[:pb]On Se Comprend, Sans Tradução, ou Tradução / Traição . . .[:]

[:pb]Estou penando aqui pra traduzir Alfred Jarry. Ontem fiz faxina na casa, usei a furadora que esperava há dias na sala pra ser usada e instalei finalmente a rede da subida do rio Amazonas, li os atrasados guardados, estudei, lavei louça, roupa, e mais, mais, tudo pra postergar um pouco mais o momento da dúvida, esta ou aquela palavra, ou será que tem outros sentidos que não descobri, será que ele quis dizer exatamente o contrário, tem humor, ironia, ou desta vez ele está apenas dizendo o que queria dizer, simplesmente, ou, ou . . . .

Dessas torturas que a gente cria pra gente mesmo, aquilo que eu fazia com prazer e simplesmente porque queria, de repente é uma responsabilidade, um compromisso, um trabalho, daí tudo outro parece melhor e mais importante e mais urgente.

Só pra dizer que sofro aqui traduzindo, mas gozo gozo, quando descubro a palavra certa, ou invento algum sentido, ou entendo ou acho que entendo o que ele quis dizer. Não posso perguntar pra ele o que ele quis dizer, mas se fosse possível, será que perguntaria?   Na minha (nada) humilde e árdua tarefa de tradutora, às vezes me sinto tão escrava e outras tão livre, resumindo, é bom. Eu gosto. Sofro sofro, mas qual delícia não sofre junto??

capa cd Hortênsia du Samba

capa cd Hortênsia du Samba

E nesses labirintos das línguas, hoje fiquei feliz de saber que nosso cd bilíngue, bi várias coisas, parcerias variadas, nosso Hortênsia du Samba, parceria do Revista do Samba (esse trio que me dá tantas alegrias há tantos anos, com meus parceiros Vítor da Trindade e Beto Bianchi) e da banda francesa Tante Hortense, está agora disponível nas redes de música virtual, ITunes, Spotify, Deezer, e tal. Foi um trabalho tão único, invenção e proposta do compositor francês Stéphane Massy, que conheci por causa e no Teatro Oficina, e que nos convidou – o Revista do Samba – pra fazer um trabalho juntos. Nos reunimos primeiro em São Paulo para as criações – já havíamos trocado algumas ideias virtualmente – e primeiros shows, daí logo gravamos. No Estúdio Outra Margem do Paulo Lepetit, com produção musical luxuosa dele. Isso foi em 2009. Em 2011 fomos à França lançar o cd, com shows em Marseille, Paris, Aix-en-Provence e Lille. Daí ficou a vontade de tocar mais juntos, fazer mais coisas, e acho que nesse ano de 2017 conseguiremos. O cd teve uma primeira tiragem, que já está esgotada, tivemos tipo um tube, a canção Le Bel Amant du Berry, que entrou na programação de algumas rádios francesas, críticas boas por lá, e agora que bom!, hora de divulgar de novo. Não chegamos a fazer shows de lançamento aqui, com o cd já pronto, mas enquanto gravávamos tocamos no Oficina e na Cidade Tiradentes, o que foi bem ótimo e nos preparou pros shows franceses. Nos demos bem em cena.

O trabalho de criação em parceria foi uma experiência de ter que criar alguma coisa naqueles dias com aquelas pessoas. Algumas já íntimas pessoal e artisticamente e outras que conhecíamos ali naquele dia e hora. A banda Tante Hortense: Stéphane Massy que inventou a história toda, que já era um amante do Brasil, da música daqui, compositor cheio de ideias e muitas palavras, M-Jo cantora doce, minimalista, alquimista de sons sutis, Christophe Rodomisto, guitarrista elegante e chic das melhores notas, Jean-Phi baterista amante e parceiro de teatro e dança, e meu companheiro cavaquinista Eddy, com seu jeito marselhês único de tocar cavaco, e nós três, os Revistas: Vítor com seu mundo dos ritmos e ancestralidades, Beto com suas harmonias pop e swing contradizendo a máxima infeliz do poeta, e eu com a minha cara-de-pau esculpida no teatro e meu cavaquinho Paulinho da Viola. Numa casa lá no Embu das Artes e depois aqui em SP, Oficina, estúdio e os shows, tocando e cantando juntos.

As canções, algumas já prontas que encaixavam no projeto, outras feitas nas parcerias com prazo determinado, parcerias de dois, três, quatro, ideias nascidas ali, todos criando o arranjo juntos – no total somamos 8, 5 do Tante Hortense e 3 do Revista do Samba.  Misturar os idiomas, trocar as línguas, musicar palavras francesas com ritmos brasileiros e vice-versa, cantar em português e francês, inventar uma língua comum, a compreensão e não compreensão. Duas canções que falam disso, On Se Comprend e Sans Tradução, o amor entre uma brasileira e um caipira francês, Le Bel Amant du Berry, a São Paulo Big Brother Grande Irmão, o samba-enredo da cidade do Rio de Janvier em francês, uma Baleia no rio Sena, uma Piroca no pulso, uma tristeza com algo de chic na bossa Je Suis Aussi, La Révolution que começa pelo cu, La Vache surrealista e a máquina de moer tudo isso e mais outro tudo, Moissonner et Battre. Uma viagem a partir das cinco semanas que experimentamos criar juntos, trabalhar e dividir intimidades e dia-a-dia.

(*pra ouvir as canções é só teclar no título da música em azul).

Pra quem entende as duas línguas ouvir pode ser uma viagem divertida e cheia de sentidos, pra quem entende uma pode adivinhar a outra na música, talvez entenda mais, descubra outros sentidos. Pra quem gosta desse mundo da tradução traição, um descanso, ou um desafio, ou um deleite.

Escrevi tudo isso pra fugir um pouco do Jarry, e volto a ele já com saudade. Um pouco mais musical. Fica a dica então, entra lá – ou por aqui mesmo – e ouve. Hortênsia du Samba. Um exercício real pra compreensão do outro, ou puro deleite. Um pouco mais disso no mundo e estaríamos mais em paz.

 

De onde apareceu, passou, já foi

ou vai ser bom

Dans la confusion

J’étais content . . . . .

