Minhocão de bicicleta depois do ensaio – Agora Vai

Procurando escritos sobre certo assunto em diários passados, encontrei esse. Publico como homenagem ao bloco querido Agora Vai – que já começaram os ensaios pro Carnaval 2020 -, e à lua cheia que vem chegando. Daqueles momentos em que sentimos amor por essa cidade maluca.

MINHOCÃO

10.2.2014

Voltando do ensaio do Bloco Agora Vai, na Barra Funda.  De bicicleta pelo minhocão, terça-feira 11 da noite.

Quando cheguei em SP morei na Praça Roosevelt.  Quando ainda tinha o Pão de Açúcar, a padaria, o bar Corsarius, o cineclube, nenhum teatro, e o motel ao ar livre da praça.  Um domingo glorioso de sol resolvi pegar a bicicleta e passear no minhocão, que tinha visto que fechava pros carros.  Quem sabe chegar até o Sesc Pompéia.  Fiquei tão chocada com a feiúra daquele cimento sem fim entrando nos apartamentos, o sol de rachar, as pessoas andando naquela desolação de concreto como num parque, comprando picolé e passeando com as crianças. É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi . . . voltei correndo pra casa e não lembro como terminei o domingo.

Hoje, passados os mais de vinte anos, não moro mais na praça, mas atuei nela algumas vezes e até compus a Lua Cheia que se passa ali, que ainda canto.  E voltei de bicicleta pelo minhocão, depois do ensaio animadíssimo do Agora Vai.  O caminho de volta era exatamente o minhocão inteiro.  Noite quente.  Muito quente, depois de muitos dias muito quentes.  E aquele ventinho do caminho de ciclista, cruzando outros e outras, trocando cumplicidade, reparando na lanterna de um, no capacete do outro, no prazer de todos.  Logo fui tomada pela beleza dos prédios, pela beleza da feiúra de muitos, muitos descuidados, muitos velhos e lindos, grandes portas, grandes janelas, grandes salas, quartos, cozinhas, varandas.  Entra-se em cada apartamento, convivemos com os moradores, que na noite quente abriram suas janelas, saíram às varandas, ou apenas continuaram levando suas vidas, fazendo comida, o cheiro se espalhando pelo ar quente e poluído da noite seca, sentados com as tvs ligadas, computadores, livros, brinquedos de criança, bicicletas estacionadas, roupas secando, prédios art-decó, art-nouveau, ou sem arte nenhuma, só velhos, sujos e caindo.  Famílias juntas nas salas, separadas em quartos, banheiros, cozinhas, ao alcance dos olhos, da voz.  E o minhocão cheio de gente, andando, namorando, casais de homens, de mulheres, misturados, pais e filhos, turmas de amigos, amigos tomando chimarrão, cabeludos fazendo penteados, exibindo tatuagens, ciclistas da noite.  Pedalo devagar, pra aproveitar cada janela, cada sotaque, cada língua diferente, pedaços de assunto.  Um menino vem correndo, desafiando.  Uma criança, oito, dez anos?  E eu só queria ganhar a corrida, ele na frente correndo, rápido, acelerei, me emparelhei com ele, disputamos cada centímetro, até que embalei, ganhei ! ! !  e nos despedimos como adversários à altura.  Trabalhadores com roupas fosforescentes dentro de um caminhão – o único carro ali àquela hora – e remexendo num buraco negro, fios, labirintos, segredos da cidade, ratos, baratas, subterrâneos de tudo.  Pessoas nuas, meio nuas, dava pra ver até a cintura de fora pra dentro através das janelas, casais antes e depois do amor, intimidades.  Árvores, folhas muito verdes no escuro, tentei sentir algum perfume mas não veio nenhum.  Angélica, Igreja de Santa Cecília, Largo do Arouche, uma subidinha, outras janelas, varandas, cozinhas, camas, geladeiras, tvs. Outras luzes – o minhocão tem uma penumbra romântica. Uma luz indireta, que faz ver mas não demais. E a lua, quase cheia. De repente mais luzes, de todos os lados, dois caminhos. O minhocão foi acabando . ..  cheguei na Praça Roosevelt.  A rua, as pessoas.  Aqui do lado, logo ali.  Calor, movimento, vento.  E tanta gente que não vê nada disso, enlatada nos carros, dentro dos shoppings, atrás de muros, com medo da sombra e cercada de (in)seguranças.

Praça Roosevelt de agora. Desenho de um domingo ansioso, que agora com muito orgulho é capa do livro O Tempo das Coisas de Maria Bitarello

de volta pro futuro – 15 dias no Xingu

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Perturbador o tempo sem tempo passado nos Kamaiurá. Um Kwaryp que virou dois. Uma viagem de 14 dias que ainda vai ressoar muito pra frente e pra trás, um passeio pelo atávico e pelo futuro, bárbaros tecnizados para além do nosso nhén nhén nhén da cidade. Chegando na aldeia no Parque do Xingu em pleno eclipse da lua, um dia e noite inteiros de viagem – avião, ônibus, van, barco e caminhão -, e sensação de voltar pra casa, de ir visitar parentes no interior. Na roça, como se diz. Tudo muito familiar. Ao mesmo tempo não falamos a mesma língua. Eles entendem e falam português, mas eu a ignorante por não entender o que eles dizem e cantam.

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Tempo alargado. Vontade de desenhar o silêncio da aldeia. O sol do meio-dia, o centro vazio, um cachorro aqui, umas crianças pra lá e pra cá, uma vida em volta das casas em círculo. Desenhar pacientemente os telhados de palha – que agora começam a receber uma lona, que dura mais tempo. Não aparece no desenho, mas uma das lonas é prateada, parece que estamos numa estação espacial.

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O nankin que não deixa errar. O que se risca fica ali. Precisão que a calma da aldeia estimula. Tempo de olhar olhar e desenhar, sem necessidade nem vontade do instantâneo da foto de celular. Tempo esticado e desconectado.

