Descobri outro dia que estou involuntariamente escrevendo um obituário. Tem morrido tanta gente, e numas dessas mortes vem o impulso de escrever, relembrar, fazer viver mais e sempre. Algum encontro, real ou imaginário com aquela pessoa que foi animar outros mundos, impressões de sua passagem pela nossa vida, seus rastros, sua energia, inspiração.
Ontem foi a vez do Jô. Engraçado que o chamo assim sem nunca tê-lo conhecido pessoalmente, com intimidade, eu e tantos e tantos brasileiros que cresceram assistindo a seus programas, rindo dele e de seus personagens, rindo de nós mesmos, desde criança.
Uma vez quase participei de seu programa, eu e o Revista do Samba, parceiros de boa parte de uma vida inteira. Conhecemos, nos idos de 2002 no Embu das Artes, a cantora egípcia Natacha Atlas. Ótima cantora, e super gente boa. Estávamos – o trio Revista do Samba – tocando no Garimpo, um bar restaurante – e agora também pousada – alemão, em troca de uma dívida eterna que temos com o simpático dono Hörst. Graças a ele conseguimos uma ida a Berlim que permitiu que gravássemos nosso primeiro álbum lá. O cara gosta mesmo é de rock, mas se animou com nosso samba misturado e nos levou pra tocar em sua festa de despedida dos trabalhos formais com gente do mundo inteiro. Que festa! Mas não é disso que eu vim falar aqui.
Nessa noite, no Garimpo, lá estava a cantora Natacha, por conta de um parente inglês que adotou o Embu como lar. Ela tinha vindo ao Brasil divulgar seu novo álbum, aproveitar que estava bombando por aqui por conta de uma música sua na novela O Clone, da Globo. Na época nem tínhamos gravado ainda nosso primeiro álbum. Mas ela gostou de nós, do nosso som, improvisamos juntos, ela ao microfone cantando em egípcio com nossas harmonias, melodias e diferentes levadas de samba. Distinguíamos aqui e ali em suas palavras um Ya Habib em escalas árabes, que se casaram muito bem com o nosso samba, e que agradaram aos poucos mas fiéis frequentadores do bar naquela noite fria. Foram momentos deliciosos, música e assuntos diversos com ela, o tio inglês, o anfitrião alemão, e muito samba egípcio esquentando o Embu das Artes.
Ela então se empolgou e nos convidou para repetirmos a parceria em sua participação no Programa do Jô, um de seus compromissos profissionais dos dias seguintes em São Paulo. Seus produtores não apreciaram tanto a proposta, já que estavam aqui pra que ela falasse de sua participação na novela, de sua música que estava bombando no país, da sua carreira internacional. A ideia dela cantar num programa de grande audiência no maior canal de TV do país com um trio de samba desconhecido não lhes pareceu muito boa. Mesmo assim, ela insistiu para que fôssemos ao programa, que ela tentaria nos chamar ali de surpresa, e ver se colava. E lá fomos nós, agora nem lembro se levamos instrumentos, acho que não, senão teria uma lembrança menos feliz da situação. Que só não foi uma roubada daquelas pra rir da gente mesmo anos depois porque o programa era divertido ali da plateia também, e depois rimos juntos de tudo e trocamos mais ideias sobre nossas músicas, viagens, costumes, aventuras.
Outro momento em que estive no mesmo ambiente que o Jô foi na casa de uma grande amiga, a atriz Regina Braga, em seu aniversário há uns anos atrás. Foi uma festa em que sobramos no final, pr’aqueles últimos drinks, numa intimidade gostosa de quem sabe a hora de tomar uma boa cachaça. E momentos antes lá estava o Jô na sala, e percebi que estava emocionada por estar ali respirando o mesmo ar que todos aqueles personagens que haviam povoado minha vida durante tantos anos. Ele emanava uma energia que enchia todo o ambiente, como uma luz que deixava todos ali mais animados.
E ontem estava eu lá na estreia de São Paulo, em que Regina canta seu amor pela cidade que ela escolheu pra viver, e ao final do espetáculo, a homenagem ao Jô. Que normalmente estaria ali celebrando a vida conosco, mas que naquela noite não pudera comparecer. Celebramos sua vida da melhor forma, com aplausos quentes ao final de um belo espetáculo.
Escrevo tudo isso pra fazer presentes esses pequenos e preciosos momentos. Saborear um pouco mais essas pequenas grandes impressões que experimentamos, e que já já voltarão ao turbilhão da vida. Todas essas homenagens que vêm bombando pela internet só confirmam a presença dele em nossas vidas todas, e na minha em particular, com tantos personagens que vi e acompanhei na infância e dos quais me lembro até hoje, com destaque para a cantora Norminha, “paz, amor, som, e Norminha ! ! ! wow ! ! ” ou algo assim, que repeti e repeti, e também pra Nanayá com Y, que inspiravam meus showzinhos em casa, com destaque para o PicoLetsQuel, wow wow wow wow!!!
E depois ainda os programas de entrevista. Se alguém ainda acha que dá pra ser neutro nesse momento político do país, ou ainda acreditar que pode ser artista e de direita, torço pra que se depare com trechos de alguns programas compartilhados pelas redes, como com o patético lavajatista Dallagnol, ou na contracenação com um inesperado bolsonarista da plateia, nas conversas sobre o impeachment, e tantos outros bons momentos vividos nas madrugadas televisivas. Não estava acompanhando mais esse momento do Jô, e deu uma esperança na humanidade de ver como ele se posicionava durante as entrevistas. E pra terminar a manhã com chave de ouro, li ainda uma carta dele aberta ao presidente, dando uma esclarecida sobre o nazismo. Sempre com humor, mesmo nesses assuntos não muito engraçados.
Mais um artista que se vai e nos deixa nesse mundo que atravessa esse momento tão esquisito. Também momento de grandes transformações. Pegando emprestada a frase do filósofo italiano Antonio Gramsci, que trouxe pra casa num cartaz da última Bienal de São Paulo e que mantenho na porta da cozinha: “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros”. E aqui continuamos nós no mundo agonizante, agora tendo que contracenar com os monstros sem o auxílio luxuoso do aliado humor do Jô.
Que a gente continue aprendendo com ele a desconstruir esses monstros, de preferência com humor, a arma mais poderosa. E a seguir seus exemplos de colocar em prática as palavras de outro palhaço, o da burguesia, como se autodenominava o antropófago Oswald de Andrade. Transformar o tabu em totem. E Viva o Gordo ! ! !