 [:]

Bacantes praticantes nas Satyrianas – Então é isso?!

capa

capa do livro com a bacantinha

Então é isso?!   Será que finalmente estou conseguindo parar com as vidas paralelas? Amanhã é lua cheia na Praça Roosevelt, e lá vamos nós com Então é isso?! nos Parlapatões, nas Satyrianas da Phedra. Morei lá antes dos Satyros e fiz essa canção – Lua Cheia – esperando um amor voltar do ensaio eterno de Bacantes no Teatro Oficina . . . hoje estou fazendo Bacantes (de novo!) no Oficina, postando a Lua Cheia que foi composta ali de frente pra Praça, pra lançar o livro que tem o conto Praça Roosevelt, escrito ali também, antes da praça ser o que é hoje, cheia de teatro e de gente. E de lua.

E com parceiros colegas de camarim e de tantas ali do terceiro andar . . . Marcelo Drummond, sempre Dionisios mesmo quando nem sabe, parceiro silencioso de carnavais e ótimas e bad trips, Sylvia Prado, Cacilda, mana teus cabelos mana . .. e tantas, cabrocha do samba no Bixiga, parceira de Bixigão e carnavais, Dani Rosa, rainha da bateria, parceira de voz, de confissões de camarim e samba no pé e nos quadris pelas ruas de Oropa França e Bahia, Joana Medeiros, irmã incestuosa Cadméééééia, do olhar e palavras de loucura sagrada, pipoca e videogame, Wallace, cabelos de fogo e entusiasmo exuberante e doce, desafio novo e instigante. E uma surpresa da noite, que pode vir ou não, a caligrafia milenar aqui agora, de rua, desenho do nome.

Bacantes praticantes no trabalho diário do teatro, no vagabundear sem descanso das artes. Mais um Então é isso?!, de descoberta, contos que mudam de cara e de voz, diferentes e novos a cada leitura. E mais uma vez aquele obrigadíssima a todos que emprestam sua voz e corpo a esses personagens que foram aparecendo aqui e ali e me azucrinando até conseguirem existir em palavra e som. A alegria é a prova dos 9 ! ! ! ! M E R D A ! ! ! ! !

Ouça a faixa 8 – é a Lua Cheia.

uma bacante em BH – Então é isso?!

2016-09-03-23-06-021

É quinta-feira agora, 27, Então é isso?! em BH.  A alegria é a prova dos 9 ! !

Acabamos de estrear Bacantes no Teatro Oficina em São Paulo, então essa bacantinha – que está na capa do livro Então é isso?!, nele todo e aqui dentro – liga uma coisa na outra, minhas vidas paralelas e uma só, a bacante no teatro, na música, e agora na literatura… há mil anos atrás quando corria criança atrás de brindes em uma exposição no Palácio das Artes, uma das moças que distribuía alguma inutilidade me deu vários brindes e me parabenizou pela minha cara-de-pau. Então é isso?!

Muito feliz por estar na terrinha, Belo Horizonte de tantas madrugadas pelas ruas, tantas histórias, sonhos, amigos, e tragédias também. Tragicomediorgyas da vida . . . e muito contente por estar tão bem acompanhada nessa minha noite de estreia ! !

Rodolfo Vaz, amigo de tantas, que re-conheci no teatro, sempre presente de perto e de longe, ator que surpreende em cada mergulho no escuro, Brisa Marques que encantou todo mundo quando viemos com o Oficina pras Dionisíacas em BH em 2010, Marcelo Veronez que também apareceu pra mim nessas Dionisíacas, e que depois surpreendeu como cantor, e Ulisses, meu mais recente amigo de infância, companheiro das letras, da animação e do humor, leitor interessado e interessante ….  E o meu cavaquinho, companheiro fiel de tantas…

E o livro? Eram contos, que de repente passaram a se chamar livro com Maria e Ulisses. Começou no blog do site, criação da dupla Brenda&Maria, que abriu de novo o caminho das letras. Aimar Labaki, lá de outros carnavais, que de um café mostrou o caminho das pedras, Alex que arriscou e chegou no ritmo acelerado que bateu com a urgência da vontade, Marcia Tiburi que amorosamente se divertiu e escreveu o prefácio, Welington Andrade que emprestou sua erudição despretensiosa, Beto Mettig que lá da Bahia de São Salvador compartilha seus tesouros.

Tantas histórias e tanta gente ali. Amigos amantes que deram sua atenção e suas vozes, que leram antes, Fábio, Márcia, Adriana, Samuel, Beatriz, Nana, Ana, Ivam, Maria, Ulisses, Verônica. E agora já imaginando meus próximos amigos íntimos, venham, possíveis leitores …

Ritmo de formatura, ou primeira comunhão, ou primeira apresentação do teatro ou coral da escola. Do pré. Feliz pacas – pra lembrar de outros tempos e homenagear os animais. Bacante praticante. Méééééé ! ! ! ! ! !

confirme aqui sua presença no evento do facebook.

escrever. . . então é isso?!

Essa é a Praça Roosevelt. Desenhei pra me acalmar com a ideia da publicação.  Foi meu primeiro conto lido em público, pelo Ivam Cabral, antes da praça ser o que ela é hoje, mas ali mesmo, nos Satyros, lá pelos idos presentes do iníCio desse milênio.

Essa é a Praça Roosevelt. Desenhei pra me acalmar com a ideia da publicação. Foi meu primeiro conto lido em público, pelo Ivam Cabral, antes da praça ser o que ela é hoje, mas ali mesmo, nos Satyros, lá pelos idos presentes do iníCio desse milênio.

 

Então é isso?!   É quinta agora ! ! !   dia 13, das grandes transformações…

Especialíssimas as intervenções que acontecerão na noite de lançamento em SP, presente de amigos artistas que admiro tanto, que tive a alegria de conhecer trabalhando junto. E que também misturam as artes, do teatro, das letras, da memória, da história, da imagem, luz, artes plásticas. Verônica, com seu Fantasma do Circo tão concreto que se mistura com a própria história do circo no Brasil, Ivam, que além de ator emocionante criador de seus personagens e ator da vida da cidade é dramaturgo, escritor das terras de Cabral e outras histórias, Mariano parceiro do Oficina e vários carnavais, vizinho de muro por 3 meses, artista gráfico de tantas imagens e letras, Sônia parceira de figurinos exuberantes e aventuras na Amazônia, que me mostrou os caminhos da caligrafia e desenhos da tinta preta, Banti criador de densidades de luz e sombra, Lua Lucas, ator atriz, cantora, escritora de interessantes crônicas pessoais do cotidiano. E o meu cavaquinho, companheiro fiel de tantas…

E o livro? Eram contos, que de repente passaram a se chamar livro com Maria e Ulisses. Começou no blog do site, criação da dupla Brenda&Maria, que abriu de novo o caminho das letras. Aimar Labaki, lá de outros carnavais, que de um café mostrou o caminho das pedras, Alex que arriscou e chegou no ritmo acelerado que bateu com a urgência da vontade, Marcia Tiburi que amorosamente se divertiu e escreveu o prefácio, Welington Andrade que emprestou sua erudição despretensiosa, Beto Mettig que lá da Bahia de São Salvador compartilha seus tesouros.