 

 

Sentava pra desenhar e logo vinham as crianças. Ficavam olhando, e logo queriam desenhar também. Taís, moradora da casa onde eu estava, me desenhou aí. Todas as crianças que me usaram como modelo desenharam a minha pinta. Engraçado que todas a tenham percebido.

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Eram mais as meninas que se aproximavam. Rebeca, Taís, Princesa, Kanairu. Uma vez foi o Romeu. Perguntei se o desenho estava parecido, daí ele me apontou a casa onde morava.

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A lagoa Ipawu é onipresente. Toda manhã: “já banhou?” antes do sol nascer. Demorei uns dias pra entrar no esquema. Um frio danado, um pouco escuro ainda, um bafo quente saindo da lagoa, aquela bruma em cima da água. Acabei conseguindo, deixando casaco, calça, blusa e meias de lã na areia. Todos os dias seguintes “já banhou?” “já”.

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Um samba pra Beth Carvalho

Captura de tela 2019-05-01 15.23.06E lá se foi Beth Carvalho. Difícil não pensar que o Brasil vai ficando mais triste. E que a responsabilidade de não deixar a peteca cair vai ficando cada vez mais na nossa mão.

Tive a alegria de conhecer pessoalmente Beth Carvalho no Rio de Janeiro, na Tijuca, há mais de vinte anos atrás, numa ida com o letrista Costa Netto para tratar de assuntos da Dabliú, seu selo que ia lançar meu primeiro cd, o Bam Bam Bam. Que delícia uma noite de samba na casa do compositor Moacyr Luz, recém colega de gravadora e vizinho de prédio de Aldir Blanc, que também estava lá. Muita cerveja muito gelada, cachaça daquelas que descem acariciando a garganta e esquentando o corpo todo, tira-gostos maravilhosos, uma fartura danada, e a música que não parava. Muito bamba do samba, o violão que passava pra lá e pra cá, Beth no cavaquinho…

Sentei num canto ouvindo a música, tomando cerveja, cachaça, experimentando a petiscada carioca, sem conhecer ninguém mas já conhecendo todo mundo, e engreno uma conversa com um cara ao lado, falamos de sambas, música brasileira, ah, essa é demais, do fulano… adoro esse outro samba, uau, tava pensando nesse, ele então me contou que estava fazendo um livro com os sambas mais mais de todos os tempos, daí perguntei o nome dele, ele disse Almir. Uns dez segundos se passaram e eu entendi: Almir ! você é o Almir Chediak !!!, ele realmente me parecia familiar, daí agradeci muito a ele, graças às suas harmonias caprichadas tinha aprendido a tocar melhor meu violão, seus songbooks que me ensinaram tanto e me fizeram enveredar pela harmonia da bossa nova, do samba e da música brasileira de vários compositores e gêneros diversos. Que alegria de novo estar ali aquela hora, poder ouvir, trocar, e sim, agradecer todo aquele aprendizado e inspiração.

Lá pras tantas, já animada pela cerveja, pelo samba, pela cachaça, pelas conversas inspiradas, me vejo sentada ao lado dela, a madrinha do samba, a Beth Carvalho da voz rouca, estou cantando com ela, todo mundo cantando junto, feliz. Daí pergunto se ela conhece o Ziriguidum. Imagina se a Beth Carvalho, a rainha do Ziriguidum, não conhece o Ziriguidum … perguntei empolgada, tinha feito a mesma pergunta no camarim depois de um show da Elza Soares. Era o Ziriguidum cantado por ela e Monsueto numa gravação hoje facilmente encontrada no youtube, parte do filme Briga, Mulher e Samba, de 1961. É um samba irresistível, que a própria Elza Soares não se lembrava de ter gravado. Na empolgação da noite, perguntei a Beth Carvalho se ela conhecia – tipo aqueles chatos sem noção que ficam pedindo ‘aquela’ música – e ela muito naturalmente disse que não, e pediu então que eu cantasse pra ela conhecer. Ih. Agora ali não podia fugir, de onde tirei a ideia de fazer essa pergunta, maldita espontaneidade etílica, agora estava eu ali com um violão na minha frente, com um Ziriguidum a executar pra Beth Carvalho conhecer o que é Ziriguidum .. . . através de mim. Mais outros dez segundos, fazer o quê, peguei o violão, cantei, ela foi cantando junto, perguntou de quem era, Monsueto, eu disse, adoro Monsueto, ela completou, e eu feliz contei a história do camarim com a Elza Soares, duas rainhas do Ziriguidum para quem tive a honra de cantar o Ziriguidum.

Depois fui a um show dela aqui em São Paulo, e ao final fui ao camarim agradecer a noite cheia de Ziriguidum, e encontrei lá muitos compositores com um samba na mão, na esperança de ter um samba seu imortalizado na voz de Beth Carvalho, como tantos outros antes, de Cartola a Zeca Pagodinho.

Outros anos depois fomos tocar – o trio Revista do Samba, meus parceiros Beto Bianchi, Vítor da Trindade, e eu – num festival no sul da França e mais tarde no mesmo festival assistimos a um show dela numa arena romana, e cantamos juntos a plenos pulmões Andança – aquela mesma que não aguentávamos mais cantar nem ouvir em alguma roda por aqui – nós e todos os brasileiros que foram lá matar um pouco da saudade do Brasil, uma emoção e um orgulho da riqueza da música brasileira encantando e alegrando o mundo. E no fim do show uma Beth Carvalho meio contrariada de ter que acabar o show antes do show acabar, tendo que seguir um horário francês de festival com muitas atrações, d’accord, uma cultura que influenciou o mundo inteiro, mas que não sabe como funciona uma roda de samba.

Depois tantas vezes vendo Beth Carvalho lançar novos sambistas, sempre presente nos atos em favor da democracia, e cantando o samba do #LulaLivre na internet.

