatorze anos frequento esse parque – moro do lado desde então – e nunca tinha visto uma rã ali. E agora estávamos as duas lado a lado em silêncio, meditando, observando o sol se por. Logo pensei nas rãs que tenho comido todo sábado e domingo por volta das seis da tarde. Eu não, Tarsila. Mas eu também. E as falas do Oswald na cabeça “é, eu comi muito, muita gente tua. Tanta gente tua eu tracei que de tanto comer enjoei.” Daí o Murubixaba, “você se empanturrou dos nossos, deixa de prosa, por isso tua carne é gostosa !” E eu ali, do lado da rã, ouvindo isso dela.

É, eu comi muita gente tua. Tanta gente tua eu tracei que de tanto comer, enjoei. Não, eu não enjoei. Só estava um pouco envergonhada ali ao lado dela. E ela tranquila, parecia me perdoar, entender. É a natureza, é isso mesmo. Eu sei, ela dizia.

“Um ser desprovido de razão seu semelhante não come. Como pode um homem comer outro homem?” Uma sapa comer outra sapa? “Somos todos bichos humanos iguais . . . ..”   e a música peça que não sai da cabeça.

Que nobreza essa rã. Me perdoar assim, do nada, e me deixar ficar ao seu lado, as duas observando o lago, a sol – que na peça o sol é a sol -, as árvores, o vento. As pessoas passavam no caminho embaixo, cada uma com seu celular ou seu cachorro. Crianças de bicicleta, patins. Até uma mulher com araras coloridas treinadas. E nós ali, imóveis, eu pensando nas rãs que comia todo final de semana, tentando então aceitar que essa é a lei da vida. Antropofagia. Depois todos viramos terra mesmo, essa aqui bem embaixo das nossas bundas. Aliás como as pernas dela parecem as minhas. Abaporu.

Macumba Antropófaga – Teatro Oficina 2017 – foto Jennifer Glass

E nós ali. O relógio da igreja bateu quatro vezes, quatro horas. Sol de inverno, vento nas folhas, cantos de pássaros, uns três cantos diferentes, não sei qual de qual. Ela imóvel e eu também. Comecei a pedir perdão a ela. Envergonhada de todas as rãs que comi na vida e ao mesmo tempo aceitando, como ela mesma parecia dizer mantendo-se calma ali do lado, a vida é assim mesmo. De vez em quando um barulho de gente me desviava a atenção dela, e quando eu voltava os olhos pra onde ela estava, por alguns segundos não conseguia vê-la. Ela da cor das folhas, da textura do chão, imóvel ali, ela era o chão e as folhas e a terra. Quantas coisas vemos mas não enxergamos. Olhamos mas não distinguimos. Porque não conhecemos ou simplesmente porque não estamos ali. Porque não sabemos ver. Não queremos. Ignorância ou desinteresse. Mas logo eu a via de novo, e continuávamos ali, lado a lado, existindo.

Quando criança passava férias no Rancho Alegre – a alegria é a prova dos nove ! é é é ! ! ! – e os primos saíam à noite com os adultos da região pra caçar rãs e tatus. Apesar de gostar de alguns programas ‘dos meninos’, nesse eu nunca quis ir. Via aqueles paus com a ponta afiada e não conseguia imaginar como alguém pode ser tão cruel pra querer espetar aquilo numa rã indefesa ou num tatu perdido no mato. A caça era à noite, com a lanterna eles os cegavam, e daí conseguiam atacá-los atordoados. Eu achava aquilo um horror mas depois comia a rã bem feliz. Agora pedia perdão também por essas rãs devoradas no passado. Mas a vida é assim mesmo, ela continuava me dizendo e me aceitando em silêncio ali quieta.

Estava ficando tarde, minhas pernas doíam de muito tempo na mesma posição. Meditando, evitando a dor de cabeça. Mais de quarenta anos tendo enxaqueca e de repente eu sabia lidar com ela, não tinha mais. Queria dizer isso pra todo mundo, escrever receitas de como acabar com sua enxaqueca, mas quem iria ouvir ou ler? Tentei umas vezes logo que voltei do meu retiro meditativo mas entendi que não é bem assim. Pensava na enxaqueca que aprendi a conhecer e que não tenho mais, ou tenho mas agora sei contracenar com ela, e me lembrei da sapinha ou sapinho meu amigo lá da praia. Numa das outras encarnações construí uma casa na praia e ficava lá às noites sozinha na casa em construção, e por um bom tempo tive um amigo sapo. Bem pequenininho, vinha ficar comigo à noite na cozinha. Ou ao lado da cadeira de balanço onde ficava olhando as árvores e o mar. A mar, que no teatro é a mar. Ficávamos ali em silêncio. Ele mexia pouco, de vez em quando comia um pernilongo. Até que um dia ele ficou tanto tempo na mesma posição sem comer nenhum pernilongo que estranhei. Fui dar uma cutucada nele e vi que tinha morrido. Enterrei ele ali na frente da casa. Fiquei com saudade nas noites solitárias seguintes, e muito de vez em quando depois, como agora, lembrava dele.