Tantas histórias e tanta gente ali. Amigos amantes que deram sua atenção e suas vozes, que leram antes, Fábio, Márcia, Adriana, Samuel, Beatriz, Nana, Ana, Ivam, Maria, Ulisses, Verônica. E agora já imaginando meus próximos amigos íntimos, venham, possíveis leitores …

Ritmo de formatura, ou primeira comunhão, ou primeira apresentação do teatro ou coral da escola. Do pré. Feliz pacas – pra lembrar de outros tempos e homenagear os animais. Bacante praticante. Méééééé ! ! ! ! ! !

A experiência / experimentação da música n’Os Sertões

  • e outros espetáculos

*especial para a revista A Bigorna – extraordinária – parte do livro dourado do Oficina 50+ – comemorativo dos 50 anos do Teatro Oficina

 

Chegada

Minha primeira experiência como atuadora no Oficina foi em Bacantes, na virada de 1999 pra 2000. Entrei com a função de aprender tudo e ensaiar as canções com os atores, na maioria não cantores. Tínhamos pouco tempo – depois aprendi a trabalhar com pouco tempo e a estar sempre preparada pra improvisar – inventar e atuar. Foi o começo de um trabalho que resultou no fortalecimento musical do coro do teatro e na ‘oficialização’ do aquecimento vocal diário como forma de afinar, timbrar as vozes, e também concentrar o elenco, ligando-o a partir dessa e nessa sintonia fina que é a música.

Ao longo desses anos no Oficina vivi diferentes processos de criação, talvez com a única característica comum de que nada nunca está nem estará pronto. Que tudo pode e vai sempre mudar. Pensando em música, ainda mais pra ser cantada em coro, essa mudança permanente parece de uma dificuldade intransponível, mas se revela de uma riqueza muito intensa com a prática. Perde-se muitas vezes em qualidade pela dificuldade de afinação, mas ganha-se em intenção, conteúdo e interpretação.

 

O coro

“O coro ditirâmbico recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para que eles, quando o herói trágico aparecer no palco, não vejam algum informe homem mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios.” (Friedrich Nietzsche, em “O Nascimento da Tragédia”).

Falando especificamente do coro, principalmente musical, sinto que um bom exemplo dessa busca do papel do coro, organicamente integrado com o conteúdo e com a atuação do público, é a montagem dos cinco espetáculos d’Os Sertões. Processo que abriu possibilidades para evoluções em trabalhos seguintes, como nos espetáculos Banquete, Macumba Antropófaga, Acordes e Cacilda!!!, onde partimos para complexas e sofisticadas divisões de vozes, de compositores como Villa Lobos e Paul Hindemith, e composições próprias já criadas para quatro ou mais vozes distintas.

Ah, os primeiros ensaios d’A Terra… Passávamos de três a cinco horas cantando diária e ininterruptamente, no início um grupo de treze pessoas que foi virando um coro potente e coeso. Primeiro o aquecimento vocal, e então um garimpo das canções que já haviam sido criadas em ensaios realizados dez, doze anos antes, em oficinas com Tom Zé, Denise Assunção.

Durante dois meses realizamos ensaios semanais gratuitos abertos ao público, onde usávamos ainda o livro, e arriscávamos todo tipo de invenção e improvisação a partir do próprio texto de Euclides da Cunha, na íntegra. Enquanto ensaiávamos no teatro durante a semana, Zé ia trabalhando a dramaturgia com outro grupo de artistas, a partir dos improvisos –muitos deles musicais- vividos com o público. Durante esse período eu era a única ‘música’ do grupo, e nossa base musical dos ensaios era o canto. No primeiro dia da primavera Zé conduziu o ensaio com o objetivo de compor o trecho que descrevia a primavera no Sertão, e compusemos juntos toda a sequência da exuberância das plantas da caatinga, com cada ator incorporado em sua planta que trazia sua musicalidade própria para ser cantada por ele ou em coro. Depois de meses cantando juntos tínhamos atingido uma intimidade musical que permitiu essa explosão de criação coletiva de cantos de primavera.

Seguimos com O Homem I, onde o coro atua cantando o tempo todo –mesmo nas pausas musicais. Canções que compusemos em sua maioria no calor dos ensaios.

Quando iniciamos o processo do espetáculo seguinte, ainda com o anterior em cartaz, sentíamo-nos esgotados em nossas possibilidades musicais. Resolvemos então encomendar música a compositores amigos do teatro. Realizamos leituras de mapeamento musical do texto, e de acordo com a cara da cena indicada pelo diretor, pensávamos em qual compositor se encaixaria melhor para cada momento. Foi assim que passamos trechos do texto para vários compositores, e as criações foram chegando. Adriana Calcanhotto, Sérgio Ricardo, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Jards Macalé, Lirinha, Júnio Barreto enviaram suas composições, além de Chico César, Péricles Cavalcanti e José Miguel Wisnik, que já haviam composto também para as partes anteriores. Cada canção que chegava era aprendida e cantada em coro, e muitas vezes ditava o caminho de criação da cena. Outras compusemos inspirados pelo estilo de compositores que foram simpáticos ao convite mas que que por motivos diversos não puderam compor, como Caetano Veloso, Marina Lima e Arrigo Barnabé.