Hoje o Brasil está um pouco mais triste. O Almir já se foi tempos atrás, deixando o Brasil mais desarmônico, agora a Beth Carvalho foi fazer um samba com Cartola noutros mundos, e as rosas daqui vão falar ainda menos. Lembrando daquela noite lá na Tijuca, vem o sentimento de responsabilidade pra nós, que conhecemos e vivemos o Brasil com esses artistas, um tempo de esperança, de criação, com a cultura daqui sendo valorizada aqui e no mundo, encontrando meios de compor, cantar, divulgar essa música brasileira tão diversa e rica por todo canto. A hora é de ter cada vez mais esses artistas conosco, nos inspirando. Os podres poderes vão e vêm, sobem e caem, mas o samba continua fazendo o mundo todo e até Marte rebolar. E fico – e deixo vocês – com a voz da carioca Beth Carvalho mergulhando no samba paulista, cantando a Tradição do compositor Geraldo Filme, que há décadas atrás já compunha contra a verticalização do bairro: quem nunca viu o samba amanhecer, vai no Bixiga pra ver, vai no Bixiga pra ver . . .

Ah!… é Tarsila do Amaral ! Tarsila Popular no MASP

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Fiquei 3 horas em pé na fila para ver os quadros de Tarsila do Amaral no MASP. Poderia ter evitado a fila longa, mas minha irmã veio para poucos dias em São Paulo e hoje era quando poderíamos ir juntas. E eu já queria ir desde o primeiro dia.

Chegamos e um rapaz – que depois soubemos que não era funcionário ali – nos avisou que ficaríamos na fila de 40 minutos a uma hora. Pareceu longo mas sim, valia a pena, o dia estava lindo, estávamos no vão livre do museu, a vista gloriosa, o verde cantante do parque Trianon em frente, pessoas animadas na fila, crianças, velhos, jovens, casais de todos os gêneros e idades, e um vento nos corpos.

3 horas é tempo pra muito assunto, muita observação, muito pensamento. Estava eu ali pensando em meus momentos de Tarsila, ali mesmo na escadaria do MASP, quando fomos buscar o acervo do palhaço Piolin em 2015 para levar pro Centro de Memória do Circo, em carreata até o centro da cidade. Tivemos o momento palhaços e todos pra foto e até o de dar uma fugidinha com Oswald e fazer uma foto com os cavaletes de vidro da Lina Bo Bardi que receberiam as obras para a nova exposição do museu.

Fui aproveitando as 3 horas de fila – quando é que temos 3 horas para passar o tempo? – pra pensar então no Circo que foi montado ali mesmo no vão, em 1972, para as comemorações dos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Uma homenagem a Abelardo Pinto, o palhaço Piolin, que então há mais de dez anos estava sem sua lona montada na cidade. E fiquei pensando nos meus quadros ali, quer dizer, de Tarsila, naquelas pessoas como eu, nas horas inventadas de tempo para conhecer Tarsila do Amaral.

Fui contando para minha irmã da minha vida passada – no teatro – como Tarsila, o perfume que usava, minhas tardes e noites com Oswald, a pintura dele nu em cena como no desenho, a origem da cena do absinto com ouro, nossa descoberta como antropófagos por causa da rã, que me levou à viagem com a rã do Parque da Aclimação, o leite da cabrinha, a Cacilda sozinha com os fantasmas do TBC que viraria Tarsila com a batida do tambor e a explosão do fogo. O fogo do teatro, fogo de criação, que foi dar em tantas obras impressionantes. Tarsila à frente de seu tempo – ou atrás, já que tudo é circular -, com seus amores, seus talentos, seu charme.

Sabe aqueles sonhos acordados que temos, em que morremos e estamos vendo as pessoas vindo até nós no caixão, um pra chorar um pouco já de saudade, outro para se desculpar, outro pra rogar sua última praga até o além, uns outros arrependidos por terem nos tratado tão mal… ou tão bem. Ali estava eu, na Tarsila que está em meu corpo, ou no pouco muito de Tarsila que vive em mim, vendo as pessoas que escolheram me conhecer (um pouco mais ou pela primeira vez) no sábado de aleluia. Saíram de suas casas, reuniram famílias, amigos, até um cego e seu cão guia, e foram ali, ficar horas na fila pra conhecer o que passei a vida fazendo, buscando, criando.

Depois da fila embaixo, outra em cima. E então entramos. Um pouco perturbador todo mundo fazendo selfies com os celulares, mas incrível também ver tanta gente querendo se fotografar em frente aos quadros de Tarsila. E fotografar os quadros, que podem ser encontrados facilmente na internet. Mas ali está o quadro e eu, no mesmo lugar e ao mesmo tempo. O melhor sorriso, o melhor ângulo, no momento da selfie não se vê mais nada nem ninguém, o que importa no mundo é estar no seu melhor para literalmente ‘ficar bem na foto’.

Mas passado o susto das selfies, era de um prazer indescritível ver crianças reconhecendo a Cuca no quadro, uma outra impressionada com o Sapo, outra com os chifres do Touro. As adolescentes animadas, uma dizendo pra outra, olha a Mona Lisa dela, o Abaporu, rodeado de gente, muita gente, todos ali olhando, querendo talvez entender alguma coisa, sentir as cores, saber o que significa Abaporu – em tupi, homem que come gente, antropófago -, imaginar o que levou a artista a inventar aquela figura. O cego que conhecia todos os quadros e suas histórias e ia contando pros amigos; os que liam todos os textos explicativos, os que não liam nada, os que ficavam muito tempo olhando o mesmo quadro, os que só tiravam uma selfie e iam embora sem ver, as mulheres velhas encantadas com as cenas da Procissão, o Batizado de Macunaíma meio desprezado e enorme no meio da sala, os desenhos das montanhas e igrejas de Minas, de Recife, do Rio de Janeiro, a curiosidade realimentada, as biografias, dela, de Oswald, a história de São Paulo de um outro ângulo, as crônicas de Tarsila pro jornal O Estado de S. Paulo, o Mandú Çárárá de Villa Lobos de novo na cabeça.

