Procurando escritos sobre certo assunto em diários passados, encontrei esse. Publico como homenagem ao bloco querido Agora Vai – que já começaram os ensaios pro Carnaval 2020 -, e à lua cheia que vem chegando. Daqueles momentos em que sentimos amor por essa cidade maluca.
MINHOCÃO
10.2.2014
Voltando do ensaio do Bloco Agora Vai, na Barra Funda. De bicicleta pelo minhocão, terça-feira 11 da noite.
Quando cheguei em SP morei na Praça Roosevelt. Quando ainda tinha o Pão de Açúcar, a padaria, o bar Corsarius, o cineclube, nenhum teatro, e o motel ao ar livre da praça. Um domingo glorioso de sol resolvi pegar a bicicleta e passear no minhocão, que tinha visto que fechava pros carros. Quem sabe chegar até o Sesc Pompéia. Fiquei tão chocada com a feiúra daquele cimento sem fim entrando nos apartamentos, o sol de rachar, as pessoas andando naquela desolação de concreto como num parque, comprando picolé e passeando com as crianças. É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi . . . voltei correndo pra casa e não lembro como terminei o domingo.
Hoje, passados os mais de vinte anos, não moro mais na praça, mas atuei nela algumas vezes e até compus a Lua Cheia que se passa ali, que ainda canto. E voltei de bicicleta pelo minhocão, depois do ensaio animadíssimo do Agora Vai. O caminho de volta era exatamente o minhocão inteiro. Noite quente. Muito quente, depois de muitos dias muito quentes. E aquele ventinho do caminho de ciclista, cruzando outros e outras, trocando cumplicidade, reparando na lanterna de um, no capacete do outro, no prazer de todos. Logo fui tomada pela beleza dos prédios, pela beleza da feiúra de muitos, muitos descuidados, muitos velhos e lindos, grandes portas, grandes janelas, grandes salas, quartos, cozinhas, varandas. Entra-se em cada apartamento, convivemos com os moradores, que na noite quente abriram suas janelas, saíram às varandas, ou apenas continuaram levando suas vidas, fazendo comida, o cheiro se espalhando pelo ar quente e poluído da noite seca, sentados com as tvs ligadas, computadores, livros, brinquedos de criança, bicicletas estacionadas, roupas secando, prédios art-decó, art-nouveau, ou sem arte nenhuma, só velhos, sujos e caindo. Famílias juntas nas salas, separadas em quartos, banheiros, cozinhas, ao alcance dos olhos, da voz. E o minhocão cheio de gente, andando, namorando, casais de homens, de mulheres, misturados, pais e filhos, turmas de amigos, amigos tomando chimarrão, cabeludos fazendo penteados, exibindo tatuagens, ciclistas da noite. Pedalo devagar, pra aproveitar cada janela, cada sotaque, cada língua diferente, pedaços de assunto. Um menino vem correndo, desafiando. Uma criança, oito, dez anos? E eu só queria ganhar a corrida, ele na frente correndo, rápido, acelerei, me emparelhei com ele, disputamos cada centímetro, até que embalei, ganhei ! ! ! e nos despedimos como adversários à altura. Trabalhadores com roupas fosforescentes dentro de um caminhão – o único carro ali àquela hora – e remexendo num buraco negro, fios, labirintos, segredos da cidade, ratos, baratas, subterrâneos de tudo. Pessoas nuas, meio nuas, dava pra ver até a cintura de fora pra dentro através das janelas, casais antes e depois do amor, intimidades. Árvores, folhas muito verdes no escuro, tentei sentir algum perfume mas não veio nenhum. Angélica, Igreja de Santa Cecília, Largo do Arouche, uma subidinha, outras janelas, varandas, cozinhas, camas, geladeiras, tvs. Outras luzes – o minhocão tem uma penumbra romântica. Uma luz indireta, que faz ver mas não demais. E a lua, quase cheia. De repente mais luzes, de todos os lados, dois caminhos. O minhocão foi acabando . .. cheguei na Praça Roosevelt. A rua, as pessoas. Aqui do lado, logo ali. Calor, movimento, vento. E tanta gente que não vê nada disso, enlatada nos carros, dentro dos shoppings, atrás de muros, com medo da sombra e cercada de (in)seguranças.