Dorival e o grito da Mar

o teatro mais uma vez. e a música. viver, reviver, desremoer, viver uma catarse e fazer tudo virar arte, teatro, música. mais uma vez.

conheci a música de dorival caymmi principalmente através de minha mãe, que sempre amou aquele vozeirão, as canções de mar e pro mar. pramar. ela contava sempre da maravilha que foi uma vez em Copacabana, e lá estava, em algum daqueles bares restaurantes da beira da praia, lá estava em uma mesa qualquer o Dorival com seu violão, cantando uma de suas pequenas imensas obras de arte canção.

muitos e muitos anos depois desses tempos, muitos anos já que minha mãe está ouvindo Dorival na música das esferas, recebo um convite pra cantar uma de suas canções. temporal que se aproxima. Dorival e A Mar.

em cada respiração, cada nota dessa canção, ali está minha mãe, e a dor da minha mãe. conheço bem outras dores, mas essa não vou experimentar nessa vida. a dor de perder um filho. o filho.

meu irmão meu amado irmão se matou tão jovem. agora que sou velha guarda vinte e três anos parece quase uma criança. e eu então, que tinha dezoito. que virei adulta vivida ali bem rápido. meu irmão adorado, que saudade.

daí ganhei esse presente de meus tão amados parceiros no teatro. cantar com eles, cantar a dor de minha mãe, minha dor de irmã, a dor de todas as mães que perdem seus filhos. das mães de tantos vicentes que se vão tão cedo.

tem alguns momentos da vida de que a gente se lembra sempre como se fosse hoje. o grito de dor de minha mãe quando soube do acontecido. contaram pra ela no quarto lá longe, nós na sala já sabíamos. e aquele grito.

esse grito está dentro de mim até hoje. ele já quase apareceu em uma cena lá mesmo no teatro, mas era um grito surdo. agora, tantos e tantos anos depois, tantas encarnações, esse grito de minha mãe sai de mim como música ali na pista do Oficina. numa linda canção de Dorival Caymmi. vai sem o vozeirão, não é beira-mar em Copacabana, mas vem lá de longe também. lá daquele quarto, do fundo do quarto de todas as mães do mundo.

Seminais Tecnizados

3 maneiras de criar e estar no Teatro Oficina.
num dos projetos gigantes do Oficina – as Dionisíacas em Viagem – caiu pra mim a função burocrática de organizar os relatórios vindos de todas as áreas: atuação, música, vídeo, direção de arte, figurino, direção de cena, produção, luz, divulgação, dramaturgia, corpo, voz, e mais os que eu esqueço agora. trabalho enorme que acabou sendo tão interessante pela possibilidade de ver um mesmo trabalho por tantos ângulos diferentes. aqueles relatórios que vazavam paixão foram a melhor aula de teatro que tive na vida.
esses vídeos indicados abaixo me deram de novo um pouco desse gosto. uma viagem deliciosa pelo universo dos figurinos pela prática amorosa da nossa diva camareira Cida Melo, os labirintos da tradução de textos com tantos sentidos e a operação em cena da nossa poliglota Maria Bitarello, e um pouco do samba no Oficina pelo cavaquinho e voz desta que vos escreve.
entra lá! esses 3 saem agora, mas já tem também o da nossa arquiteta cênica Marília Piraju, e em breve novos ângulos virão!
boa viagem ! ! !

 

Realizados no Teatro Oficina, dentro dos Seminais Tecnizados da Universidade Antropófaga. Vídeo-aulas contemplada pelo PROAC DIRETO Nº 39/2021 – FOMENTO DIRETO A PROFISSIONAIS DO SETOR CULTURAL E CRIATIVO

TV UZYNA apresenta três videoaulas de uma vez já disponíveis no nosso canal do YouTube – vídeos mais abaixo, continue lendo.

1. NAS ALTURAS DO TEATRO OFICINA
Cida Melo
, camareira do Teatro Oficina desde 1999 até hoje, participou neste período de todas as montagens da Companhia. Responsável pelo enorme acervo de figurinos do Oficina, Cida fala aqui de seu trabalho no teatro, desde a organização dos figurinos de cada montagem, conservação, manutenção, organização da lavanderia, até sua relação com atores e atrizes durante as temporadas dos espetáculos. E ainda vamos conhecer melhor essa personagem vital para o teatro em seu canto de trabalho: Nas Alturas do Oficina.

2. O SAMBA NO TEATRO OFICINA
Letícia Coura 
e seu cavaquinho nos convidam para um passeio pela história do Teatro Oficina através do samba. Há mais de 20 anos atuando na Companhia como cantora, compositora e atriz, Letícia apresenta um breve repertório de sambas do cancioneiro do Oficina, parte dele composto – por ela e outros autores – especialmente para espetáculos como Os Sertões, Bacantes e Acordes.

3. TRADUZINDO O INTRADUZÍVEL
Maria Bitarello
, tradutora do Teatro Oficina desde 2015, traduziu e operou as legendas dos espetáculos montados pela companhia até 2020. Neste breve episódio, Maria conta um pouco sobre a prática de traduzir durante os ensaios, as difíceis escolhas do tradutor-traidor, as atualizações e alterações do texto ao longo da temporada, a concisão do formato legenda e as sutilezas da operação ao vivo.

câmeras Igor Marotti
edições Kael Studart
artes Igor e Kael

Assista também à videoaula da Marília Piraju:
ARQUITETURA CÊNICA DO TEAT(R)O OFICINA projeto de Lina Bo Bardi y Edson Elito SEMINAIS TECNIZADOS #1

 

CORTEJO 24.11

gracias Ocupa Guattari, Sesc e Ocupação 9 de julho.

e fizemos o cortejo dentro e fora do Ocupa Guattari. Teatro Oficina e Universidade Antropófaga. gostar de ocupar a rua. saber ocupar a rua. querer ocupar a rua. saber da importância de se ocupar a rua com samba, tambores, vozes, harmonias, muitas cores nos parangolés e nos corpos, música de mão dupla, tripla…

o corpo na rua, cantando e dançando, contracenando com quem está morando ali, com quem passa, com que está trabalhando, ou no bar bebendo, ou de mau humor no trânsito, e quem sabe por um pequeno momento esquece os imensos probleminhas da vida.

ver a rua de outro jeito, de outro ângulo, com outro corpo, outro espírito, outra percepção. passar pelo terreiro sagrado profano da Vai Vai, cantar pra escola, macumbar pra ela voltar pra lá, ocupar o lugar que é seu, que é nosso, que é da rua. quem nunca viu o samba amanhecer, vai no Bixiga pra ver . . . é tradição e o samba continua passando, Geraldo Filme vivendo em nós, o bar da dona Odete, nós ali cantando debaixo do sol do meio-dia, agradecendo São Pedro que deu uma trégua pra gente botar nosso bloco na rua. Gingar . . . botar pra gemer !