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Macumba Antropófaga – Teatro Oficina 2011 – foto de Acauã Sol

Li antes de sair de casa que Tarsila pediu o Abaporu de volta ao Oswald quando eles se separaram. Ela o havia presenteado com o quadro em seu aniversário de 1928, que acabou dando origem ao Manifesto Antropófago, que veio a dar na Antropofagia nas artes, que inspirou depois tanta gente, e que deu até no espetáculo Macumba Antropófaga do Teatro Oficina onde eu virei a Tarsila pela primeira vez em 2010 e depois de novo e de novo, que me fez descobrir o prazer de desenhar depois de tantos anos sem saber que podia.

As voltas da vida, sempre girando, eu chegando de Minas em São Paulo lá atrás, Zé Celso e Marcelo Drummond cantando o Soneto do Olho do Cu no Teatro Municipal, onde aconteceu em 1922 a Semana de Arte Moderna, anos depois a Macumba Antropófaga no Teatro Oficina, Tarsila nascendo vermelha, amarela, azul e verde no cavalete de vidro da Lina e em mim, e outra vez no Dia do Circo, com Oswald Marcelo, os modernistas, Piolin e muitos palhaços no Largo do Paissandu pro Festim Antropofágico desse ano de 2019, e hoje Tarsila exposta em cores, bichos, pedras e folhas pra multidão, e queimando aqui dentro. Roda Viva.

Tantas histórias numa história. Voltando às 3 horas da fila, pude pensar ainda que loucura a vida das pessoas, Tarsila e Oswald que foram tão ricos, viveram vidas quase inimagináveis nas mais altas rodas artísticas de Paris e daqui, depois o mundo dando uma virada e eles também com a queda do café e da bolsa, daí conheceram outras realidades, continuaram suas buscas artísticas por outros caminhos, e hoje a Antropofagia é estudada no mundo todo (exageros incluídos) e Tarsila é uma pintora que desperta interesse renovado no Brasil e fora, com obras espalhadas por diversos países, seu quadro A Lua recém adquirido e exposto pelo MoMA de Nova Iorque, e o Abaporu cotado em aproximados 100 milhões de reais. Quantia abstrata pros padrões matemáticos e financeiros comuns, e contraditório com o final da vida da artista, que morreu em 1973 aos 87 anos sem ver sua obra reconhecida a esse ponto. De dinheiro, de crítica e de gente. Não necessariamente nessa ordem.

E também quanta energia uma exposição dessa movimenta. Só por estarmos ali na fila, logo apareceram vendedores de água, salgados, brigadeiros. Até uma performance relativa à Páscoa, meio sem graça mas bem aplaudida. E todos os trabalhadores ali mesmo do MASP. E todo o trabalho para organizar a exposição, todas as pessoas envolvidas, vários países onde as obras moram hoje. E todas aquelas pessoas que foram ver. E os restaurantes e lanchonetes ao redor e do próprio museu que venderam um pouco mais hoje pra nos alimentar na fila, durante e depois da visita à exposição. Os transportes. As outras exposições visitadas. Outras obras e autores conhecidos no próprio museu, por causa da visita de hoje. Lembranças desta e de outras exposições, que vão durar muito tempo.

E agora os meus olhos, meu corpo e minha imaginação, e da tanta gente que foi ali hoje, estão impregnados com tantas cores, bichos, gentes, lugares. Os rostos d’Os Operários, d’Os Trabalhadores, os Autorretratos, os mandacarus, palmeiras, manacás, as plantas gigantes, lugares, festas, o Carnaval em Madureira, os olhos tristes da Segunda Classe, a vontade de ler mais e de novo Oswald e Mário de Andrade, Raul Bopp, de conhecer mais Piolin, de saber mais sobre o cubismo, sobre Anita Malfatti, Pagu, de conhecer um pouco mais dos anos 20 em Paris, da história de São Paulo, dos povos originários daqui, dos invasores bandeirantes, dos jesuítas, dos imigrantes todos, voluntários e não, da crise do café, da queda da bolsa, dos casarões da Avenida Paulista e dos moradores do bairro do Bixiga vindos de toda parte.

Inspiração que dias sombrios não tiram. É a arte que sempre dá a virada.

Marcia Tiburi e o Brasil mais apertado

14695305_10210648943730019_520910363413503396_n (1)Conheci Marcia Tiburi na primeira reunião da #partidA em São Paulo. Minha amiga Nana querida estava em casa, e durante uma conversa feminista me falou do encontro que aconteceria em breve, da Marcia, nos apresentou acho que pelo facebook – quando ainda era possível se comunicar por ali, ao que ela logo respondeu animada sim, venha! Fui.

A reunião foi ótima, conheci mulheres incríveis, fui em outras na sequência, acabamos nos aproximando mais por conta de uma parede que caiu no Teatro Oficina no momento em que ela falava de outras paredes caídas, e que quase nos fez parceiras num texto teatral. A parceria na parede não vingou, mas a ideia sim, virou música, está virando outras, muitas inspirações e novas parcerias. Alguns encontros aqui e ali fui percebendo uma característica muito especial de ariana que ela é, a de botar fogo em ideias e projetos, que depois andam por si.

Tempos depois por outros caminhos ia publicar meu primeiro livro de contos Então é isso?!, e queria muito uma mulher para apresentá-lo, pensei na Marcia. Novamente ela foi tão aberta, tão pronta a ler, dispondo-se a escrever o prefácio, cumprindo prazos, tamanhos, e até discutindo sobre o que havia escrito. É claro que eu não teria como retribuir tanta generosidade, e quanto valeria um prefácio de Marcia Tiburi para uma primeira investida no mundo da literatura, com contos guardados por anos em gavetas e pastas de computador?

Ela como sempre bem humorada: quer me dar um presente? Topa ler trechos do meu livro novo, que vou lançar em São Paulo em breve? E quem ganhou o presente fui eu, que ao lado da poeta Alice Ruiz (!) e do compositor e cantor Carlos Careqa, participei do lançamento de seu Uma fuga perfeita é sem volta.