E a sapinha continuava ali. Deu mais uns dois pulos, agora pra frente. Pensei em toda a cena da peça, Tarsila e Oswald vendo as rãs, ouvindo o Pica Pau do Villa Lobos, às vezes cantando um pouco junto, com o absinto ainda descendo quente. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Ela não era minha inimiga. Eu é que era a inimiga dela ali. É, eu comi muito, muita gente tua. Meu corpo tinha gente dela nele, talvez por isso ela se sentia bem ali do meu lado. E eu também do lado dela. Pensando que depois nós duas viraremos terra. Em como será que morrem as outras rãs. As outras, como ela, que não são assassinadas para serem devoradas em peças de teatro, sítios ou restaurantes. Será que elas apenas morrem como o sapinho da praia, ou são capturadas e devoradas por animais maiores? Ela parecia não se importar com nada disso, ainda imóvel ali na minha frente. Só de vez em quando um movimento dos olhos.

Eu começava a pensar que precisava ir embora, que nem tinha almoçado ainda, mas estava tão bom ali do lado dela. Éramos dois seres vivos, mais vivos que as pessoas embaixo com os celulares e os cachorros. Bobagem, ninguém mais vivo que ninguém, mas eu ali com ela entendi os deuses. As deusas. Na verdade não entendi nada, mas vi a vida nela.

Foi difícil me despedir. Ficava olhando pra ela. Desviava o olhar e olhava de novo, até conseguir distingui-la no meio das folhas e do chão da terra, todos os tons de verde e marrom. Ela ali. É que eu não tinha vontade de ir embora. Era bom ficar ali com ela. Fui indo devagar, peguei a bicicleta, ela imóvel, achando tudo muito natural. De repente eu olhava pro mesmo lugar e só via folhas e chão. Daí aguçava o olhar e a via de novo. Fui me despedindo assim. E no caminho de volta ainda encontrei o Pica Pau comendo o mamãozinho dos pássaros. É só saber ver.

Agora sei que minha amiga rã estará lá no parque sempre. Se não ela, muita gente dela. Eu vou saber que elas estão lá. Não estarei mais sozinha no parque no meio de todas aquelas pessoas correndo olhando e falando no celular. E sábado que vem vou comer mais gente tua. E lembrar dela tranquila do meu lado dizendo que a vida é assim mesmo.

(Voltando ao exame. “. . . e nunca soubemos o que é fronteiriço . . .” Roubei o roupão de papel que usei por alguns minutos e que a enfermeira mandou jogar no lixo; achei desperdício. Vai ficar ótimo na peça!)[:]

[:pb]Nota da tradutora d’As Onze Mil Varas, de Apollinaire[:]

[:pb] 

quentinho da gráfica, já nas livrarias.  feliz de traduzir – e ver o livro pronto! – um autor tão livre e inventivo com as ideias e com as palavras, nessa ordem e vice-versa.  uma nota da tradutora pra me explicar, me absolver desse ofício tão desafiador, estimulante e inspirador.  e que dá um trabalho ! . . . . .

 

sobre erotizar a própria linguagem

na orelha do livro, por Contador Borges: “em As Onze Mil Varas, as peripécias libertinas não se fazem sem erotizar a própria linguagem (o que se deixa ver muito bem na tradução de Letícia Coura), produzindo um efeito de significância, aquilo que Roland Barthes define como produção sensual dos sentidos.  É nesse ponto que a experiência erótica e a poética coincidem”.

 

 

Nota da tradutora

Nota do tradutor já é estranha em si, já que o tradutor ideal talvez seja aquele ser invisível, que cumpre quieto seu trabalho de fazer chegar em seu idioma as palavras do autor a seus leitores e ponto. Mas o fantasma do tradutor traidor, a angústia da consciência do perigo de se perder um sentido, um duplo sentido, triplo, um jogo, uma invenção, uma possibilidade… parece impor que se apresente uma justificativa, um álibi, ou ao menos que se explique esta ou aquela decisão, a escolha de uma certa palavra, vírgula, tempo.

Me faz lembrar um dramaturgo alemão que afirmou traduzir um autor que admirava justamente porque não falava seu idioma, o francês, e queria compreendê-lo em sua própria língua. Ao que o autor respondeu muito feliz que queria mais era ser reinventado por seu tradutor, já que a admiração era recíproca. Ok, situações como essa não se repetem tanto, mas são uma lembrança estimulante pros piores momentos.

Na verdade sabemos que as palavras têm vida própria, escolhem onde querem estar, que sentido dar às coisas, ações, sensações, sentimentos. O que fazemos é humildemente dar passagem a elas, mesmo que seja apenas de um idioma pra outro.