Seguimos assim nos espetáculos A Luta I e II, e contamos ainda com composições de Arthur Nestrovski, Celso Sim, e continuamos criando nos ensaios. Nessa altura já formávamos uma ala de compositores com Marcelo Pellegrini, Karina Buhr, Adriano Salhab, Adriana Capparelli, Mariana de Moraes, Camila Mota, Otávio Ortega e eu mesma, além dos atores, que sempre colaboravam ora com ideias interessantes, ora com a contribuição milionária de todos os erros, muitas vezes mais inseridos no conteúdo da cena do que a criação original.

 

Coro Bixigão

Somado ao coro de atores trabalhamos também durante todo o processo d’Os Sertões com o coro do Movimento Bixigão, grupo de crianças e adolescentes do bairro do Bexiga, moradores vizinhos ao teatro. Além da contracenação nos espetáculos, construímos uma comunicação imediata através da música. Tanto nas cantadas em coro nas peças, como nas canções de aquecimento, que nos uniam num repertório comum, fazendo-nos parte de um grupo com uma mesma e própria linguagem. Desenvolvemos paralelamente o projeto Revista Bixiga Oficina do Samba a partir dos sambas do Bairro do Bexiga – os do Oficina inclusive -, o que concretizou em música a ligação com o entorno do teatro, com a Escola de Samba Vai Vai, com a história musical do bairro e a ligação com o processo de pesquisa e criação d’Os Sertões, numa busca coletiva e individual das próprias origens, chegando numa identidade comum de sertanejos urbanos da periferia do centro, o tipo brasileiro sem tipo.

 

MOMENTOS DE PROCESSOS DO CORO PROTAGONISTA

Zagreb, Croácia, e Teatro Oficina São Paulo, 2009. Leitura encenada d’O Banquete de Platão – pra levantar com uma pequena equipe do Oficina e atores e músicos croatas, depois montagem em São Paulo. Importamos um canto eslavo de fertilidade e renascimento, Oj Dodole, cantado lá por um coro feminino. Os ensaios em São Paulo começaram com o aprendizado desta canção, adaptando para um coro misto. Idioma croata cujo som nos remetia a línguas indígenas daqui, abaixo da linha do equador.

São Paulo, abril 2011. Montagem da Macumba Antropófaga, a partir do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. Começamos os ensaios com o aprendizado dos coros do choro no. 10 e de Mandú Çárárá de Villa Lobos. Divisão de vozes difícil para um grupo pequeno de atores e quatro músicos. Adaptação do arranjo de orquestra para a banda, com ênfase no ritmo. Sem quórum suficiente pra todas as vozes necessárias, adaptações.

Setembro 2012. Acordes. Transcriação da obra de Paul Hindemith e Bertolt Brecht. Apresentando Macumba Antropófaga no interior de São Paulo e ensaiando Acordes no Oficina entre uma cidade e outra. Divisão de vozes, intervalos difíceis. Música alemã, contagens retas, ritmo quase marcial. Adaptação do texto em português a partir do alemão, encaixando na partitura pra quatro e mais vozes. A cada noite após o trabalho árduo de tirar a música do papel e conseguir cantar em coro, enviávamos pros diretores que detestavam tudo, achando a música muito dura e cantada sem interpretação. Verdade. Nos concentrávamos tanto pra acertar a nota que o sentido não aparecia. Ainda. Isso viria com a repetição e ensaios. Mas como convencer o diretor?

Setembro 2013. Cacilda!!! Como em muitos processos, dificuldade inicial de juntar as pessoas. Buscar união do coro com um novo desafio. Executar partituras difíceis, divisão de muitas vozes, intervalos estranhos. Decidimos começar os ensaios com o Pica Pau – choro n.3 de Villa Lobos.

O processo de criação musical já tem uma cara, quase um método, desenvolvido ao longo de anos de trabalho, longos ensaios dedicados muitas vezes à criação da música de uma única cena, que depois pode vir a ser descartada. O não método. Um dos músicos traz uma ideia musical, uma canção. Que vai sendo modificada a partir da cena, do ator/atriz que vai cantar, do coro que canta junto, do Zé que canta a cada momento uma melodia e ritmo diferentes, mas dando a direção do que quer como interpretação. É nesse ponto que entramos sempre no mesmo conflito. Eu tentando definir melodia e ritmo, para que possam ser apreendidos e cantados. Principalmente se for em coro. Por um coro de não músicos, que não tem a destreza de improvisar ou inventar vozes harmônicas, ou executar um ritmo comum a partir da comunicação do olhar, ou feeling comum. A necessidade de repetir. E a direção que diz que a interpretação, o sentido do que se canta é que vai trazer a afinação e a necessidade do ritmo. E eu penso: um ator precisa do texto pra daí experimentar interpretações, criar a partir da direção. Um cantor ator precisa da melodia, das notas musicais que serão seu texto, e ao menos da sugestão do ritmo. E lá se vão minutos preciosos do ensaio no embate do ovo ou da galinha, notas musicais/melodia e ritmo definidos versus incorporação/interpretação. Apolo e/ou Dionisio?

E a certeza de que canções criadas assim, no calor do ensaio, com a presença e energia de todos, e pequenas contribuições melódicas de um ator mais musical, ou mesmo do ‘erro’ de muitos, resultam em canções totalmente incorporadas ao texto, conteúdo e cena, e apropriadas em cada nota e tempo por todos os atuadores presentes. O prazer de cantar isso em coro a cada apresentação, e mesmo a cada ensaio é contagiante. É esse contágio que vai vencer o desafio de excitar o ânimo dos ouvintes.

Outubro 2013

os cinco sentidos

a internet.  as palavras.  a música.  os sentidos.

tentando decifrar o que é um, onde um entra no outro, porque umas palavras dão vontade de cantar, porque outras continuam no papel, os sentidos mudam se ouvidos ou lidos, os outros sentidos, a rede, o virtual, onipresente, onipotente, o tudo, o nada, deus.

a letra toda era assim, daí uma parte ficou de fora pra fazer a música, não sei se porque ia ficar grande demais, ou o assunto virou outro, a letra assim já é grande.  tenho curiosidade de saber se quem ouve ouve a letra.