Hoje fico sabendo pelos jornais que Marcia Tiburi está fora do Brasil e não pretende voltar tão cedo. Que vinha sofrendo perseguições e ameaças de morte, que desde que se negou a estar no mesmo programa de rádio que aquele kimbecil, cuja participação não lhe havia sido comunicada, sua vida virou um inferno com ataques incessantes de intrépidos virtuais, e que depois da candidatura a governadora do Rio pelo PT até a eventos literários precisava ir acompanhada por seguranças, passou a ser agredida na rua, e outros horrores que estamos nos acostumando a achar normais. Ameaças de morte.

Além da tristeza que essa notícia traz, da sensação de abandono cada vez maior, não só nossa, mas desse país gigante e tão amado nas mãos de uma gang alucinada de tão ignorante e cega pela própria mesquinhez, o medo que dá é o de não perceber se já chegou naquele ponto insuportável e que não notamos, ou pelo estado de choque provocado por cada notícia inacreditável que bate na nossa cara logo de manhã, ou porque tudo veio acontecendo tão rápido que não deu tempo de perceber o quão na merda já estamos.

E o que mais assusta nessa história nem é procurar pela notícia da saída da Marcia do país e já encontrar pela internet tantas agressões antes mesmo da notícia em si. Mas pensar em como chegamos nisso, nas pequenas picuinhas do dia a dia, nos comentários maldosos que já ouvimos de ‘amigos’ incríveis, da família ‘adorada’, dos vizinhos ‘cordiais’, nas pequenas agressões cotidianas que nos fazemos uns aos outros por um nada mesquinho que está tão entranhado na nossa cultura que nem distinguimos mais. O que estamos virando? Ou sempre fomos assim e só agora nos damos conta. A merda está escancarada na internet, mas muitas vezes bem escondida em nós mesmos.

Hora de parar de sentar no próprio rabo pra falar só do rabo dos outros. De dar aquela respirada antes de falar, e quem sabe desistir de falar e começar a ouvir. Ouvir o outro. Mas também ouvir profundamente a si mesmo. Se olhar no espelho. Sem máscara.

Cheguei do Carnaval de lavar a alma do Rio de Janeiro, com a Mangueira dando banho de história e arte pro mundo inteiro ver, cantar e dançar junto, e blocos pelo país todo provando mais uma vez que a alegria é a prova dos nove. Começou finalmente o ano, e infelizmente já largamos dando muitos passos pra trás. Que o samba então nos dê força e inspiração pra muito tempo, e imaginação pra sair dessa. E que a Marcia Tiburi continue tendo e botando fogo em tantas ideias, espalhando sua clareza, inteligência e coragem pelo mundão afora. O Brasil vai ficar um pouco menor e mais apertado, mas daqui a pouco essa canoa furada em que estamos pode virar. Os tambores e caxixis já estão batendo e vão bater cada vez mais forte pra balançar essas estruturas de plástico podre. E as paredes de cartas marcadas desse baralho de gangsters vão cair uma a uma com a batida do samba.

[:pb]O Dia do Palhaço[:]

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Lançamento do Cd A Música no Circo Nerino no Sesc Belenzinho com seu Rogê, o palhaço Picolino, no centro

 

Havia me mudado há pouco pra São Paulo. Sem muito dinheiro, fomos eu e Beatriz – morávamos ali na antiga Praça Roosevelt – jantar no restaurante Famiglia Mancini, quando isso ainda era possível. De onde nos sentamos Beatriz vê a Verônica (Verônica Tamaoki, pesquisadora, atriz, escritora, fundadora e hoje diretora do Centro de Memória do Circo) e um senhor numa mesa da varanda. Ela lembra que aquele dia é aniversário da Verônica, e pedimos então ao garçom que leve uma garrafa de champanhe a eles pelo aniversário. Duras mas animadas.

Eles recebem o champanhe, ficam felizes, querem saber de onde vem, o garçom aponta, brindamos e nos sentamos juntos pra festejar. Conversa vai conversa vem, chega o dono do restaurante, diz que acompanhou toda a função do champanhe e ficou curioso de saber quem éramos nós. Reconhece o seu Rogê, Roger Avanzi, o palhaço Picolino, que tanta alegria havia dado a ele em sua infância. Conversa emocionado com seu Rogê, conta das vezes que viu o palhaço Picolino, de sua família, do Circo que frequentavam. No final das contas, nem pagamos a conta, que o dono do Famiglia Mancini fez questão de nos oferecer os jantares, o champanhe, e ainda agradeceu pela noite especial que teve, na companhia ilustre do palhaço Picolino.

Lá por essa época tive também a alegria de participar da leitura de um texto da Verônica, que depois virou o espetáculo O Fantasma do Circo, de que acabei fazendo a direção musical, com Karina Buhr de atriz fazendo a personagem Alice. E depois continuei namorando o Circo, até gravar com seu Rogê o bolero Consuelo, que depois cantamos juntos no lançamento do cd. Cd muito lindo e emocionante, A Música no Circo Nerino, que comemorou os 90 anos de vida bem vivida do seu Rogê, com direção artística dele e Verônica, direção musical de Otávio Ortega, e participações incríveis, novamente a Karina Buhr, Banda Paralela, Tatá Aeroplano, entre outros.

Ontem, no Dia do Palhaço, seu Rogê, o palhaço Picolino, foi alegrar outros mundos. Deixa muita saudade, muitos suspiros, que além de artista de circo de tantas habilidades e palhaço queridíssimo do Brasil todo e outros países, era um homem lindo de viver, um galanteador de primeira. Viva seu Rogê, Viva o Palhaço Picolino ! ! ! ! ![:]

[:pb]Edilson Eduardo Santos[:]

[:pb]

Essa foto bateu como um espelho trágico. Parece que estou vendo o que vem pela frente, e uma sensação de não saber o que fazer pra impedir, ou ao menos saber enfrentar o que for se descortinando como futuro. Já o Edilson está sereno, como que vendo o que vai acontecer, e se preparando para viver o que a vida apresenta pra ele. Uma sabedoria de amor aos fatos. Um sentimento trágico da vida.