Então, minha defesa. O que me trouxe a esta árdua, ousada e fascinante tarefa de tradução foi primeiro a música e quase junto o teatro.

Há muitos anos introduzi em meu repertório uma canção de Boris Vian, e me frustrava quando cantava em francês e percebia que ninguém se divertia tanto com a letra como eu. Aí sim, me sentia traindo o autor. Fiz então uma primeira versão para o português que acabou levando a outras, que acabaram virando um cd, que acabou virando um espetáculo meio cabaré que fizemos na abertura dos Satyros na Praça Roosevelt em São Paulo, com direção de Rodolfo García Vazquez e com o ator Ivam Cabral como um anagrama de Vian, o pianista Beba Zanettini e o percussionista Vítor da Trindade como parceiros de cena. As palavras cantadas e faladas em português e francês se encaixaram bem, era tudo música.

Paralelamente, conheci através da poeta e diretora de teatro Beatriz Azevedo o dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès, e aqui a necessidade da tradução se deu pelo projeto de montar um espetáculo, que resultou em um mergulho na obra dele, com o estudo de várias peças, entrevistas, artigos, críticas, onde tive a sorte de ir lapidando as traduções a partir das leituras de atores como Maria Alice Vergueiro, Fernando Peixoto, Magali Biff , Adílson Barros e tantos outros que participaram do processo.

Tudo isso pra situar que o que sempre me guiou na tradução foi a música e a teatralidade do texto. A vontade da palavra viva. E neste caso específico d’As Onze Mil Varas, de Guillaume Apollinaire, o ritmo das cenas.

As barreiras da época em que foi escrito, do tom de um outro idioma, tentei transpor deixando o ritmo e a necessidade das cenas falarem por si. O jogo entre a liberdade e violência descaradas e as formalidades ‘civilizadas’, o uso de expressões populares ou de época, gírias, deram o tom do autor aos diálogos e narrativas, e a dica para a tradução. E nos momentos mais quentes, uma pequena fugida do esmero nas concordâncias gramaticais. Pra não perder o compasso.

E a opção por algumas traduções literais com pequenas notas explicativas. Como não traduzir literalmente o ato de fazer ‘pétala de rosa’ em alguém? Mesmo que tenha sentido a necessidade de explicar a expressão que se refere a uma lambida no cu, optei por deixar a beleza da imagem quase falar por si.

Que essas pequenas enormes traições então continuem, se assim quiserem, e que venham mais libertinos franceses, com muita música e ação.[:]

[:pb]On Se Comprend, Sans Tradução, ou Tradução / Traição . . .[:]

[:pb]Estou penando aqui pra traduzir Alfred Jarry. Ontem fiz faxina na casa, usei a furadora que esperava há dias na sala pra ser usada e instalei finalmente a rede da subida do rio Amazonas, li os atrasados guardados, estudei, lavei louça, roupa, e mais, mais, tudo pra postergar um pouco mais o momento da dúvida, esta ou aquela palavra, ou será que tem outros sentidos que não descobri, será que ele quis dizer exatamente o contrário, tem humor, ironia, ou desta vez ele está apenas dizendo o que queria dizer, simplesmente, ou, ou . . . .

Dessas torturas que a gente cria pra gente mesmo, aquilo que eu fazia com prazer e simplesmente porque queria, de repente é uma responsabilidade, um compromisso, um trabalho, daí tudo outro parece melhor e mais importante e mais urgente.

Só pra dizer que sofro aqui traduzindo, mas gozo gozo, quando descubro a palavra certa, ou invento algum sentido, ou entendo ou acho que entendo o que ele quis dizer. Não posso perguntar pra ele o que ele quis dizer, mas se fosse possível, será que perguntaria?   Na minha (nada) humilde e árdua tarefa de tradutora, às vezes me sinto tão escrava e outras tão livre, resumindo, é bom. Eu gosto. Sofro sofro, mas qual delícia não sofre junto??

capa cd Hortênsia du Samba

capa cd Hortênsia du Samba

E nesses labirintos das línguas, hoje fiquei feliz de saber que nosso cd bilíngue, bi várias coisas, parcerias variadas, nosso Hortênsia du Samba, parceria do Revista do Samba (esse trio que me dá tantas alegrias há tantos anos, com meus parceiros Vítor da Trindade e Beto Bianchi) e da banda francesa Tante Hortense, está agora disponível nas redes de música virtual, ITunes, Spotify, Deezer, e tal. Foi um trabalho tão único, invenção e proposta do compositor francês Stéphane Massy, que conheci por causa e no Teatro Oficina, e que nos convidou – o Revista do Samba – pra fazer um trabalho juntos. Nos reunimos primeiro em São Paulo para as criações – já havíamos trocado algumas ideias virtualmente – e primeiros shows, daí logo gravamos. No Estúdio Outra Margem do Paulo Lepetit, com produção musical luxuosa dele. Isso foi em 2009. Em 2011 fomos à França lançar o cd, com shows em Marseille, Paris, Aix-en-Provence e Lille. Daí ficou a vontade de tocar mais juntos, fazer mais coisas, e acho que nesse ano de 2017 conseguiremos. O cd teve uma primeira tiragem, que já está esgotada, tivemos tipo um tube, a canção Le Bel Amant du Berry, que entrou na programação de algumas rádios francesas, críticas boas por lá, e agora que bom!, hora de divulgar de novo. Não chegamos a fazer shows de lançamento aqui, com o cd já pronto, mas enquanto gravávamos tocamos no Oficina e na Cidade Tiradentes, o que foi bem ótimo e nos preparou pros shows franceses. Nos demos bem em cena.