 

os que sabem os sambas e cantam a plenos pulmões, os que tocam e seguram o ritmo e os corpos na mão, que tocam harmonias que guiam as vozes, os que sabem se comunicar com o povo da rua, com o povo das janelas lá do alto e aqui do lado, com os motoristas dos ubers, dos táxis, dos carros quaisquer. os que não sabem e dublam, que procuram e imitam os lábios que sabem, os que não cantam mas dançam com tudo, com o samba no pé, na palma da mão, nos olhos que encontram olhos desconhecidos e que agradecem a música que passa, que se deixam empestear.

sentir a rua como a passarela do samba, cantar pra Oxum, pro rio soterrado mas que sabemos e sentimos que corre ali por baixo e que acabava de transbordar mais uma vez na noite anterior. parar embaixo do viaduto e tocar e cantar forte que ali a acústica é melhor. a rua não é só pra passar pensando em outra coisa e em outro lugar.

subir o morro da Avanhandava cantando o batuque no morro tá formado, u uu uu uu uu ! ! ! !  . . . quem sabe sabe. haja fôlego e fé cênica. e há !

rua pode ser música e encontro de corpos abertos. e é.

escuta o rufar do meu tambor . . . o Oficina Samba chegou !

 

*fotos e captação de vídeo de Cíntia Molter

 

Meu adeus pro Gordo. Ou até breve . . .

Descobri outro dia que estou involuntariamente escrevendo um obituário. Tem morrido tanta gente, e numas dessas mortes vem o impulso de escrever, relembrar, fazer viver mais e sempre. Algum encontro, real ou imaginário com aquela pessoa que foi animar outros mundos, impressões de sua passagem pela nossa vida, seus rastros, sua energia, inspiração.

Ontem foi a vez do Jô. Engraçado que o chamo assim sem nunca tê-lo conhecido pessoalmente, com intimidade, eu e tantos e tantos brasileiros que cresceram assistindo a seus programas, rindo dele e de seus personagens, rindo de nós mesmos, desde criança.

Uma vez quase participei de seu programa, eu e o Revista do Samba, parceiros de boa parte de uma vida inteira. Conhecemos, nos idos de 2002 no Embu das Artes, a cantora egípcia Natacha Atlas. Ótima cantora, e super gente boa. Estávamos – o trio Revista do Samba – tocando no Garimpo, um bar restaurante – e agora também pousada – alemão, em troca de uma dívida eterna que temos com o simpático dono Hörst. Graças a ele conseguimos uma ida a Berlim que permitiu que gravássemos nosso primeiro álbum lá. O cara gosta mesmo é de rock, mas se animou com nosso samba misturado e nos levou pra tocar em sua festa de despedida dos trabalhos formais com gente do mundo inteiro. Que festa! Mas não é disso que eu vim falar aqui.

Nessa noite, no Garimpo, lá estava a cantora Natacha, por conta de um parente inglês que adotou o Embu como lar. Ela tinha vindo ao Brasil divulgar seu novo álbum, aproveitar que estava bombando por aqui por conta de uma música sua na novela O Clone, da Globo. Na época nem tínhamos gravado ainda nosso primeiro álbum. Mas ela gostou de nós, do nosso som, improvisamos juntos, ela ao microfone cantando em egípcio com nossas harmonias, melodias e diferentes levadas de samba. Distinguíamos aqui e ali em suas palavras um Ya Habib em escalas árabes, que se casaram muito bem com o nosso samba, e que agradaram aos poucos mas fiéis frequentadores do bar naquela noite fria. Foram momentos deliciosos, música e assuntos diversos com ela, o tio inglês, o anfitrião alemão, e muito samba egípcio esquentando o Embu das Artes.

Ela então se empolgou e nos convidou para repetirmos a parceria em sua participação no Programa do Jô, um de seus compromissos profissionais dos dias seguintes em São Paulo. Seus produtores não apreciaram tanto a proposta, já que estavam aqui pra que ela falasse de sua participação na novela, de sua música que estava bombando no país, da sua carreira internacional. A ideia dela cantar num programa de grande audiência no maior canal de TV do país com um trio de samba desconhecido não lhes pareceu muito boa. Mesmo assim, ela insistiu para que fôssemos ao programa, que ela tentaria nos chamar ali de surpresa, e ver se colava. E lá fomos nós, agora nem lembro se levamos instrumentos, acho que não, senão teria uma lembrança menos feliz da situação. Que só não foi uma roubada daquelas pra rir da gente mesmo anos depois porque o programa era divertido ali da plateia também, e depois rimos juntos de tudo e trocamos mais ideias sobre nossas músicas, viagens, costumes, aventuras.

Outro momento em que estive no mesmo ambiente que o Jô foi na casa de uma grande amiga, a atriz Regina Braga, em seu aniversário há uns anos atrás. Foi uma festa em que sobramos no final, pr’aqueles últimos drinks, numa intimidade gostosa de quem sabe a hora de tomar uma boa cachaça. E momentos antes lá estava o Jô na sala, e percebi que estava emocionada por estar ali respirando o mesmo ar que todos aqueles personagens que haviam povoado minha vida durante tantos anos. Ele emanava uma energia que enchia todo o ambiente, como uma luz que deixava todos ali mais animados.