Aí somos mãe e filho. Fui mãe dos irmãos Edísio, Edna e Edilson em vários momentos da montagem d’Os Sertões. E também na hora de passar com nossa felicidade guerreira na imigração entrando na Alemanha (pra apresentar os espetáculos), mostrar passaportes, enfrentar aquela cara de desprezo dos fiscais olhando para os pobres do terceiro mundo entrando em seu lindo e rico país. Somos parecidos, da mesma cor, da mesma mistura de preto, branco e índio (que não existe, mas como ainda chamamos qualquer povo originário desse sertão). Ele é Antônio Conselheiro menino, nascido no meio de uma guerra de famílias, comum até hoje tanto nos cafundós do sertão brasileiro como nas imensas e provincianas capitais do país. Nesse rápido momento da peça tínhamos uma intimidade tão grande, ele sentava ali comigo, entregue, tranquilo, e olhávamos o destino trágico à nossa frente.

Ali estávamos bem. Estávamos juntos. No teatro vivíamos um momento muito especial, que começou com uma leitura em voz alta d’Os Sertões de Euclides da Cunha por um coro gigante, e que seguiu por mais sete anos, até a última apresentação dos cinco espetáculos no sertão da Bahia, em Canudos, onde a esperança de uma outra sociedade possível despontou como uma flor de cereus, e acabou queimada pelo exército brasileiro e depois alagada pela ditadura militar, submersa pelo açude de Cocorobó em 1969.

Foram anos de mergulho na história e identidade de cada um que participou do processo, na identidade de um país, uma nação, uma grande multidão de gente acreditando num mundo mais legal (sem jogo de palavras ou com, a lei, ora a lei . . .), mais divertido, mais cheio de música, dança, comida boa, e o amor é livre e grande demais, pra ser julgado por nós, pobres mortais . .. anos de alegria é a prova dos 9, viajando pelo Brasil, pelo mundo, conhecendo gentes e lugares, com artistas fugindo com o circo e vindo fazer parte da equipe sertaneja. Brasil afora, sertão adentro.

Bixiga adentro também com o samba do Bixiga, samba de multidão, coro d’Os Sertões, sambistas da Vai Vai, do bairro, o Revista Bixiga Oficina do Samba. Nos reconhecíamos nas diferenças, e a capoeira, o circo, o teatro e o samba nos fortalecia. Não à toa foram anos que coincidiram com os governos Lula, e o luxo dos ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, até o lançamento dos DVDs em 2010.

Só uma reflexão de saudade do Edilson, de nós, da esperança que esse momento significou e significa. Que ele e ela continuem esquentando nossos corações, é esse sonho possível que nos fortalece agora e sempre.

#ethernidade

#edilsoneduardo

#ossertões

#Haddad13

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[:pb]Moléculas de água e mundos de plástico[:]

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foto Chico Castro

 

A partir da informação de que nosso corpo humano é constituído de 60 a 70% de água, me instiga saber como as moléculas de água reagem aos sons (o pesquisador japonês Masaru Emoto inventou um experimento para fotografar cristais de água congelada que haviam ‘ouvido’ sons diversos; as formas encontradas são inúmeras, diversas e impressionantes). Basicamente então, a água expressa como grande parte do nosso corpo reage aos sons. Os outros 30, 40%, pelo andar da indústria alimentícia, devem estar constituídos em boa parte por plástico, já que numa velocidade assustadora tudo o que comemos vem sendo adulterado e acobertado pelo imenso poder financeiro desta mesma indústria. E o plástico é a matéria da vez. Somos água e plástico.

A proposta original da minha segunda pele seria um penetrável de água envolta em plástico e duas caixas de som potentes ao redor. Para qualquer um de nós penetrar, sentir a água e o plástico em volta como uma segunda pele e sentir o som vibrar pelo corpo através da água. O plástico formaria a superfície de contato. Orelhas sensitivas de água e plástico espalhadas por todo o corpo, proporcionando uma outra percepção do som. Ouviríamos então ali as canções dos espetáculos d’Os Sertões que eu havia citado nos textos anteriores.

Como o resultado esperado da proposta segunda pele seria principalmente visual já que a ser fotografado, e não haveria tempo para outras pessoas penetrarem minha instalação, aceitei o som ambiente discreto (que estava acontecendo no teatro) e penetrei eu mesma minha extensão aquo-plástica, e ao invés de me concentrar para tentar sentir o som através da água, ou ampliar minha percepção auditiva vibracional do corpo todo, experimentei um prolongamento do meu corpo em contato com o plástico, a água, e através da luz.
Qual é o limite do meu corpo? Até onde nossos sentidos – audição, visão e tato – estão sub-utilizados, sub-explorados? Como experimentar uma possível ampliação dos sentidos? Como sentir o próprio corpo a partir de elementos externos?

E para fechar com chave de ouro o semestre das Arquiteturas do Corpo, Oswald de Andrade, hoje e sempre: “a alegria dos que não sabem e descobrem.”

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[:pb]a rã do parque da aclimAção[:]

[:pb]Voltando de um exame ultrassom transvaginal passo no parque. Aproveitar que moro perto de um numa cidade como São Paulo. O médico passou o gel e enfiou aquele pau eletrônico com camisinha em mim, saí de lá com fotos dos meus ovários, do útero e outras coisas. Tudo muito asséptico mas mesmo assim me fez lembrar que sou um corpo. E que no geral a gente esquece dele e de tudo que tem dentro.

Me dou um tempo pra meditar o que faltou no parque. Sentei de frente pro lago, por do sol, árvores, pássaros cantando. Estou ali há alguns minutos e um barulho no chão de folhas ao lado. Abro o olho e . . . uma rã !

Deu uns três pulos, passou calmamente na minha frente. Eu imóvel, agora de olhos abertos, observo. Ela parou um pouco à minha direita e ficou imóvel como eu.   De vez em quando os olhos se mexiam. Eu só via o olho direito, aquele olho fora do corpo, mas imaginei que ela mexia os dois ao mesmo tempo. Na verdade poderia ser um sapo, mas acho que era uma rã. Uma sapinha.