O trabalho de criação em parceria foi uma experiência de ter que criar alguma coisa naqueles dias com aquelas pessoas. Algumas já íntimas pessoal e artisticamente e outras que conhecíamos ali naquele dia e hora. A banda Tante Hortense: Stéphane Massy que inventou a história toda, que já era um amante do Brasil, da música daqui, compositor cheio de ideias e muitas palavras, M-Jo cantora doce, minimalista, alquimista de sons sutis, Christophe Rodomisto, guitarrista elegante e chic das melhores notas, Jean-Phi baterista amante e parceiro de teatro e dança, e meu companheiro cavaquinista Eddy, com seu jeito marselhês único de tocar cavaco, e nós três, os Revistas: Vítor com seu mundo dos ritmos e ancestralidades, Beto com suas harmonias pop e swing contradizendo a máxima infeliz do poeta, e eu com a minha cara-de-pau esculpida no teatro e meu cavaquinho Paulinho da Viola. Numa casa lá no Embu das Artes e depois aqui em SP, Oficina, estúdio e os shows, tocando e cantando juntos.

As canções, algumas já prontas que encaixavam no projeto, outras feitas nas parcerias com prazo determinado, parcerias de dois, três, quatro, ideias nascidas ali, todos criando o arranjo juntos – no total somamos 8, 5 do Tante Hortense e 3 do Revista do Samba.  Misturar os idiomas, trocar as línguas, musicar palavras francesas com ritmos brasileiros e vice-versa, cantar em português e francês, inventar uma língua comum, a compreensão e não compreensão. Duas canções que falam disso, On Se Comprend e Sans Tradução, o amor entre uma brasileira e um caipira francês, Le Bel Amant du Berry, a São Paulo Big Brother Grande Irmão, o samba-enredo da cidade do Rio de Janvier em francês, uma Baleia no rio Sena, uma Piroca no pulso, uma tristeza com algo de chic na bossa Je Suis Aussi, La Révolution que começa pelo cu, La Vache surrealista e a máquina de moer tudo isso e mais outro tudo, Moissonner et Battre. Uma viagem a partir das cinco semanas que experimentamos criar juntos, trabalhar e dividir intimidades e dia-a-dia.

(*pra ouvir as canções é só teclar no título da música em azul).

Pra quem entende as duas línguas ouvir pode ser uma viagem divertida e cheia de sentidos, pra quem entende uma pode adivinhar a outra na música, talvez entenda mais, descubra outros sentidos. Pra quem gosta desse mundo da tradução traição, um descanso, ou um desafio, ou um deleite.

Escrevi tudo isso pra fugir um pouco do Jarry, e volto a ele já com saudade. Um pouco mais musical. Fica a dica então, entra lá – ou por aqui mesmo – e ouve. Hortênsia du Samba. Um exercício real pra compreensão do outro, ou puro deleite. Um pouco mais disso no mundo e estaríamos mais em paz.

 

De onde apareceu, passou, já foi

ou vai ser bom

Dans la confusion

J’étais content . . . . .

 [:]

Bacantes praticantes nas Satyrianas – Então é isso?!

capa

capa do livro com a bacantinha

Então é isso?!   Será que finalmente estou conseguindo parar com as vidas paralelas? Amanhã é lua cheia na Praça Roosevelt, e lá vamos nós com Então é isso?! nos Parlapatões, nas Satyrianas da Phedra. Morei lá antes dos Satyros e fiz essa canção – Lua Cheia – esperando um amor voltar do ensaio eterno de Bacantes no Teatro Oficina . . . hoje estou fazendo Bacantes (de novo!) no Oficina, postando a Lua Cheia que foi composta ali de frente pra Praça, pra lançar o livro que tem o conto Praça Roosevelt, escrito ali também, antes da praça ser o que é hoje, cheia de teatro e de gente. E de lua.