E ontem estava eu lá na estreia de São Paulo, em que Regina canta seu amor pela cidade que ela escolheu pra viver, e ao final do espetáculo, a homenagem ao Jô. Que normalmente estaria ali celebrando a vida conosco, mas que naquela noite não pudera comparecer. Celebramos sua vida da melhor forma, com aplausos quentes ao final de um belo espetáculo.

Escrevo tudo isso pra fazer presentes esses pequenos e preciosos momentos. Saborear um pouco mais essas pequenas grandes impressões que experimentamos, e que já já voltarão ao turbilhão da vida. Todas essas homenagens que vêm bombando pela internet só confirmam a presença dele em nossas vidas todas, e na minha em particular, com tantos personagens que vi e acompanhei na infância e dos quais me lembro até hoje, com destaque para a cantora Norminha, “paz, amor, som, e Norminha ! ! ! wow ! ! ” ou algo assim, que repeti e repeti, e também pra Nanayá com Y, que inspiravam meus showzinhos em casa, com destaque para o PicoLetsQuel, wow wow wow wow!!!

E depois ainda os programas de entrevista. Se alguém ainda acha que dá pra ser neutro nesse momento político do país, ou ainda acreditar que pode ser artista e de direita, torço pra que se depare com trechos de alguns programas compartilhados pelas redes, como com o patético lavajatista Dallagnol, ou na contracenação com um inesperado bolsonarista da plateia, nas conversas sobre o impeachment, e tantos outros bons momentos vividos nas madrugadas televisivas. Não estava acompanhando mais esse momento do Jô, e deu uma esperança na humanidade de ver como ele se posicionava durante as entrevistas. E pra terminar a manhã com chave de ouro, li ainda uma carta dele aberta ao presidente, dando uma esclarecida sobre o nazismo. Sempre com humor, mesmo nesses assuntos não muito engraçados.

Mais um artista que se vai e nos deixa nesse mundo que atravessa esse momento tão esquisito. Também momento de grandes transformações. Pegando emprestada a frase do filósofo italiano Antonio Gramsci, que trouxe pra casa num cartaz da última Bienal de São Paulo e que mantenho na porta da cozinha: “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros”. E aqui continuamos nós no mundo agonizante, agora tendo que contracenar com os monstros sem o auxílio luxuoso do aliado humor do Jô.

Que a gente continue aprendendo com ele a desconstruir esses monstros, de preferência com humor, a arma mais poderosa. E a seguir seus exemplos de colocar em prática as palavras de outro palhaço, o da burguesia, como se autodenominava o antropófago Oswald de Andrade. Transformar o tabu em totem. E Viva o Gordo ! ! !

Esse samba dá história . . . ou vice-versa

tudo preparado pra começar as gravações dos 20 anos de Revista do Samba no Teatro Popular Solano Trindade, no Embu das Artes – março/abril 2021

Tenho esse personagem sambista que me dá muitas alegrias nessa vida. E estamos comemorando – dentro do possível que esse verbo possa ter de sentido nesse momento – 20 anos de Revista do Samba, nosso trio criado lá atrás, por amor ao samba, à amizade, e ao prazer de tocar e cantar junto. E que hoje, talvez mais do que em toda a nossa trajetória, é tão importante pra gente lembrar quem a gente é, que cultura tão rica que temos, que música maravilhosa, e sim, que pessoas legais e criativas, que criaram esse gênero, essa música, essa dança, com uma história tão diversa quanto interessante e instigante.

É um pouco de tudo isso que procuramos passar com esse projeto, com essas apresentações, lives, shows, não sei que nome dar a isso que fizemos, um trio de dois no mesmo lugar e um em outra cidade, usando e abusando do que conhecemos dessas tecnolorgias – sim, foi assim mesmo que escrevi – atuais, pra poder cantar e tocar, e chegar às pessoas.

Esses são os movimentos – 6 ao todo, como pedia o edital –, cada um abordando um trabalho, um álbum, cada um com um repertório diferente, tendo no último nosso gran finale das mais mais, selecionadas entre as tantas que tocamos tantas vezes nas nossas tardes e noites de samba e outras aventuras. Esse texto é um convite pra conhecer um pouco das histórias dos sambas e dos sambas das histórias, que fomos entrelaçando com as nossas, e pra ver e ouvir a gente lá no YouTube – Revista do Samba Oficial. Continuo acreditando que é com essa alegria que vem lá do fundo da nossa cultura e alma que vamos conseguir atravessar esses tempos de prov(oc)ação.

20 anos Revista do Samba - flyer

Beto Bianchi, Letícia Coura e Vítor da Trindade, no início dos trabalhos do trio, ano 2001. foto de Paulo Sommer, no estúdio PAC do percussionista Dudu Tucci, em Berlim.

Esse projeto nos possibilitou também revisitar algumas histórias que fomos colecionando nesses 20 anos de samba, de viagens e shows pelo mundo. Falo um pouquinho delas a seguir.

 

As primeiras viagens

Sempre associei nosso início das viagens – e da maravilhosa carreira internacional! – ao 11 de setembro. Acordei com um telefonema do – agora extinto – Ministério da Cultura: “Letícia Barbosa Coura? você não vai querer as passagens?” Custei a entender. Era 2001, eu estava no meio do processo de ensaios do espetáculo Bacantes do Teatro Oficina. “Duas passagens, Revista do Samba, é isso?”, a voz perguntou do outro lado. Sim ! ! respondi já então animada, lembrando da nossa tentativa no edital com o pedido de duas passagens para Berlim, para nos apresentarmos como Revista do Samba. Vítor já estava na Alemanha, as passagens seriam para mim e para o Beto. Foi uma surpresa, super em cima da hora, e ficou a impressão de que conseguimos as passagens porque alguém provavelmente havia desistido de alguma viagem, por conta do medo que se instaurou no mundo logo após o ataque às torres gêmeas. E assim fomos, intrépidos, para o outro lado do Atlântico, dar o pontapé inicial para uma bela e promissora história de shows em vários países, e participações em muitos festivais de música por esse mundão afora.