Ficamos ali as duas, meditando. Observando. Ela de um verde meio musgo, diferente das folhas do chão. Há quatorze anos frequento esse parque – moro do lado desde então – e nunca tinha visto uma rã ali. E agora estávamos as duas lado a lado em silêncio, meditando, observando o sol se por. Logo pensei nas rãs que tenho comido todo sábado e domingo por volta das seis da tarde. Eu não, Tarsila. Mas eu também. E as falas do Oswald na cabeça “é, eu comi muito, muita gente tua. Tanta gente tua eu tracei que de tanto comer enjoei.” Daí o Murubixaba, “você se empanturrou dos nossos, deixa de prosa, por isso tua carne é gostosa !” E eu ali, do lado da rã, ouvindo isso dela.

É, eu comi muita gente tua. Tanta gente tua eu tracei que de tanto comer, enjoei. Não, eu não enjoei. Só estava um pouco envergonhada ali ao lado dela. E ela tranquila, parecia me perdoar, entender. É a natureza, é isso mesmo. Eu sei, ela dizia.

“Um ser desprovido de razão seu semelhante não come. Como pode um homem comer outro homem?” Uma sapa comer outra sapa? “Somos todos bichos humanos iguais . . . ..”   e a música peça que não sai da cabeça.

Que nobreza essa rã. Me perdoar assim, do nada, e me deixar ficar ao seu lado, as duas observando o lago, a sol – que na peça o sol é a sol -, as árvores, o vento. As pessoas passavam no caminho embaixo, cada uma com seu celular ou seu cachorro. Crianças de bicicleta, patins. Até uma mulher com araras coloridas treinadas. E nós ali, imóveis, eu pensando nas rãs que comia todo final de semana, tentando então aceitar que essa é a lei da vida. Antropofagia. Depois todos viramos terra mesmo, essa aqui bem embaixo das nossas bundas. Aliás como as pernas dela parecem as minhas. Abaporu.

Macumba Antropófaga – Teatro Oficina 2017 – foto Jennifer Glass

E nós ali. O relógio da igreja bateu quatro vezes, quatro horas. Sol de inverno, vento nas folhas, cantos de pássaros, uns três cantos diferentes, não sei qual de qual. Ela imóvel e eu também. Comecei a pedir perdão a ela. Envergonhada de todas as rãs que comi na vida e ao mesmo tempo aceitando, como ela mesma parecia dizer mantendo-se calma ali do lado, a vida é assim mesmo. De vez em quando um barulho de gente me desviava a atenção dela, e quando eu voltava os olhos pra onde ela estava, por alguns segundos não conseguia vê-la. Ela da cor das folhas, da textura do chão, imóvel ali, ela era o chão e as folhas e a terra. Quantas coisas vemos mas não enxergamos. Olhamos mas não distinguimos. Porque não conhecemos ou simplesmente porque não estamos ali. Porque não sabemos ver. Não queremos. Ignorância ou desinteresse. Mas logo eu a via de novo, e continuávamos ali, lado a lado, existindo.

Quando criança passava férias no Rancho Alegre – a alegria é a prova dos nove ! é é é ! ! ! – e os primos saíam à noite com os adultos da região pra caçar rãs e tatus. Apesar de gostar de alguns programas ‘dos meninos’, nesse eu nunca quis ir. Via aqueles paus com a ponta afiada e não conseguia imaginar como alguém pode ser tão cruel pra querer espetar aquilo numa rã indefesa ou num tatu perdido no mato. A caça era à noite, com a lanterna eles os cegavam, e daí conseguiam atacá-los atordoados. Eu achava aquilo um horror mas depois comia a rã bem feliz. Agora pedia perdão também por essas rãs devoradas no passado. Mas a vida é assim mesmo, ela continuava me dizendo e me aceitando em silêncio ali quieta.

Estava ficando tarde, minhas pernas doíam de muito tempo na mesma posição. Meditando, evitando a dor de cabeça. Mais de quarenta anos tendo enxaqueca e de repente eu sabia lidar com ela, não tinha mais. Queria dizer isso pra todo mundo, escrever receitas de como acabar com sua enxaqueca, mas quem iria ouvir ou ler? Tentei umas vezes logo que voltei do meu retiro meditativo mas entendi que não é bem assim. Pensava na enxaqueca que aprendi a conhecer e que não tenho mais, ou tenho mas agora sei contracenar com ela, e me lembrei da sapinha ou sapinho meu amigo lá da praia. Numa das outras encarnações construí uma casa na praia e ficava lá às noites sozinha na casa em construção, e por um bom tempo tive um amigo sapo. Bem pequenininho, vinha ficar comigo à noite na cozinha. Ou ao lado da cadeira de balanço onde ficava olhando as árvores e o mar. A mar, que no teatro é a mar. Ficávamos ali em silêncio. Ele mexia pouco, de vez em quando comia um pernilongo. Até que um dia ele ficou tanto tempo na mesma posição sem comer nenhum pernilongo que estranhei. Fui dar uma cutucada nele e vi que tinha morrido. Enterrei ele ali na frente da casa. Fiquei com saudade nas noites solitárias seguintes, e muito de vez em quando depois, como agora, lembrava dele.

E a sapinha continuava ali. Deu mais uns dois pulos, agora pra frente. Pensei em toda a cena da peça, Tarsila e Oswald vendo as rãs, ouvindo o Pica Pau do Villa Lobos, às vezes cantando um pouco junto, com o absinto ainda descendo quente. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Ela não era minha inimiga. Eu é que era a inimiga dela ali. É, eu comi muito, muita gente tua. Meu corpo tinha gente dela nele, talvez por isso ela se sentia bem ali do meu lado. E eu também do lado dela. Pensando que depois nós duas viraremos terra. Em como será que morrem as outras rãs. As outras, como ela, que não são assassinadas para serem devoradas em peças de teatro, sítios ou restaurantes. Será que elas apenas morrem como o sapinho da praia, ou são capturadas e devoradas por animais maiores? Ela parecia não se importar com nada disso, ainda imóvel ali na minha frente. Só de vez em quando um movimento dos olhos.