E com parceiros colegas de camarim e de tantas ali do terceiro andar . . . Marcelo Drummond, sempre Dionisios mesmo quando nem sabe, parceiro silencioso de carnavais e ótimas e bad trips, Sylvia Prado, Cacilda, mana teus cabelos mana . .. e tantas, cabrocha do samba no Bixiga, parceira de Bixigão e carnavais, Dani Rosa, rainha da bateria, parceira de voz, de confissões de camarim e samba no pé e nos quadris pelas ruas de Oropa França e Bahia, Joana Medeiros, irmã incestuosa Cadméééééia, do olhar e palavras de loucura sagrada, pipoca e videogame, Wallace, cabelos de fogo e entusiasmo exuberante e doce, desafio novo e instigante. E uma surpresa da noite, que pode vir ou não, a caligrafia milenar aqui agora, de rua, desenho do nome.

Bacantes praticantes no trabalho diário do teatro, no vagabundear sem descanso das artes. Mais um Então é isso?!, de descoberta, contos que mudam de cara e de voz, diferentes e novos a cada leitura. E mais uma vez aquele obrigadíssima a todos que emprestam sua voz e corpo a esses personagens que foram aparecendo aqui e ali e me azucrinando até conseguirem existir em palavra e som. A alegria é a prova dos 9 ! ! ! ! M E R D A ! ! ! ! !

Ouça a faixa 8 – é a Lua Cheia.

uma bacante em BH – Então é isso?!

2016-09-03-23-06-021

É quinta-feira agora, 27, Então é isso?! em BH.  A alegria é a prova dos 9 ! !

Acabamos de estrear Bacantes no Teatro Oficina em São Paulo, então essa bacantinha – que está na capa do livro Então é isso?!, nele todo e aqui dentro – liga uma coisa na outra, minhas vidas paralelas e uma só, a bacante no teatro, na música, e agora na literatura… há mil anos atrás quando corria criança atrás de brindes em uma exposição no Palácio das Artes, uma das moças que distribuía alguma inutilidade me deu vários brindes e me parabenizou pela minha cara-de-pau. Então é isso?!

Muito feliz por estar na terrinha, Belo Horizonte de tantas madrugadas pelas ruas, tantas histórias, sonhos, amigos, e tragédias também. Tragicomediorgyas da vida . . . e muito contente por estar tão bem acompanhada nessa minha noite de estreia ! !

Rodolfo Vaz, amigo de tantas, que re-conheci no teatro, sempre presente de perto e de longe, ator que surpreende em cada mergulho no escuro, Brisa Marques que encantou todo mundo quando viemos com o Oficina pras Dionisíacas em BH em 2010, Marcelo Veronez que também apareceu pra mim nessas Dionisíacas, e que depois surpreendeu como cantor, e Ulisses, meu mais recente amigo de infância, companheiro das letras, da animação e do humor, leitor interessado e interessante ….  E o meu cavaquinho, companheiro fiel de tantas…

E o livro? Eram contos, que de repente passaram a se chamar livro com Maria e Ulisses. Começou no blog do site, criação da dupla Brenda&Maria, que abriu de novo o caminho das letras. Aimar Labaki, lá de outros carnavais, que de um café mostrou o caminho das pedras, Alex que arriscou e chegou no ritmo acelerado que bateu com a urgência da vontade, Marcia Tiburi que amorosamente se divertiu e escreveu o prefácio, Welington Andrade que emprestou sua erudição despretensiosa, Beto Mettig que lá da Bahia de São Salvador compartilha seus tesouros.

Tantas histórias e tanta gente ali. Amigos amantes que deram sua atenção e suas vozes, que leram antes, Fábio, Márcia, Adriana, Samuel, Beatriz, Nana, Ana, Ivam, Maria, Ulisses, Verônica. E agora já imaginando meus próximos amigos íntimos, venham, possíveis leitores …

Ritmo de formatura, ou primeira comunhão, ou primeira apresentação do teatro ou coral da escola. Do pré. Feliz pacas – pra lembrar de outros tempos e homenagear os animais. Bacante praticante. Méééééé ! ! ! ! ! !

confirme aqui sua presença no evento do facebook.

escrever. . . então é isso?!

Essa é a Praça Roosevelt. Desenhei pra me acalmar com a ideia da publicação.  Foi meu primeiro conto lido em público, pelo Ivam Cabral, antes da praça ser o que ela é hoje, mas ali mesmo, nos Satyros, lá pelos idos presentes do iníCio desse milênio.

Essa é a Praça Roosevelt. Desenhei pra me acalmar com a ideia da publicação. Foi meu primeiro conto lido em público, pelo Ivam Cabral, antes da praça ser o que ela é hoje, mas ali mesmo, nos Satyros, lá pelos idos presentes do iníCio desse milênio.