a letra:

os cinco sentidos
… ou os quatro elementos
… ou o dia em que eu acabei não caindo na rede

deu vontade de entrar
de falar pela Internet
te ouvir sem te encontrar

quem sabe assim eu descubro teu segredo
conto tudo sem ter medo
cego medo de errar

nome secreto
endereço incompleto
sem passado e sem lugar

liberdade pra sumir, de virar outra pessoa
nessa madrugada à toa
só no impulso onda no ar

um novo eu personagem inusitado
sem ter certo nem errado
só vontade de inventar

um novo eu criatura imaginada
sem defeito imaculada
pra até eu me apaixonar

um novo eu o grotesco e desvalido
desprezado por cupido
eu escondido o eu vulgar

o velho eu o eu eu mesmanick name
de alegria e de tristeza
guerra jogo mágoa e bar

todos procuram e não a esmo
é só você, é, você mesmo
que eles querem encontrar

atrás de um nome nick name
jogo de amor um vídeo game
apaixonei-me sem notar

 

ah, não….

de virtual já chega deus que não me amola
deus do sol da carambola
deus da lua o paladar

de virtual já chega deus que nem me encosta
deus tesão que você gosta
deus de mãos pra me pegar

de virtual já chega deus e o big bang
deus explosão y-lang y-lang
deus essência de cheirar

de virtual já chega deus que esconde esconde
deus que está só não sei onde
deus que nem quer mas vai me olhar

de virtual já chega deus o esquecido
deus do som do meu ouvido
deus da música pra cantar

 

a música:

Nick Name (Letícia Coura)

Letícia Coura – voz e violão
Adriana Capparelli – voz
Fabio Tagliaferri – viola de arco
Daniel Nakamura – guitarra
Nana Carneiro da Cunha – violoncelo
Guilherme Kastrup – arranjo percussão

r e v i s t a do samba no Paquistão – e o Rasta-pé do cercadinho

Lahore, Paquistão

World Performing Arts Festival, jardins do príncipe Shah Jehan e ´cercadinho´ pras mulheres

na loja:
– quero uma roupa feminina, gostei daquela, laranja.
– tem também esta azul, aquela é seda do norte do …
– eu quero só uma mesmo, obrigado.
– só uma?
– é, eu só tenho uma mulher.
– que pobreza…

E assim meu parceiro Vítor da Trindade, percussionista, comprou o presente pra sua única esposa. Com ele e o violonista Beto Bianchi, formamos em 99 o Revista do Samba, pra tocar os sambas que mais gostávamos misturados às nossas aventuras pelo gênero. Mal sabíamos até onde iríamos por conta disso. Pela Internet, o convite. Lahore, Paquistão, pra participar do World Performing Arts Festival.

Lahore, cidade com mais de 2000 anos de idade, capital da província de Punjab, fronteira com a Índia e capital cultural do Paquistão, onde nasceu o príncipe Shah Jehan, que construiu pra sua amada e pro mundo o Taj Mahal. Em São Paulo nem um guia para o país que talvez esconda (escondia mesmo, esse texto foi escrito em 2008) Osama Bin Laden. Juntei informações da Internet às fornecidas pelo festival, e soltei a imaginação.

Depois de 20 horas de vôo divididas por uma espera de 10 horas no aeroporto de Londres, chegamos pela manhã em Islamabad, capital do Paquistão, onde um simpático funcionário da embaixada brasileira nos recebeu no aeroporto pequeno mas com lugar atapetado garantido e cercado pra quem quiser rezar. Seguimos de carro para Lahore, a 380 km dali. Pela janela horizontes desertos sem fim, um chão arenoso em tons de bege e cinza, colorido de tempos em tempos pelas roupas multicores e esvoaçantes de trabalhadores do campo ou andarilhos indo de um nada pra outro. E pelos ônibus e caminhões, também coloridos, cheios de desenhos, bordas trabalhadas, lotados de coisa e de gente.

Nas paradas o motorista nos ia apontando integrantes do Taliban, identificados pelas roupas e comprimento da barba. Aos poucos saberia reconhecê-los pelo olhar. Uma mistura de medo e desprezo: mulher e ainda sem véu…

A chegada se deu por uma periferia sem fim, até chegar na parte rica da cidade, mostrando uma disparidade que bem conhecemos entre uma classe alta, ocidentalizada ou não, e o ´resto´. Um trânsito que pode ser comparado ao dobro do volume de carros de São Paulo, mas com os motoristas do Rio de Janeiro… motos carregando famílias inteiras, um homem, uma ou duas mulheres (sempre sentadas de lado), o bebê e as crianças. Algumas carroças puxadas por cavalos e muitos táxis triciclos, com a audácia dos nossos motoboys. E todos andando ao contrário, que lá foi colônia inglesa, quando tudo ainda era a Índia. O Paquistão passou a existir como país de maioria absoluta muçulmana com o fim do Império Britânico na região em 1947.

O festival

Dez dias e noites de música, teatro, teatro de bonecos, cinema e dança. Artistas de quarenta países diferentes, de todos os continentes. Sete salas-tenda para dança, teatro e teatro de bonecos, três espaços para cinema e teatro, e um palco arena ao ar livre para os shows musicais, com capacidade para quatro mil pessoas. O World Performing Arts Festival acontece em Lahore desde 1992, quando começou como um festival de Teatro de Bonecos, organizado pelo Rafi Peer Theatre Workshop, da tradicional família de artistas Peerzada. É hoje o maior festival do sudeste da Ásia, e um dos principais eventos a promover a troca cultural e artística entre Oriente e Ocidente.

O convite é feito para que os artistas se apresentem, mas também para que permaneçam durante todo o evento. Assim vivemos intensamente em Lahore os dez dias do festival, e pudemos assistir espetáculos de linguagens diversas, tradicionais e contemporâneas, e ainda conhecer os maiores nomes da música paquistanesa. Três noites foram dedicadas à música local: a Mystic Soul Night, para a música de inspiração sufi, a mística islâmica; Ghazal Night, dedicada aos poetas, inesquecível pelo silêncio e concentração do público, e o encerramento do festival, a Classic Night, com representantes das mais importantes famílias de forte tradição musical no país – porque o conhecimento musical no Paquistão é transmitido pelas famílias, e pelo nome do artista já identificamos seu estilo.

