Reencontro com Messalina e a Patafísica de Alfred Jarry

Em 2016 entreguei para a Editora Iluminuras minha tradução de Messalina: romance da Roma antiga de Alfred Jarry. E nesse tempo mítico do mundo dos livros, eis que surge agora, em pleno momento de conseguirmos ler um pouco mais em casa – será? –, o livro impresso e ebook. Viva!

Abaixo a apresentação que escrevi para o livro, que conta ainda com orelha alucinante de Maria Bitarello (que vocês poderão ler no livro…):

o objeto livro

Para penetrar um poeta, poetas.  Começando com Roberto Piva, “não há poeta experimental sem vida experimental”.

Alfred Jarry, que para dormir recomendava “uma mistura de vinagre e absinto em iguais quantidades num copão, e uma gota de tinta de escrever”, praticante apaixonado de tiro, esgrima e ciclismo, viveu entre Paris e o campo na virada dos séculos XIX e XX e morava, segundo Apollinaire, no terceiro andar e meio da rua Cassette n.o 7 – mas parece que era no segundo e meio se ouvirmos outras fontes -, frequentava as terças-feiras de Mallarmé, as quintas de Rachilde, as noitadas do Café de la Plume em Saint-Michel, usava sua bicicleta para as ruas e estradas, e para o Sena seu barco.

Simbolista, surrealista antes do surrealismo, surrealista no absinto segundo André Breton em seu Manifesto de 1924, Jarry, absurdo no teatro antes do Teatro do Absurdo, autor de Ubu Rei, ou ele mesmo o próprio Ubu, criador da Patafísica – “ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções” -, em sua estadia por aqui, de 1873 a 1907, alimentava-se pouco, dos peixes que ele mesmo pescava, de costeletas de carneiro cruas e pepinos em conserva, o que, combinado a hábitos radicais, entre eles o de beber absinto, éter e álcool puro em grandes quantidades, deve ter contribuído para sua morte prematura aos 34 anos, por uma meningite tuberculosa.

Personagem de si mesmo, que gostava de ler em voz alta seus textos, com uma peculiar “elocução insólita, implacável, sem inflexões nem matizes, com uma acentuação igual em todas as sílabas, incluindo as mudas”, segundo descrição de André Gide – ou “de voz precisa, grave, rápida e por vezes enfática” segundo Apollinaire, ele mesmo define sua escrita nos Minutes de sable mémorial :  “Sugerir no lugar de dizer, fazer na estrada das frases um cruzamento de todas as palavras”, “um poliedro de ideias”, e afirma que  “todos os sentidos que o leitor ali encontrar estão previstos, e nunca ele encontrará todos;  e o autor pode indicá-los ao leitor, cabra-cega cerebral, inesperados, posteriores e contraditórios.”

Tema de inúmeras teses acadêmicas e biografias, Jarry, versado em grego e latim, que escreveu teatro e sobre teatro, poesia, romances, fez traduções, colaborou para diversas revistas, criou sua própria, dirigiu seus textos no teatro, dublou marionetes, e por aí vai longe…, continua inspirando e sendo descoberto e redescoberto por artistas de hoje de diversas linguagens.

            Messalina, segundo romance de uma trilogia amor e morte, publicado originariamente em partes pela revista Revue Blanche em 1900, tem uma descrição certeira na crítica de Michel Arnauld para a mesma revista quando de seu lançamento em livro no ano seguinte, num momento em que estavam em moda na França os romances de época, c’est-à-dire da época clássica:  “Todos os leitores de Quo Vadis deverão ler Messalina e conhecer, depois da Roma a céu aberto de Nero e de Sienkiewicz, uma Roma mais secreta e quase subterrânea, a de Cláudio e de M. Jarry: aqui, não mais retórica, circo ensanguentado, não mais banquetes sonoros, gladiadores, não mais cristãos; mas a espelunca esfumaçada de Suburra, o mistério dos jardins abandonados, a dança de um mímico sob o vermelho de um eclipse, e, em todos os lugares, o culto dedicado pela Vênus-Imperatriz ao deus que a penetra e se desnuda sempre…”

            Ainda segundo Arnauld, “o tema trouxe felicidade a M. Jarry: pois ele pode desenvolver as qualidades que nós já experimentamos, erudição bizarra, complicação de frases em arabesco, truculência rabelaisiana e brutalidade direta; mas tudo isso, sustentado, disciplinado por Roma, levou a efeitos mais intensos e mais francos.”

            “Um livro simbolista tanto no sentido da história da literatura quanto no sentido de um simbolismo psicológico profundo, enriquecido por elementos da mitologia pessoal do autor”, como definiu tempos depois Riewert Ehrich para a revista L’Étoile-Absinthe da Sociedade dos amigos de Alfred Jarry.

Sintomático que da trilogia O Amor Absoluto (1899), Messalina (1901) e o Supermacho (1902), só esta Messalina não tinha sido ainda traduzida e publicada no Brasil?  Este livro vem então suprir esta falha.

Traduzir Alfred Jarry é beber sozinha uma garrafa de absinto pra andar na corda bamba em cima do Sena ou do Tibre, com aquele medo de deixar pingar uma gota de água no absinto e turvar tudo como ele mesmo diz, é ativar todas as partes do corpo, principalmente a imaginação, se sentir livre pra inventar também, inspirada pelo caleidoscópio de palavras, frases e sentidos, e ao mesmo tempo perseguir sempre a precisão e a delicadeza de saber pisar em múrrinos sem quebrar nada, ouvindo consciente pequenos e grandes estalidos.  Depois desta Messalina somos já amigos tão íntimos, dos que brigam muito, e que por isso mesmo não se sentem sozinhos no mundo.  Que bom que a Patafísica acabou com a linearidade do tempo, um de seus principais objetivos.  Segui conselhos que recomendo ao leitor: respire sempre, antes, no meio das frases, depois, e antes de começar a próxima, leia em voz alta, abuse de sua própria imaginação e ritmo, a partir dos roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros roteiros indicados por Jarry, com a alegria dos que não sabem e descobrem; e mais outro, informe-se !  com os devidos agradecimentos a Oswald de Andrade e Hilda Hilst.

E agora chega que Jarry fala por si.  Merdra ! ! !

BATE PAPO – E pra quem quiser se aprofundar um pouco nessa aventura, compartilho aqui um bate-papo com Simone Homem de Mello, que me convidou a falar um pouco deste trabalho no Ciclo Livro Falado, do Centro de Estudos de Tradução Literária da Casa Guilherme de Almeida. Esse encontro virtual aconteceu em 22 de setembro de 2020.

só clicar na imagem e acessar o bate-papo

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