 

Então é isso?!   É quinta agora ! ! !   dia 13, das grandes transformações…

Especialíssimas as intervenções que acontecerão na noite de lançamento em SP, presente de amigos artistas que admiro tanto, que tive a alegria de conhecer trabalhando junto. E que também misturam as artes, do teatro, das letras, da memória, da história, da imagem, luz, artes plásticas. Verônica, com seu Fantasma do Circo tão concreto que se mistura com a própria história do circo no Brasil, Ivam, que além de ator emocionante criador de seus personagens e ator da vida da cidade é dramaturgo, escritor das terras de Cabral e outras histórias, Mariano parceiro do Oficina e vários carnavais, vizinho de muro por 3 meses, artista gráfico de tantas imagens e letras, Sônia parceira de figurinos exuberantes e aventuras na Amazônia, que me mostrou os caminhos da caligrafia e desenhos da tinta preta, Banti criador de densidades de luz e sombra, Lua Lucas, ator atriz, cantora, escritora de interessantes crônicas pessoais do cotidiano. E o meu cavaquinho, companheiro fiel de tantas…

E o livro? Eram contos, que de repente passaram a se chamar livro com Maria e Ulisses. Começou no blog do site, criação da dupla Brenda&Maria, que abriu de novo o caminho das letras. Aimar Labaki, lá de outros carnavais, que de um café mostrou o caminho das pedras, Alex que arriscou e chegou no ritmo acelerado que bateu com a urgência da vontade, Marcia Tiburi que amorosamente se divertiu e escreveu o prefácio, Welington Andrade que emprestou sua erudição despretensiosa, Beto Mettig que lá da Bahia de São Salvador compartilha seus tesouros.

Tantas histórias e tanta gente ali. Amigos amantes que deram sua atenção e suas vozes, que leram antes, Fábio, Márcia, Adriana, Samuel, Beatriz, Nana, Ana, Ivam, Maria, Ulisses, Verônica. E agora já imaginando meus próximos amigos íntimos, venham, possíveis leitores …

Ritmo de formatura, ou primeira comunhão, ou primeira apresentação do teatro ou coral da escola. Do pré. Feliz pacas – pra lembrar de outros tempos e homenagear os animais. Bacante praticante. Méééééé ! ! ! ! ! !

A experiência / experimentação da música n’Os Sertões

  • e outros espetáculos

*especial para a revista A Bigorna – extraordinária – parte do livro dourado do Oficina 50+ – comemorativo dos 50 anos do Teatro Oficina

 

Chegada

Minha primeira experiência como atuadora no Oficina foi em Bacantes, na virada de 1999 pra 2000. Entrei com a função de aprender tudo e ensaiar as canções com os atores, na maioria não cantores. Tínhamos pouco tempo – depois aprendi a trabalhar com pouco tempo e a estar sempre preparada pra improvisar – inventar e atuar. Foi o começo de um trabalho que resultou no fortalecimento musical do coro do teatro e na ‘oficialização’ do aquecimento vocal diário como forma de afinar, timbrar as vozes, e também concentrar o elenco, ligando-o a partir dessa e nessa sintonia fina que é a música.

Ao longo desses anos no Oficina vivi diferentes processos de criação, talvez com a única característica comum de que nada nunca está nem estará pronto. Que tudo pode e vai sempre mudar. Pensando em música, ainda mais pra ser cantada em coro, essa mudança permanente parece de uma dificuldade intransponível, mas se revela de uma riqueza muito intensa com a prática. Perde-se muitas vezes em qualidade pela dificuldade de afinação, mas ganha-se em intenção, conteúdo e interpretação.

 

O coro

“O coro ditirâmbico recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para que eles, quando o herói trágico aparecer no palco, não vejam algum informe homem mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios.” (Friedrich Nietzsche, em “O Nascimento da Tragédia”).

Falando especificamente do coro, principalmente musical, sinto que um bom exemplo dessa busca do papel do coro, organicamente integrado com o conteúdo e com a atuação do público, é a montagem dos cinco espetáculos d’Os Sertões. Processo que abriu possibilidades para evoluções em trabalhos seguintes, como nos espetáculos Banquete, Macumba Antropófaga, Acordes e Cacilda!!!, onde partimos para complexas e sofisticadas divisões de vozes, de compositores como Villa Lobos e Paul Hindemith, e composições próprias já criadas para quatro ou mais vozes distintas.

Ah, os primeiros ensaios d’A Terra… Passávamos de três a cinco horas cantando diária e ininterruptamente, no início um grupo de treze pessoas que foi virando um coro potente e coeso. Primeiro o aquecimento vocal, e então um garimpo das canções que já haviam sido criadas em ensaios realizados dez, doze anos antes, em oficinas com Tom Zé, Denise Assunção.