Eu começava a pensar que precisava ir embora, que nem tinha almoçado ainda, mas estava tão bom ali do lado dela. Éramos dois seres vivos, mais vivos que as pessoas embaixo com os celulares e os cachorros. Bobagem, ninguém mais vivo que ninguém, mas eu ali com ela entendi os deuses. As deusas. Na verdade não entendi nada, mas vi a vida nela.

Foi difícil me despedir. Ficava olhando pra ela. Desviava o olhar e olhava de novo, até conseguir distingui-la no meio das folhas e do chão da terra, todos os tons de verde e marrom. Ela ali. É que eu não tinha vontade de ir embora. Era bom ficar ali com ela. Fui indo devagar, peguei a bicicleta, ela imóvel, achando tudo muito natural. De repente eu olhava pro mesmo lugar e só via folhas e chão. Daí aguçava o olhar e a via de novo. Fui me despedindo assim. E no caminho de volta ainda encontrei o Pica Pau comendo o mamãozinho dos pássaros. É só saber ver.

Agora sei que minha amiga rã estará lá no parque sempre. Se não ela, muita gente dela. Eu vou saber que elas estão lá. Não estarei mais sozinha no parque no meio de todas aquelas pessoas correndo olhando e falando no celular. E sábado que vem vou comer mais gente tua. E lembrar dela tranquila do meu lado dizendo que a vida é assim mesmo.

(Voltando ao exame. “. . . e nunca soubemos o que é fronteiriço . . .” Roubei o roupão de papel que usei por alguns minutos e que a enfermeira mandou jogar no lixo; achei desperdício. Vai ficar ótimo na peça!)[:]

[:pb]Nota da tradutora d’As Onze Mil Varas, de Apollinaire[:]

[:pb] 

quentinho da gráfica, já nas livrarias.  feliz de traduzir – e ver o livro pronto! – um autor tão livre e inventivo com as ideias e com as palavras, nessa ordem e vice-versa.  uma nota da tradutora pra me explicar, me absolver desse ofício tão desafiador, estimulante e inspirador.  e que dá um trabalho ! . . . . .

 

sobre erotizar a própria linguagem

na orelha do livro, por Contador Borges: “em As Onze Mil Varas, as peripécias libertinas não se fazem sem erotizar a própria linguagem (o que se deixa ver muito bem na tradução de Letícia Coura), produzindo um efeito de significância, aquilo que Roland Barthes define como produção sensual dos sentidos.  É nesse ponto que a experiência erótica e a poética coincidem”.

 

 

Nota da tradutora

Nota do tradutor já é estranha em si, já que o tradutor ideal talvez seja aquele ser invisível, que cumpre quieto seu trabalho de fazer chegar em seu idioma as palavras do autor a seus leitores e ponto. Mas o fantasma do tradutor traidor, a angústia da consciência do perigo de se perder um sentido, um duplo sentido, triplo, um jogo, uma invenção, uma possibilidade… parece impor que se apresente uma justificativa, um álibi, ou ao menos que se explique esta ou aquela decisão, a escolha de uma certa palavra, vírgula, tempo.

Me faz lembrar um dramaturgo alemão que afirmou traduzir um autor que admirava justamente porque não falava seu idioma, o francês, e queria compreendê-lo em sua própria língua. Ao que o autor respondeu muito feliz que queria mais era ser reinventado por seu tradutor, já que a admiração era recíproca. Ok, situações como essa não se repetem tanto, mas são uma lembrança estimulante pros piores momentos.

Na verdade sabemos que as palavras têm vida própria, escolhem onde querem estar, que sentido dar às coisas, ações, sensações, sentimentos. O que fazemos é humildemente dar passagem a elas, mesmo que seja apenas de um idioma pra outro.

Então, minha defesa. O que me trouxe a esta árdua, ousada e fascinante tarefa de tradução foi primeiro a música e quase junto o teatro.

Há muitos anos introduzi em meu repertório uma canção de Boris Vian, e me frustrava quando cantava em francês e percebia que ninguém se divertia tanto com a letra como eu. Aí sim, me sentia traindo o autor. Fiz então uma primeira versão para o português que acabou levando a outras, que acabaram virando um cd, que acabou virando um espetáculo meio cabaré que fizemos na abertura dos Satyros na Praça Roosevelt em São Paulo, com direção de Rodolfo García Vazquez e com o ator Ivam Cabral como um anagrama de Vian, o pianista Beba Zanettini e o percussionista Vítor da Trindade como parceiros de cena. As palavras cantadas e faladas em português e francês se encaixaram bem, era tudo música.

Paralelamente, conheci através da poeta e diretora de teatro Beatriz Azevedo o dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès, e aqui a necessidade da tradução se deu pelo projeto de montar um espetáculo, que resultou em um mergulho na obra dele, com o estudo de várias peças, entrevistas, artigos, críticas, onde tive a sorte de ir lapidando as traduções a partir das leituras de atores como Maria Alice Vergueiro, Fernando Peixoto, Magali Biff , Adílson Barros e tantos outros que participaram do processo.

Tudo isso pra situar que o que sempre me guiou na tradução foi a música e a teatralidade do texto. A vontade da palavra viva. E neste caso específico d’As Onze Mil Varas, de Guillaume Apollinaire, o ritmo das cenas.

As barreiras da época em que foi escrito, do tom de um outro idioma, tentei transpor deixando o ritmo e a necessidade das cenas falarem por si. O jogo entre a liberdade e violência descaradas e as formalidades ‘civilizadas’, o uso de expressões populares ou de época, gírias, deram o tom do autor aos diálogos e narrativas, e a dica para a tradução. E nos momentos mais quentes, uma pequena fugida do esmero nas concordâncias gramaticais. Pra não perder o compasso.

E a opção por algumas traduções literais com pequenas notas explicativas. Como não traduzir literalmente o ato de fazer ‘pétala de rosa’ em alguém? Mesmo que tenha sentido a necessidade de explicar a expressão que se refere a uma lambida no cu, optei por deixar a beleza da imagem quase falar por si.

Que essas pequenas enormes traições então continuem, se assim quiserem, e que venham mais libertinos franceses, com muita música e ação.[:]