 

Paquistão e o Rasta-pé do cercadinho

Revista do Samba no World Performing Arts Festival em Lahore, Paquistão, 2006.

Fomos parar no Paquistão em 2006. Esses telefonemas em horários inusitados com surpresas realmente surpreendentes. World Performing Arts Festival, realizado em Lahore, quase na divisa com a Índia, reunindo música, teatro, teatro de bonecos, poesia, dança. Foram 10 dias de muita arte, muita troca com artistas de muitos países diferentes, e uma enxurrada de cores, sons, idiomas, comidas. Por indicação dos organizadores do festival, fomos a uma cerimônia sufi, na companhia de um bailarino francês, alguém da embaixada brasileira e um simpático paquistanês que se dispôs a ir como nosso guia, nos iniciando nos mistérios locais. Eu era a única mulher do grupo, e passei por uma experiência que felizmente acabei conseguindo transformar em samba, o Rasta-pé do cercadinho. Como o nome já sugere, tive que assistir à cerimônia separada de meus companheiros homens, sentada sozinha num cercadinho, onde os participantes deixavam seus sapatos. Pra saber um pouco mais da história, só ouvir o samba e deixar o esqueleto balançar…

 

Samba no Monte das Oliveiras

RDS Monte das Oliveiras

Em 2005 fomos tocar em Israel. Eu estava em cartaz com Os Sertões, no Teatro Oficina – 26 horas de peça no total –, e a vida foi bem alucinante nessa época. Me lembro de pagar uma daquelas massagens de aeroporto, porque ia viajar a noite inteira depois de fazer uma peça de 6 horas… Daí já dentro do avião, antes de apagar e acordar do outro lado do Atlântico, descobri no guia que tinha comprado que Tel-Aviv, onde íamos nos apresentar, era uma cidade à beira-mar… ignorâncias à parte, na hora de passar na alfândega, acho que pra entrar no país, nos pararam com as bagagens. Um rapaz bem jovem – como eram os policiais e militares em geral que vimos em Israel – queria saber o que era aquele objeto estranho, perguntou se era algum tipo de arma. Vítor explicou então que era um instrumento musical, e não pareceu convencer o funcionário da imigração. Contamos que éramos um trio brasileiro que tocava samba, e nada. Daí Vítor pegou o berimbau e começou a tocar, e logo outro rapaz, agora com o uniforme do exército, se aproximou animado e começou a ensaiar uns passos de capoeira. “Conheço, é capoeira!”, e logo puxou conversa com o Vítor sobre essa dança luta brasileira, várias pessoas se aproximaram pra ver os passos e ouvir aquele instrumento estranho em ação. Por um breve momento aquela parte do aeroporto se descontraiu com um pouco de música e dança.

 

Do outro lado do mundo

em frente ao Palácio Imperial em Seul, Coreia do Sul, 2009.

Em 2009 fomos convidados para um festival em Seul, na Coreia do Sul. E de lá fomos tocar em uma outra cidade coreana, à beira do mar do Japão, Gangneung. Tocamos num belo teatro e também no mercado de peixes, lugar maravilhoso e indescritível, com tantos peixes que nunca tinha visto na vida, muito menos saboreado… e no jantar da noite pós-show dei o meu primeiro fora ao tentar escolher alguma iguaria da cozinha coreana, sem entender nada no cardápio, e perguntei se eles tinham sushi – de peixe, já que tínhamos acabado de conhecer o mercado. Ao que o produtor da cidade com uma cara não muito amigável respondeu que sushi de peixe era ‘coisa de japoneses’. Me senti uma daquelas pessoas que muito animadas chegam no Brasil e perguntam da capital, Buenos Aires… Mas para compensar minha gafe, tinha aprendido no camarim, com uma moça que nos acompanhou na cidade, a cantar uma canção coreana, da qual consegui cantar um pedaço pro nosso anfitrião, melhorando um pouco minha imagem com ele. E quando voltei pra peça da época, Cacilda!! – é, continuava na minha vida dupla entre o teatro e o samba –, ainda consegui fazer o público cantar em coreano comigo. Tinha uma cena no meio do segundo ato, que servia pra acordar parte do público desavisado em uma peça de 6 horas, em que eu ‘interpretava’ uma preparadora vocal que fazia um aquecimento com o público. Normalmente eram exercícios de voz, mas nesse dia o público – e elenco – cantaram comigo: A ri ranga há, ri ranga há ! ou algo assim …

E a experiência na Coreia do Sul ainda deu outro samba, o Kamzahammidá, como conseguimos dizer obrigada em coreano..

 

Saara, Atlas, Marrakesh . . .

Letícia Coura e Vítor da Trindade em Rabat, Marrocos, 2007. Em frente ao cartaz anunciando o show do Revista do Samba no Festival Mawazine.

Depois do nosso maravilhoso show em pleno Saara, resolvemos continuar no Marrocos, aproveitar a oportunidade e ir conhecer Marrakesh. Sim, Marrakesh!, a cidade dos hippies, a terra prometida dos doidões, do imaginários de príncipes, reis, califas, camelos… continuaríamos por nossa conta – e risco –, e logo percebemos a mudança de patamar quando o táxi chegou. Era um carro bem pequeno, e nós com todas aquelas bagagens de músicos, olhamos meio desanimados pro cara do hotel. Ele logo então se prontificou e chamou outro táxi. Em seguida chegou um Mercedes Benz, e pensamos, uau!, nos demos bem ! entramos no carro animados, com nossas malas, instrumentos, íamos até a rodoviária pegar um ônibus que desceria os Atlas até Marrakesh. Mas o caminho até a rodoviária era longo, e logo percebemos que o táxi não era só pra nós, e parecia pegar todo mundo que estava no caminho, humanos e mais alguns animais como galinhas e cabras. E malas. . . .