Durante dois meses realizamos ensaios semanais gratuitos abertos ao público, onde usávamos ainda o livro, e arriscávamos todo tipo de invenção e improvisação a partir do próprio texto de Euclides da Cunha, na íntegra. Enquanto ensaiávamos no teatro durante a semana, Zé ia trabalhando a dramaturgia com outro grupo de artistas, a partir dos improvisos –muitos deles musicais- vividos com o público. Durante esse período eu era a única ‘música’ do grupo, e nossa base musical dos ensaios era o canto. No primeiro dia da primavera Zé conduziu o ensaio com o objetivo de compor o trecho que descrevia a primavera no Sertão, e compusemos juntos toda a sequência da exuberância das plantas da caatinga, com cada ator incorporado em sua planta que trazia sua musicalidade própria para ser cantada por ele ou em coro. Depois de meses cantando juntos tínhamos atingido uma intimidade musical que permitiu essa explosão de criação coletiva de cantos de primavera.

Seguimos com O Homem I, onde o coro atua cantando o tempo todo –mesmo nas pausas musicais. Canções que compusemos em sua maioria no calor dos ensaios.

Quando iniciamos o processo do espetáculo seguinte, ainda com o anterior em cartaz, sentíamo-nos esgotados em nossas possibilidades musicais. Resolvemos então encomendar música a compositores amigos do teatro. Realizamos leituras de mapeamento musical do texto, e de acordo com a cara da cena indicada pelo diretor, pensávamos em qual compositor se encaixaria melhor para cada momento. Foi assim que passamos trechos do texto para vários compositores, e as criações foram chegando. Adriana Calcanhotto, Sérgio Ricardo, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Jards Macalé, Lirinha, Júnio Barreto enviaram suas composições, além de Chico César, Péricles Cavalcanti e José Miguel Wisnik, que já haviam composto também para as partes anteriores. Cada canção que chegava era aprendida e cantada em coro, e muitas vezes ditava o caminho de criação da cena. Outras compusemos inspirados pelo estilo de compositores que foram simpáticos ao convite mas que que por motivos diversos não puderam compor, como Caetano Veloso, Marina Lima e Arrigo Barnabé.

Seguimos assim nos espetáculos A Luta I e II, e contamos ainda com composições de Arthur Nestrovski, Celso Sim, e continuamos criando nos ensaios. Nessa altura já formávamos uma ala de compositores com Marcelo Pellegrini, Karina Buhr, Adriano Salhab, Adriana Capparelli, Mariana de Moraes, Camila Mota, Otávio Ortega e eu mesma, além dos atores, que sempre colaboravam ora com ideias interessantes, ora com a contribuição milionária de todos os erros, muitas vezes mais inseridos no conteúdo da cena do que a criação original.

 

Coro Bixigão

Somado ao coro de atores trabalhamos também durante todo o processo d’Os Sertões com o coro do Movimento Bixigão, grupo de crianças e adolescentes do bairro do Bexiga, moradores vizinhos ao teatro. Além da contracenação nos espetáculos, construímos uma comunicação imediata através da música. Tanto nas cantadas em coro nas peças, como nas canções de aquecimento, que nos uniam num repertório comum, fazendo-nos parte de um grupo com uma mesma e própria linguagem. Desenvolvemos paralelamente o projeto Revista Bixiga Oficina do Samba a partir dos sambas do Bairro do Bexiga – os do Oficina inclusive -, o que concretizou em música a ligação com o entorno do teatro, com a Escola de Samba Vai Vai, com a história musical do bairro e a ligação com o processo de pesquisa e criação d’Os Sertões, numa busca coletiva e individual das próprias origens, chegando numa identidade comum de sertanejos urbanos da periferia do centro, o tipo brasileiro sem tipo.

 

MOMENTOS DE PROCESSOS DO CORO PROTAGONISTA

Zagreb, Croácia, e Teatro Oficina São Paulo, 2009. Leitura encenada d’O Banquete de Platão – pra levantar com uma pequena equipe do Oficina e atores e músicos croatas, depois montagem em São Paulo. Importamos um canto eslavo de fertilidade e renascimento, Oj Dodole, cantado lá por um coro feminino. Os ensaios em São Paulo começaram com o aprendizado desta canção, adaptando para um coro misto. Idioma croata cujo som nos remetia a línguas indígenas daqui, abaixo da linha do equador.

São Paulo, abril 2011. Montagem da Macumba Antropófaga, a partir do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. Começamos os ensaios com o aprendizado dos coros do choro no. 10 e de Mandú Çárárá de Villa Lobos. Divisão de vozes difícil para um grupo pequeno de atores e quatro músicos. Adaptação do arranjo de orquestra para a banda, com ênfase no ritmo. Sem quórum suficiente pra todas as vozes necessárias, adaptações.

Setembro 2012. Acordes. Transcriação da obra de Paul Hindemith e Bertolt Brecht. Apresentando Macumba Antropófaga no interior de São Paulo e ensaiando Acordes no Oficina entre uma cidade e outra. Divisão de vozes, intervalos difíceis. Música alemã, contagens retas, ritmo quase marcial. Adaptação do texto em português a partir do alemão, encaixando na partitura pra quatro e mais vozes. A cada noite após o trabalho árduo de tirar a música do papel e conseguir cantar em coro, enviávamos pros diretores que detestavam tudo, achando a música muito dura e cantada sem interpretação. Verdade. Nos concentrávamos tanto pra acertar a nota que o sentido não aparecia. Ainda. Isso viria com a repetição e ensaios. Mas como convencer o diretor?