O Samba e o Tango

Em um dos shows tivemos a participação especial de um grupo formado por argentinos e espanhóis que vivem em Barcelona, Conexion Tango. Tocamos juntos “O Samba e o Tango”, com um final apoteótico numa mistura bem-humorada dos ritmos. Mistura que agradou ao nosso embaixador que acabava de chegar da Índia (inimiga política do país), e considerou pertinente o exemplo não só de tolerância mas de amizade entre dois povos vizinhos. Desde que não se fale em futebol…

A dançarina argentina no seu vestido colado ao corpo e pernas descobertas dançando grudada em seu parceiro chileno, num país onde as mulheres andam um passo atrás dos homens, cabeças cobertas e roupas que não deixam transparecer uma única curva, e não dançam em público; o bailarino que dançou a dança de Shiva, mas quase não se apresenta mais devido à onda conservadora do país e o preconceito com as tradições indianas; os iranianos e as flores para as bailarinas americanas que apresentaram uma dança típica de seu país mas que é hoje proibida pelo governo fundamentalista do Irã; a bomba que explodiu no ponto do ônibus entre o hotel e o festival, a Xuxa ucraniana, a banda paquistanesa/americana de punk rock, os tapetes de tantas cores e desenhos, a amabilidade dos paquistaneses, as conversas sobre Deus, os jogos de críquete nos parques, o estádio de hockey, os talibans da estrada.

A cabeça rodando, entro no quarto do hotel, e pra tentar dormir ligo a televisão. MTV da China, filmes de Bollywood, musicais indianos, noticiários em árabe, ou urdu e punjabi, idiomas paquistaneses, muitos homens barbados, tento distinguir se é uma rede pirata falando do próximo ataque terrorista, ou apenas o jornal da noite. Melhor tentar as ovelhas.

Baco

Folga. Um passeio à tarde pelo mercado, cheio e animadíssimo, artigos de mil e uma noites, todo o imaginário de Ali Babá, Alladin e Sherazade, ali ao alcance dos olhos, das mãos, e de algumas rúpias. E para escolher com calma a melhor combinação de cores de véus, écharpes e roupas de seda, ou proveniência do tapete, chá de menta. Pra brindar à vida entramos no restaurante de um hotel cinco estrelas, e perguntamos logo ao garçom que vinho ele teria para nos oferecer – haviam nos indicado que em hotéis assim teríamos acesso a hábitos ocidentais. Ele ficou branco, e olhando para os lados e falando baixo, disse-nos que ali não serviam bebidas alcoólicas, explicando, são todos muçulmanos, seria uma afronta beber na presença deles. E num tom mais baixo ainda, se vocês tiverem sua própria garrafa, podem tentar conseguir um quarto para bebê-la… Ele só não nos indicou onde poderíamos encontrar a tal garrafa, então desistimos da comemoração e voltamos ao festival.

Educação sexual no museu e o rasta-pé do cercadinho

Lahore é uma metrópole, aproximadamente 10 milhões de habitantes, com grandes jardins e monumentos erguidos na época áurea da cidade, sob o Império Mongol, que durou do século XVI ao XIX. Destaque para o Shalimar Garden, terminado durante o Império de Shan Jehan, o forte e as muralhas da cidade. É uma pena que como não muçulmanos não possamos entrar nas mesquitas, mas pode-se passear pelos jardins, pátios e corredores que as cercam. A mesquita Badshahi é a maior de arquitetura Mongol do país, finalizada em 1674. Andar descalça por ela, ouvindo o canto que chama para uma das orações do dia ajuda a compreender a religiosidade do lugar. O museu da cidade, o Lahore Museum, apesar de ser um dos maiores do sul da Ásia não é muito grande em comparação aos museus europeus, mas apresenta pinturas e esculturas greco-budistas, peças tibetanas, instrumentos musicais, além de uma detalhada exposição de fotos da fundação do país.

A visita ao museu foi especial graças a um garoto de dezessete anos que passava suas tardes ali. Começou me explicando cada peça, e foi então me perguntando de onde eu era, se era casada, o que fazia ali. Nisso entraram alguns barbudos, e ele me fez notar que todas as mulheres naquele momento cobriram as cabeças e mesmo os rostos, e me encorajou a fazer o mesmo. Perguntei porque e ele me explicou que aqueles eram religiosos, e que era um sinal de respeito eu me cobrir. Perguntei porque novamente, e na seqüência acabei respondendo a tantas perguntas, praticamente uma aula intensiva de educação sexual, movida por uma compaixão instantânea por aquele garoto no auge de sua juventude, sem nenhuma informação sobre o sexo oposto e uma solidão de chorar.

Aliás é de se reparar a grande intimidade física existente entre os homens, em contraposição ao ostensivo recato imposto às mulheres.

Como estrangeira escapei um pouco dessa imposição, mas tive uma boa demonstração da condição feminina na vida cotidiana da cidade. Fomos a uma cerimônia sufi, em companhia de um sociólogo francês, um guia amigo paquistanês e o embaixador brasileiro. Quinta-feira à noite, bairro afastado. Uma árvore imensa, e sob ela uma pequena multidão sentada em roda no chão, acocorada nos galhos das árvores e pelos degraus que davam no mausoléu de um poeta. Dois Ogans tocando dhols, tambores enormes pendurados no corpo, e no meio homens em transe rodando sem parar, alguns com impressionantes movimentos frenéticos de cabeça, que pareciam querer desenroscar do pescoço. Encontramos um lugar na roda, e imediatamente me fizeram sinal pra não sentar ali, apontando-me um cercadinho onde todos deixavam os sapatos. Obedeci. Não foi exatamente amigável a maneira como me indicaram o lugar. Sentada sozinha, literalmente cercada por uma tela de arame, constatei que eu era a única mulher ali, e o fato de ter coberto a cabeça com um véu não os fez muito mais simpáticos à minha presença. Acabada a cerimônia fomos visitar o mausoléu do poeta, e de novo fui barrada na porta, e também não ganhei o belo colar de flores reservado aos visitantes – homens. Fui então até o pátio onde descobri outras mulheres, sob uma outra árvore centenária enorme, cheia de papeizinhos com pedidos e agradecimentos. Havia uma calma especial ali, e o guia paquistanês veio me fazer companhia. Mas a sensação desagradável da segregação não saiu de mim. Só um ano depois, e com o auxílio luxuoso do humor, vomitei essa experiência na forma transformadora de um samba. O Rasta-pé do Cercadinho, minha singela vingança, quem sabe um grão de areia no deserto das lutas pelos direitos das mulheres…

Muitas contradições num país que quase elegeu uma mulher pra Presidente (Benazir Bhutto, assassinada no final de 2007), que admite cada vez mais mulheres nas universidades, mas que ainda permite por lei a poligamia para os homens. Uma música belíssima e poemas de encontro com o amante divino, uma religiosidade que permeia todos os detalhes cotidianos, mas a constante e crescente pressão de grupos fundamentalistas. O amor e ódio em relação à cultura ocidental.