E em Marrakesh, ao lado da praça . . . , precisávamos de uma informação pra nos localizarmos por ali, e eu sabiamente perguntei pra uma moça que passava por nós. NiquI ela começou a nos indicar como chegar no local que procurávamos, passou um rapaz muito falante, simpático, dando a entender que conhecia a cidade mais que a moça, falando mais alto, gesticulando, e meus parceiros deram ouvidos a ele… a moça fez uma cara que na hora não consegui ler muito bem, meio de preguiça do cara, e não querendo competir quem falava mais alto, acabou indo embora. Resultado, fomos atrás do cara, e logo chegamos na casa de um primo dele, que nada tinha a ver com o endereço que procurávamos, mas o primo tinha uns tapetes muito bonitos – e bem caros – para nos oferecer . . .

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Das Paredes

Essas Paredes já têm uma história desde a sua primeira ideia, que vou contar em um próximo post. Um texto que comecei a escrever e trabalhar como música e dramaturgia lá em 2015 . . . Por aqui já fica o convite para conhecer um pouco dessas Paredes e das TijolAs que as compõem.

VEM AÍ!
Das Paredes: as mulheres, as aventuras e angústias de tijolo em 6 lives.

Mistura de teatro, música, poesia e cinema, o espetáculo Das Paredes está em processo de criação. Interrompido com o começo da pandemia, o trabalho estrearia em maio de 2020, justamente quando chegou a notícia de que teatros e salas de espetáculo ficariam fechados. Agora, quase um ano depois, o projeto para a viabilização da peça foi contemplado pela Lei Aldir Blanc do Estado de São Paulo, no Proac Lab.

A equipe é formada só por mulheres. São as tijolAs-protagonistas, que atuam em cena e nos bastidores, e discutem que paredes são essas, e como derrubá-las.

São elas:
Bia Fonseca (produção)
Brenda Amaral (comunicação)
Cecília Lucchesi (audiovisual e produção gráfica)
Chiris Gomes (música e atuação)
Cris Cortilio (arquitetura cênica)
Gabriela Campos (figurino)
Letícia Coura (direção, música e atuação)
Lúcia Galvão (iluminação)
Maria Bitarello (música e comunicação)
Nana Carneiro da Cunha (música e atuação)
Tetê Purezempla (música e atuação)

Mas de que paredes estamos falando?
Das Paredes que já vieram prontas, das que criamos todos os dias, das que constroem para nós e por nós.

VEM VER QUE TÁ LINDO!

📲TEMPORADA:

15 e 16/03 (segunda e terça), 20h
22 e 23/03 (segunda e terça), 20h
29 e 30/03 (segunda e terça), 20h

🎫OS INGRESSOS SÃO GRATUITOS, BASTA RESERVAR O SEU EM: SYMPLA.COM.BR/DASPAREDES

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Zuza e A Sopa

Zuza Homem de Mello

E cada vez mais vamos ficando com a incumbência de reinventar o Brasil

Logo antes de me mudar pra São Paulo – e isso faz tempo . . .  – conheci o Zuza. Foi num festival em Belo Horizonte, eu já com minha trouxa pra deixar a terrinha, e aconteceu o Festival do Carrefour, num estacionamento imenso do igualmente imenso supermercado. Inscrevemos a canção A Sopa (clique aqui para ouvir), poema de Lewis Carrol com transcriação de Augusto de Campos, musicado por Marcos Pimenta. Uma música estranha, que Marquinhos me mostrou pra cantar, e eu logo me animei e incorporei minha personagem cantora meio lírica meio cabaré.

Para nossa alegria fomos classificados para nos apresentarmos num show ao vivo para os jurados. A direção artística do festival era do Zuza Homem de Mello, que eu conhecia de nome, o que inclusive nos incentivou a fazer a inscrição d’A Sopa. A banda a se apresentar seguiria praticamente a formação da banda O Grande Ah!…, com quem cantei durante alguns anos e que seguiria depois da minha saída e mudança pra São Paulo.

Achamos muito pertinente participar do Festival do Carrefour com uma canção de nome A Sopa, e quisemos fazer da nossa apresentação um grito contra a fome. Panelas compunham a percussão, e todos nós da banda, ao final da música, pegávamos cada um sua panela e terminávamos assim a nossa performance.

na foto: Márcia minha irmã, Ló, Élida, Gijo, Marquinhos, Jacqueline, Flavinha, Ana Lights, Ana Lee, amigos, conhecidos e desconhecidos e as crianças que se juntaram a nós na grande comemoração d’A Sopa no estacionamento do Carrefour

E não estávamos sós. Na imensa plateia no imenso estacionamento, tínhamos nossa torcida organizada. Márcia minha irmã era a chefe da torcida, e responsável por todos os adereços e objetos de arte para os componentes. Pratos de plástico de várias cores colados no alto de cabos de vassoura formavam um belo mar dançante pra quem via do palco, e funcionava muito bem para quem estava no público, pois apontavam acima das cabeças mesmo dos mais altos torcedores das músicas concorrentes. Completando o figurino, e como destaque da ala dos tomadores e defensores d’A Sopa, Márcia despontava na torcida com seu chapéu enfeitado com folhas de repolho, uma camiseta bordada com macarrões de três cores e um grande caldeirão de alumínio pendurado no estandarte com o prato à ponta. E para que ficasse bem claro que era a torcida d’A Sopa, e não de qualquer outra canção ou de algum novo produto do Carrefour, o nome da canção em letras garrafais não deixava dúvida de qual era a melhor música da noite. Ou ao menos a única que tinha uma torcida organizada e bem adereçada. E a mais animada, claro !

Não ganhamos o festival, acho que nem ficamos para as finais nem mesmo de BH. Pelo que me lembro as selecionadas concorreriam depois com as finais de outras capitais, num grande evento musical nacional. Mas Zuza, talvez impressionado pela torcida, mas com certeza também pela canção – estranha e bela, que anos depois gravamos no álbum Mariantivel, do Grande Ah!…. – foi falar conosco, que tinha adorado a música e a performance, perguntou quem éramos, nos associou a uma vanguarda da música paulista da época, o que nos deixou orgulhosos já que apreciávamos bastante a Lira Paulistana e todo um movimento que surgia naquele início dos anos 90.