Setembro 2013. Cacilda!!! Como em muitos processos, dificuldade inicial de juntar as pessoas. Buscar união do coro com um novo desafio. Executar partituras difíceis, divisão de muitas vozes, intervalos estranhos. Decidimos começar os ensaios com o Pica Pau – choro n.3 de Villa Lobos.

O processo de criação musical já tem uma cara, quase um método, desenvolvido ao longo de anos de trabalho, longos ensaios dedicados muitas vezes à criação da música de uma única cena, que depois pode vir a ser descartada. O não método. Um dos músicos traz uma ideia musical, uma canção. Que vai sendo modificada a partir da cena, do ator/atriz que vai cantar, do coro que canta junto, do Zé que canta a cada momento uma melodia e ritmo diferentes, mas dando a direção do que quer como interpretação. É nesse ponto que entramos sempre no mesmo conflito. Eu tentando definir melodia e ritmo, para que possam ser apreendidos e cantados. Principalmente se for em coro. Por um coro de não músicos, que não tem a destreza de improvisar ou inventar vozes harmônicas, ou executar um ritmo comum a partir da comunicação do olhar, ou feeling comum. A necessidade de repetir. E a direção que diz que a interpretação, o sentido do que se canta é que vai trazer a afinação e a necessidade do ritmo. E eu penso: um ator precisa do texto pra daí experimentar interpretações, criar a partir da direção. Um cantor ator precisa da melodia, das notas musicais que serão seu texto, e ao menos da sugestão do ritmo. E lá se vão minutos preciosos do ensaio no embate do ovo ou da galinha, notas musicais/melodia e ritmo definidos versus incorporação/interpretação. Apolo e/ou Dionisio?

E a certeza de que canções criadas assim, no calor do ensaio, com a presença e energia de todos, e pequenas contribuições melódicas de um ator mais musical, ou mesmo do ‘erro’ de muitos, resultam em canções totalmente incorporadas ao texto, conteúdo e cena, e apropriadas em cada nota e tempo por todos os atuadores presentes. O prazer de cantar isso em coro a cada apresentação, e mesmo a cada ensaio é contagiante. É esse contágio que vai vencer o desafio de excitar o ânimo dos ouvintes.

Outubro 2013

os cinco sentidos

a internet.  as palavras.  a música.  os sentidos.

tentando decifrar o que é um, onde um entra no outro, porque umas palavras dão vontade de cantar, porque outras continuam no papel, os sentidos mudam se ouvidos ou lidos, os outros sentidos, a rede, o virtual, onipresente, onipotente, o tudo, o nada, deus.

a letra toda era assim, daí uma parte ficou de fora pra fazer a música, não sei se porque ia ficar grande demais, ou o assunto virou outro, a letra assim já é grande.  tenho curiosidade de saber se quem ouve ouve a letra.

a letra:

os cinco sentidos
… ou os quatro elementos
… ou o dia em que eu acabei não caindo na rede

deu vontade de entrar
de falar pela Internet
te ouvir sem te encontrar

quem sabe assim eu descubro teu segredo
conto tudo sem ter medo
cego medo de errar

nome secreto
endereço incompleto
sem passado e sem lugar

liberdade pra sumir, de virar outra pessoa
nessa madrugada à toa
só no impulso onda no ar

um novo eu personagem inusitado
sem ter certo nem errado
só vontade de inventar

um novo eu criatura imaginada
sem defeito imaculada
pra até eu me apaixonar

um novo eu o grotesco e desvalido
desprezado por cupido
eu escondido o eu vulgar

o velho eu o eu eu mesmanick name
de alegria e de tristeza
guerra jogo mágoa e bar

todos procuram e não a esmo
é só você, é, você mesmo
que eles querem encontrar

atrás de um nome nick name
jogo de amor um vídeo game
apaixonei-me sem notar

 

ah, não….

de virtual já chega deus que não me amola
deus do sol da carambola
deus da lua o paladar

de virtual já chega deus que nem me encosta
deus tesão que você gosta
deus de mãos pra me pegar

de virtual já chega deus e o big bang
deus explosão y-lang y-lang
deus essência de cheirar

de virtual já chega deus que esconde esconde
deus que está só não sei onde
deus que nem quer mas vai me olhar

de virtual já chega deus o esquecido
deus do som do meu ouvido
deus da música pra cantar

 

a música:

Nick Name (Letícia Coura)

Letícia Coura – voz e violão
Adriana Capparelli – voz
Fabio Tagliaferri – viola de arco
Daniel Nakamura – guitarra
Nana Carneiro da Cunha – violoncelo
Guilherme Kastrup – arranjo percussão