Depois de tantas aventuras, tanta informação e troca entre universos tão ricos quanto distintos, fica a certeza de que a arte, com sua liberdade infinita, é o caminho mais curto e eficaz para a comunicação entre as pessoas. Principal acontecimento cultural da cidade, quiçá do país, o World Performing Arts Festival realiza sua imensa contribuição ao esforço de compreensão e assimilação das diferenças, e mais que tolerância, promove a curiosidade e o interesse pela diversidade cultural, através do enriquecedor encontro de artistas. E se é que a vida imita mesmo a arte, então temos alguma esperança.

o que ouvir:

família Ali Khan

. Nusrat Fateh Ali Khan – considerado maior cantor paquistanês de Qawwali, forma musical nascida do encontro desde o século XII entre as tradições poéticas e musicais de monges sufistas vindos da Pérsia e a devoção musical de populações locais.
. Sain Zahoor – cantor de origem rural da região de Punjab, cresceu cantando em santuários sufi, e é hoje um dos principais divulgadores de poetas sufi e da música tradicional paquistanesa.

cantoras

. Reshman – natural de família cigana do Rajastão, cantou na infância em santuários Sindh, e é hoje uma das cantoras mais populares do país, tendo gravado muito para filmes tanto paquistaneses quanto indianos.
. Tina Sani – cantora Ghazal também bastante popular, de tradicional estilo Punjabi.
. Zarsanga – também de família cigana, conhecida como a Rainha da Música Pashto.

onde ir:

Shalimar Garden
Badshahi Mosque
Lahore Museum

World Performing Arts Festival
todo ano, mês de novembro
Complexo Cultural Al Amrah

 

 

revista do samba e a Mesquita Badshahi

trio Revista do Samba no pátio da Mesquita Badshahi – Lahore, Paquistão

  • esse texto foi escrito para a revista Lugar, da Folha de S.Paulo – publicado em dezembro 2008.  e fomos lá tocar no World Performing Arts Festival  em 2006.

TIO DOUGLAS

Eduleia leite da fiinha

desenho no texto de Mystérios Gozosos – Eduleia – Teatro Oficina 2016

Estavam novamente no cinema. Era dos poucos lugares em que ele podia ficar com ela em público sem ser incomodado. E em que ela acreditava ir para se divertirem, e quem sabe até ele não tinha, assim, uma preocupação cultural em relação a ela? É claro que os filmes sempre tinham histórias com trepadas dos atores principais. Mas também, qual filme atual que não tem “cenas de sexo”?, ele dizia. E ela gostava de vê-las.

Nesse dia especialmente sentia-se animada, estava feliz porque seu colega a havia chamado de gostosa pra todo mundo ouvir. Aquilo custou três dias de suspensão, o orientador não achou muito educativo pré-adolescentes -era assim que os chamavam- de onze, doze anos, trocando carícias obscenas durante as aulas. Não estava muito triste em perder as matérias, mas não gostava muito de não ter onde ir durante o dia, e em casa sempre era obrigada a obedecer ordens. E não gostava também do jeito que ele a tratava na presença da mulher. E ela, tia Dolores (ou dona Dolores, dependendo do humor não gostava que a chamasse de tia), vinha maltratando-a muito nos últimos meses.

E o filme já havia começado, mas ela não entendia muito bem o que se passava. A imagem era ruim, os atores apareciam sempre sem cabeça, e a cor fazia com que se lembrasse das fotos de criança que guardava trancadas no armário. Nas fotos ela parecia tão feliz, com sua mãe carregando-a nos braços e enchendo-a de beijos. E ainda por cima todos falavam tão depressa, que ela não conseguia acompanhar o que diziam pelas legendas. Língua esquisita, deve ser espanhol. Gostava mais quando os atores falavam inglês. Lembrava do Michael Jackson.

Ele já havia começado como de costume. Pegava a mão dela e fazia com que segurasse naquela coisa, que a essas alturas esperava dura já pra fora da calça. Como ele parecia gostar daquilo… quer dizer, às vezes não sabia muito bem se ele gostava mesmo, pois era tudo tão rápido. E hoje ele parecia ainda nervoso. Não seria por causa da suspensão, pois nem lhe contara ainda… Mas à medida que o filme ia passando -parecia não haver mesmo história, ou era ela que não entendia-, lembrava do Marquinho, o colega, e quanto mais se lembrava dele parecia quase bom fazer o que fazia. Pegava naquele pau duro, e especialmente naquele dia sentia a buceta esquentar, doer até dentro da calcinha justa. Engraçado que das outras vezes não sentia exatamente prazer em ver aquele homem, que ela respeitava e até temia um pouco, se esfregando na cadeira do cinema e por fim soltando aquela coisa branca em cima dela. Tinha vontade de perguntar o porquê daquilo, mas tinha vergonha. Nunca conversavam, e ela achava que este não deveria ser o primeiro assunto. Sentia que por algum motivo aquilo deveria permanecer um segredo entre eles.

Mas ele estava realmente nervoso. Saíram do cinema e foram tomar um sorvete. Oba!! Antes nunca tinham ido. As coisas estavam melhorando. Sentia-se até um pouco culpada pela suspensão. Poxa, eles eram tão legais com ela e era assim que retribuía. E no meio do sorvete -ela pediu um duplo, bem grande – ele foi pra cima dela, lambia o seu sorvete, começou a beijá-la como no filme. Com força, ele enfiava a língua dentro da sua boca, misturada com o sorvete, pegava em seus cabelos, se esfregava nela, apertava com os dedos o bico dos seios que começavam a despontar sob a camiseta.   E agora, meu Deus!? Ela não sabia o que fazer, o pessoal da sorveteria olhando meio de lado, aquele sessentão meio animado demais, com aquela menina que parecia sua neta. Levou-a dali e dentro do carro começou a falar de um jeito que ela não conhecia, muito rápido. Ivetinha (era assim que ele a chamava quando estavam sozinhos), nós vamos nos mudar, vamos morar só eu e você, já aluguei uma casa na praia, você não vai mais precisar estudar, nem aguentar sua tia lhe dando ordens nem olhando torto pra você. Agora você vai ser a dona da casa, e tudo vai ser do jeito que você quiser. Nós vamos almoçar hambúrguer com batata frita e coca-cola todos os dias, com ovos nevados de sobremesa, você vai poder escutar música bem alto e ver todos os programas que quiser na televisão!… É, isso mesmo, nós vamos agora. Ele babava.