Zuza então contou que era diretor artístico de um outro festival, e que gostaria de nos convidar a nos inscrevermos nele também, o Festival de Avaré, no interior de São Paulo. Uau ! ! eu estava justamente me mudando pra capital paulista, me jogando na estrada, na aventura da vida artística, já me sentia colegando com todos os meus ídolos da música lá em Avaré que não tinha ideia de onde era.

Inscrevemos então A Sopa – quer dizer, acho que fui eu na minha animação que fiz os trâmites necessários – no Festival de Avaré, chamei meus parceiros de performance, o Marcos Pimenta, autor da canção, que estaria justamente chegando da França onde fazia alguma pós em física, e achei que estava tudo organizado para conquistarmos o interior de São Paulo com nossa música.

Na data combinada fui pra Avaré. A essas alturas já estava em São Paulo, contava encontrar meus parceiros já na cidade do festival. Chegando lá, pra confirmar, liguei pro Duzão, guitarrista da banda – ele e Marquinhos eram os parceiros band leaders d’O Grande Ah!… –, achando que não conseguiria contato, já que naquela época não existia celular e ele deveria estar na estrada. Para minha surpresa ele atendeu a chamada, e com ar de quem estava bem tranquilo em casa. “Onde você está?”, perguntei já meio desesperada, “nós tocamos amanhã aqui em Avaré!” Levei então aquele banho de água fria com a resposta.

Naqueles tempos não havia despertado totalmente em mim o lado produtor, a necessidade da ativação de um personagem faz-tudo para fazer com que nossas ideias, devaneios, sonhos, vontades, insights se tornassem realidade. Duzão não tinha entendido que a coisa já estava acontecendo, que o festival já estava rolando, hoje nem consigo entender direito o que aconteceu. Liguei então para o Marquinhos, pensei que talvez fosse apenas um mal entendido na comunicação pelos telefonemas interurbanos. Ele estava chegando naquele quase instante da França, com a cabeça voando ainda, e chegou a pensar na possibilidade de tentar chegar em Avaré a tempo para defender A Sopa comigo. O que acabou não acontecendo.

Já pensava que ia ter que aprender a lidar com aquela frustração por não ter dado continuidade ali em Avaré a uma carreira de sucesso para A Sopa. Mas o pior eu teria que enfrentar ali mesmo: teria que me justificar perante o festival, eu estava ali na cidade – que naquele momento vivia plenamente o festival de música –, por conta do festival, para me apresentar, e acabava de saber que ninguém da banda apareceria. Fui falar com o Zuza. O cara massa que tinha gostado da música, apostado nela, nos convidado a inscrever A Sopa, eu recém chegada em São Paulo, animadíssima por participar já tão rápido de um festival de música ao lado de artistas que conhecia e admirava.

E ele foi tão maravilhoso Com sua experiência percebeu logo a minha frustração, que justamente por inexperiência eu não tinha conseguido organizar a ida do grupo até ali, mas não julgou, não me criticou nem repreendeu. Tão pouco desprezou. Pelo contrário, ficou solidário à minha sensação de impotência, perguntou se eu não queria tentar me apresentar com a banda do festival – que acompanhava alguns participantes –, pensou comigo em possibilidades. Me disse que tudo bem, que essas coisas aconteciam, e que o melhor que ele poderia me oferecer naquele momento era me convidar pra assistir a todas as apresentações, torcer por elas, e me divertir.

E foi o que fiz. Com a melhor companhia que poderia ter, o próprio Zuza. Senti que ganhei ali um padrinho que me abençoava pelos caminhos da música, pela alucinante, maravilhosa, inspiradora, árdua e prazerosa trilha da vida na arte. Nunca mais o encontrei pessoalmente, mas ele esteve sempre presente na minha vida, me inspirando através dos livros, programas de rádio e tv, e tantos projetos incríveis na música brasileira. Outro dia mesmo estava ouvindo sua voz em algum programa em alguma rádio escolhida quase ao acaso. E junto com a voz imediatamente a lembrança daquelas noites generosas em Avaré.

* Percebi que esse blog é quase um obituário. Vou escrevendo sobre pessoas que foram nos deixando aqui, nesse lugar que está passando por tão maus bocados. Uma forma de homenagem, um jeito de fazer essas pessoas mais vivas que nunca, mais inspiradoras ainda, contar um pouco de como elas passaram por mim e deixaram tantas marcas, e que talvez só eu mesma tenha como contar. E de saber que elas estão aqui também, que continuam em cada lembrança, em cada decisão que elas nos incentivam a tomar, nos mostrando caminhos. Viva Zuza !

Reencontro com Messalina e a Patafísica de Alfred Jarry

Em 2016 entreguei para a Editora Iluminuras minha tradução de Messalina: romance da Roma antiga de Alfred Jarry. E nesse tempo mítico do mundo dos livros, eis que surge agora, em pleno momento de conseguirmos ler um pouco mais em casa – será? –, o livro impresso e ebook. Viva!

Abaixo a apresentação que escrevi para o livro, que conta ainda com orelha alucinante de Maria Bitarello (que vocês poderão ler no livro…):

o objeto livro

Para penetrar um poeta, poetas.  Começando com Roberto Piva, “não há poeta experimental sem vida experimental”.

Alfred Jarry, que para dormir recomendava “uma mistura de vinagre e absinto em iguais quantidades num copão, e uma gota de tinta de escrever”, praticante apaixonado de tiro, esgrima e ciclismo, viveu entre Paris e o campo na virada dos séculos XIX e XX e morava, segundo Apollinaire, no terceiro andar e meio da rua Cassette n.o 7 – mas parece que era no segundo e meio se ouvirmos outras fontes -, frequentava as terças-feiras de Mallarmé, as quintas de Rachilde, as noitadas do Café de la Plume em Saint-Michel, usava sua bicicleta para as ruas e estradas, e para o Sena seu barco.

Simbolista, surrealista antes do surrealismo, surrealista no absinto segundo André Breton em seu Manifesto de 1924, Jarry, absurdo no teatro antes do Teatro do Absurdo, autor de Ubu Rei, ou ele mesmo o próprio Ubu, criador da Patafísica – “ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções” -, em sua estadia por aqui, de 1873 a 1907, alimentava-se pouco, dos peixes que ele mesmo pescava, de costeletas de carneiro cruas e pepinos em conserva, o que, combinado a hábitos radicais, entre eles o de beber absinto, éter e álcool puro em grandes quantidades, deve ter contribuído para sua morte prematura aos 34 anos, por uma meningite tuberculosa.

Personagem de si mesmo, que gostava de ler em voz alta seus textos, com uma peculiar “elocução insólita, implacável, sem inflexões nem matizes, com uma acentuação igual em todas as sílabas, incluindo as mudas”, segundo descrição de André Gide – ou “de voz precisa, grave, rápida e por vezes enfática” segundo Apollinaire, ele mesmo define sua escrita nos Minutes de sable mémorial :  “Sugerir no lugar de dizer, fazer na estrada das frases um cruzamento de todas as palavras”, “um poliedro de ideias”, e afirma que  “todos os sentidos que o leitor ali encontrar estão previstos, e nunca ele encontrará todos;  e o autor pode indicá-los ao leitor, cabra-cega cerebral, inesperados, posteriores e contraditórios.”

Tema de inúmeras teses acadêmicas e biografias, Jarry, versado em grego e latim, que escreveu teatro e sobre teatro, poesia, romances, fez traduções, colaborou para diversas revistas, criou sua própria, dirigiu seus textos no teatro, dublou marionetes, e por aí vai longe…, continua inspirando e sendo descoberto e redescoberto por artistas de hoje de diversas linguagens.

            Messalina, segundo romance de uma trilogia amor e morte, publicado originariamente em partes pela revista Revue Blanche em 1900, tem uma descrição certeira na crítica de Michel Arnauld para a mesma revista quando de seu lançamento em livro no ano seguinte, num momento em que estavam em moda na França os romances de época, c’est-à-dire da época clássica:  “Todos os leitores de Quo Vadis deverão ler Messalina e conhecer, depois da Roma a céu aberto de Nero e de Sienkiewicz, uma Roma mais secreta e quase subterrânea, a de Cláudio e de M. Jarry: aqui, não mais retórica, circo ensanguentado, não mais banquetes sonoros, gladiadores, não mais cristãos; mas a espelunca esfumaçada de Suburra, o mistério dos jardins abandonados, a dança de um mímico sob o vermelho de um eclipse, e, em todos os lugares, o culto dedicado pela Vênus-Imperatriz ao deus que a penetra e se desnuda sempre…”

            Ainda segundo Arnauld, “o tema trouxe felicidade a M. Jarry: pois ele pode desenvolver as qualidades que nós já experimentamos, erudição bizarra, complicação de frases em arabesco, truculência rabelaisiana e brutalidade direta; mas tudo isso, sustentado, disciplinado por Roma, levou a efeitos mais intensos e mais francos.”

            “Um livro simbolista tanto no sentido da história da literatura quanto no sentido de um simbolismo psicológico profundo, enriquecido por elementos da mitologia pessoal do autor”, como definiu tempos depois Riewert Ehrich para a revista L’Étoile-Absinthe da Sociedade dos amigos de Alfred Jarry.

Sintomático que da trilogia O Amor Absoluto (1899), Messalina (1901) e o Supermacho (1902), só esta Messalina não tinha sido ainda traduzida e publicada no Brasil?  Este livro vem então suprir esta falha.

Traduzir Alfred Jarry é beber sozinha uma garrafa de absinto pra andar na corda bamba em cima do Sena ou do Tibre, com aquele medo de deixar pingar uma gota de água no absinto e turvar tudo como ele mesmo diz, é ativar todas as partes do corpo, principalmente a imaginação, se sentir livre pra inventar também, inspirada pelo caleidoscópio de palavras, frases e sentidos, e ao mesmo tempo perseguir sempre a precisão e a delicadeza de saber pisar em múrrinos sem quebrar nada, ouvindo consciente pequenos e grandes estalidos.  Depois desta Messalina somos já amigos tão íntimos, dos que brigam muito, e que por isso mesmo não se sentem sozinhos no mundo.  Que bom que a Patafísica acabou com a linearidade do tempo, um de seus principais objetivos.  Segui conselhos que recomendo ao leitor: respire sempre, antes, no meio das frases, depois, e antes de começar a próxima, leia em voz alta, abuse de sua própria imaginação e ritmo, a partir dos roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros indicados por Jarry, com a alegria dos que não sabem e descobrem; e mais outro, informe-se !  com os devidos agradecimentos a Oswald de Andrade e Hilda Hilst.

E agora chega que Jarry fala por si.  Merdra ! ! !

BATE PAPO – E pra quem quiser se aprofundar um pouco nessa aventura, compartilho aqui um bate-papo com Simone Homem de Mello, que me convidou a falar um pouco deste trabalho no Ciclo Livro Falado, do Centro de Estudos de Tradução Literária da Casa Guilherme de Almeida. Esse encontro virtual aconteceu em 22 de setembro de 2020.

só clicar na imagem e acessar o bate-papo

o tempo na porta da frente

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cd Pequeno Circo Íntimo (só clicar), de Adriana Capparelli. Pra ouvir hoje – e sempre -, e dar muitos VIVAS a Aldir Blanc.

De certa forma devo a ele ter conhecido Adriana Capparelli. Ela estava gravando seu primeiro cd solo, só com composições de Aldir Blanc com diferentes parceiros. Eu estava me preparando para gravar minhas versões em português para as canções do francês Boris Vian, e isso aconteceria no mesmo estúdio onde ela estava dando vida àquelas letras. Seríamos então colegas de gravadora. Dabliú Discos, do compositor Costa Netto, que nos apresentou.

Estivemos juntas depois apresentando esses nossos trabalhos na inauguração do primeiro espaço d’Os Satyros na Praça Roosevelt.