Nem passaram em casa. Ela ficou um pouco assustada com a ideia, mas logo se acostumou. A estrada era bonita, toda rodeada de árvores e casinhas. Talvez se esquecesse rápido de tia Dolores. Mas com certeza teria muita saudade do Marquinho. Será que o veria de novo?

TIA CIATA NA FIESP

tia Ciata abriu o seu terreiro e garantiu o samba frente à repressão

*tia Ciata abriu o seu terreiro e garantiu o samba frente à repressão 

 

O pior cego é aquele que não quer ver.

Voltando de mais uma manifestação contra o golpe, passei em frente à Fiesp. A “nossa” não tinha muita gente, pelo menos não muita gente em proporção à quantidade de policiais nos impedindo até de passar pelo vão do Masp.

Com certo medo do que está por vir, olhando pro imenso carro de som parado em frente à Fiesp com aqueles bonecos infláveis horrendos – hoje o pato não foi, provavelmente pros patrocinadores da ‘manifestação’ não terem que pagar direito autoral -, vejo tia Ciata.

Fiquei pensando se os músicos que estavam tocando no caminhão de som da Fiesp tinham visto aquela homenagem à tia Ciata bem ali em frente. Aliás a Paulista inteira está homenageando o centenário dessa música que faz o Brasil conhecido e amado em boa parte do mundo. Muito mais – e ainda bem! – do que o narigudo ‘dono’ da Fiesp ou qualquer político brasileiro fora o Lula.

Eles estavam tocando no carro um samba ridicularizando o PT. A parte que ouvi eram uns versos criticando a ciclovia do Haddad, dizendo que estavam vazias e que não tinha ninguém pra pedalar. Olhei pra pista, e naquele exato momento uns dez ciclistas desviavam dos ‘manifestantes’ que a ocupavam, obrigando-os a sair da ciclovia. Se o cantor não conseguiu – ou não quis – ver esses ciclistas, a tia Ciata é que pelo jeito ele não vai ver. Será que ela está rindo dele, pedindo perdão aos deuses do samba por aqueles músicos não saberem o que estão fazendo, por não conseguirem vê-la ali resistindo a tudo, dando esperança a quem passa.. ? .. ou estará triste em ver a criação de seu terreiro tão profanada, cantada pra defender os interesses da casa grande ainda por cima numa manifestação fake?

Não vi como era a banda, mas fiquei pensando se são cegos que não querem ver ou apenas não conseguem. Por ignorância, preguiça ou desinteresse concreto pela trajetória da música que eles estão ali usando de uma forma tão contrária à sua história.

E a tia Ciata só olhando. A força que ela representa ali, o símbolo da invenção e prática prazerosa do samba, uma mulher, como a nossa presidenta eleita, uma mulher como tantas que estão agora lutando pela democracia, contra essa direita machista, misógina, uma mulher como as que levaram flores pra presidenta, como as que foram detidas por se manifestarem contra o golpe no voo com deputados golpistas.

Será que ela está pensando no quanto o samba foi proibido, por ser coisa de ‘preto, pobre, vagabundo’ ? Ou lembrando do sucesso dos Oito Batutas em Paris, que não podiam tocar nos cinemas do Rio porque eram pretos na maioria? Vendo ali de cima o quanto demoramos pra ver que o Brasil é, sim um país racista, e que ao menos nesses últimos anos de governo (mais) popular avançamos – com muito ainda a avançar – na direção de um país mais justo? E que todas essas conquistas estão a ponto de descer pelo ralo pra ter que começar tudo de novo?

Ah, tia Ciata . .. . pelo menos te vi ali.  Porque o Brasil criou o samba, e vai conseguir sair dessa ! !

 

*foto do banner na av. Paulista em SP, em frente ao prédio da Fiesp, homenageando tia Ciata.

CANTAR

cantar lestranj

Ver ouvir alguém cantando.

Há os que sabem ouvir.

Há os que soltam a voz, os que prendem, os que cantam com a cabeça, com o corpo, com a buceta, com o pau, com o cu, os que pisam no chão, os que saem do chão, os que fazem uma boca pra cantar, os que cantam como falam, os que inventam uma voz cantora, os que cantam as palavras, os que cantam as notas, os que cantam com a harmonia, os que vão pelo ritmo, os que cantam sozinhos, os que cantam junto.

Os que cantam forte e se fazem ouvir. Os que cantam baixo e criam silêncios. A voz agradável, a voz suave, doce, a sensual, a cheia de nervos, a cheia de ar, a resfolegante, a voz que mascara, a que revela. A voz aguda, a fina, a estridente, a pontuda, a firme, a gorda, a cheia, a grave, a profunda. A que esquenta, a que irrita, a que machuca o ouvido, a que não chega até ele.

A orgia de cantar junto, sentir suas ondas vibrando, entrando e saindo de si e dos outros que cantam também e emitem ondas que batem, que entram e saem de todos, vibram juntas e separadas, promiscuidade de sons, de ares, hálitos, calores, alturas, intensidades, espasmos, êxtases.

Os que arriscam sem medo graves e agudos, independente da capacidade ou experiência da voz em seguir o ímpeto. Os que podem ter grande extensão mas não se arriscam. E mostram mais. Os que não abrem a boca, os que cantam antes de ouvir, os que disparam no ritmo, os que ficam pra trás, os que estão aqui, os que não, os que cantam com as mãos, com os olhos, com o coração. Os que tensionam o braço, o pescoço, a garganta, a boca. Os que cantam com alegria, medo ou dor.

Mas todos, todos, se abrem, se jogam, se mostram, e depois de cantar por algumas horas estão mais bonitos.

 

*ilustração de Lestranj Oão

**texto escrito no fim do primeiro mês dos trabalhos com a Universidade Antropófaga – cadernos de atuação 2015.