Tempo animado. Muito amor, muita inspiração, novas parcerias, novos projetos, criações. Adriana com seu Pequeno Circo Íntimo, show dirigido por Isabel Setti, ocupava o espaço às segundas e terças-feiras, eu com meu Letícia Coura canta Boris Vian, dirigido por Rodolfo Garcia Vasquez – e onde contracenava com Ivam Cabral, um quase anagrama do Vian -, às quartas e quintas, e de sexta a domingo, com Os Satyros, o espetáculo Retábulo da Avareza, Luxúria e Morte, de Valle-Inclán, também com direção de Rodolfo. Eu então ficava lá a semana inteira: nas noites de segunda e terça fazia a bilheteria e operava o som do show, e era mesmo uma viagem regular volumes, agudos, médios e graves pra ouvir as palavras de Aldir Blanc na interpretação da Adriana. Um cabaré no melhor estilo, meia luz com as canções encenadas pelo espaço recém aberto, entre mesas, cadeiras, o público que vinha e voltava muitas vezes. Uma intensidade . . . !

Só uma introdução pro cd que deu vontade de ouvir hoje, que despedimos de Aldir Blanc daqui desse momento surreal que estamos vivendo. Uma leitura muito pessoal e intensa da obra de um dos maiores letristas brasileiros. Que como li hoje, sabia escolher bem as palavras, e usar umas gírias que só ele desenterrava. E Adriana soube aproveitar cada uma delas que escolheu pra cantar.

Pra ouvir Doraaaaaaaaaaaaa ! ! ! ! !, num fôlego só, cortando e fazendo cortar todos os pulsos que a letra pede. Ou além.

Hoje, tanta gente confinada em casa com sensação de fim de mundo, uma boa forma de sobrepor universos paralelos. Bora ouvir Adriana Capparelli interpretando um dos melhores cronistas cariocas, de um mundo do qual vamos nos despedindo a cada dia, mas sempre buscando inspiração nos poetas pra inventar esse próximo que nos aguarda.

Para a Neide, como música. E pra nossa quase estreia.

sede cia livre – foto Cris Cortilio

Tão pouco tempo e tudo mudou tanto. Sem volta.

Acabei de saber que a Neide morreu. Minha parceira, eu mais velha, eu mais nova, ela eu, ela em mim, ela falando com ela mesma que ali era eu, e nós éramos uma, uma força de vida, um sentimento, um pensamento de vida toda. O que fiz, o que deixei de fazer, que bobagem, não deixe de fazer nada que você quer, é o que ela me dizia, é o que dizia pra si mesma, uma reflexão do que fizemos e deixamos de fazer na vida.

Hoje ela morreu, lá se foi ela, estava no hospital, usando um respirador, mas já se livrando dele segundo as últimas notícias que tivemos, e que eram boas, de esperança de que ela ia se recuperar, voltar pra casa, que nós íamos nos reencontrar e continuar nossos trabalhos.

Não, nós não vamos continuar nossos trabalhos tão cedo. Mas no que quer que ele se transforme, ela estará conosco. Vou sempre me inspirar na cena que fizemos juntas. Ela tão rápida, generosa, engraçada, presente com sua presença de vida inteira, de vida vivida e agora ali, passado presente futuro um só, em ações e reflexões. Uma leveza de fim de caminhada, aquele foda-se maravilhoso onde nada importa e tudo importa, é estar ali e viver. Uma dor no corpo aqui e ali que a impedia de andar ou ficar em pé em algumas práticas, mas a presença, sempre. Aquela cara de desenho animado, já uma mistura andrógina, uma pessoa. Uma pessoa velha, a mais velha de nós, nossa anciã, a mais sábia, a mais leve. A mais divertida. A mais desencanada. Agora desencarnada, desencarnando, que não sabemos direito como isso funciona. Só sabemos que todas vamos passar por isso. Nosso último desafio. Até começar uma nova aventura ou quem sabe tudo de novo . . .

Penso então na nossa peça, no trabalho que estávamos construindo juntas, e que elas estavam sendo nossa inspiração. Nossos trabalhos diários, nossos encontros, nossos primeiros ensaios tijolAs. Algo estava no ar. Uma sensação de que não continuaríamos daquele jeito, não sabia bem o porquê, às vezes pensava que íamos mudar o espaço da apresentação, talvez uma esperança de um espaço maior, de possibilidades de continuidades, o fato é que algo parecia que não ia acontecer como os caminhos pareciam indicar. Hoje penso se já sabíamos de alguma forma que algo estava por vir. E agora em casa, um pouco doente – porque pelo jeito também peguei a tal covid-19 -, me sentindo impotente, inútil, sem muita força que essa coisa derruba a gente, com alguma vontade que vai e vem, sem saber o que fazer, o que dá pra fazer, agora é me recuperar, mas a sensação só aumenta. A cena do filme em que estamos parados esperando aquele enorme planeta se aproximar e colidir com a Terra.

Quanto tempo vamos ficar assim? Quando poderemos sair, encontrar as pessoas? Sem medo, sem dúvida do que podemos e ou devemos fazer ou não. Máscaras? Sempre máscaras e medo de nos contagiarmos? E os teatros. Quando poderemos estar com as pessoas, todas ali ao mesmo tempo, naquela promiscuidade de ar que sai de mim e entra no outro, nos outros, eu que respiro o ar que já passou por tantos, e ainda transformamos tudo em som, música? Quando cantaremos todos juntos de novo, com nossos sons se misturando, nossos ares dançantes entrando e saindo entrando e saindo e formando ondas, movimentos de cor e luz pelos ares, que captamos, repetimos juntos e separados e formamos nossas sinfonias?

Justamente não sabemos.

Mas vamos encontrar um jeito. Porque queremos nos encontrar, queremos cantar juntos de novo, brincar de ser outros, de ser o que pensamos que somos, o que pensamos que outros são, de trocar existências. Aí vamos nos olhar de novo olho no olho sem telas ondas feixes algoritmos fios sem fios correntes. E vamos sentir as vibrações tantas, de perto, entrando e saindo de corpos presentes vivos e animados. E vamos cantar, pular, dançar, nos abraçar, encostar, cair uns em cima dos outros, vamos dar as mãos e fazer uma grande roda pelo mundo, batendo os pés no chão, acordando os mortos debaixo da terra e voando pelos ares, e vamos celebrar a vida, esse mistério em movimento.