E lá se foi Beth Carvalho. Difícil não pensar que o Brasil vai ficando mais triste. E que a responsabilidade de não deixar a peteca cair vai ficando cada vez mais na nossa mão.
Tive a alegria de conhecer pessoalmente Beth Carvalho no Rio de Janeiro, na Tijuca, há mais de vinte anos atrás, numa ida com o letrista Costa Netto para tratar de assuntos da Dabliú, seu selo que ia lançar meu primeiro cd, o Bam Bam Bam. Que delícia uma noite de samba na casa do compositor Moacyr Luz, recém colega de gravadora e vizinho de prédio de Aldir Blanc, que também estava lá. Muita cerveja muito gelada, cachaça daquelas que descem acariciando a garganta e esquentando o corpo todo, tira-gostos maravilhosos, uma fartura danada, e a música que não parava. Muito bamba do samba, o violão que passava pra lá e pra cá, Beth no cavaquinho…
Sentei num canto ouvindo a música, tomando cerveja, cachaça, experimentando a petiscada carioca, sem conhecer ninguém mas já conhecendo todo mundo, e engreno uma conversa com um cara ao lado, falamos de sambas, música brasileira, ah, essa é demais, do fulano… adoro esse outro samba, uau, tava pensando nesse, ele então me contou que estava fazendo um livro com os sambas mais mais de todos os tempos, daí perguntei o nome dele, ele disse Almir. Uns dez segundos se passaram e eu entendi: Almir ! você é o Almir Chediak !!!, ele realmente me parecia familiar, daí agradeci muito a ele, graças às suas harmonias caprichadas tinha aprendido a tocar melhor meu violão, seus songbooks que me ensinaram tanto e me fizeram enveredar pela harmonia da bossa nova, do samba e da música brasileira de vários compositores e gêneros diversos. Que alegria de novo estar ali aquela hora, poder ouvir, trocar, e sim, agradecer todo aquele aprendizado e inspiração.
Lá pras tantas, já animada pela cerveja, pelo samba, pela cachaça, pelas conversas inspiradas, me vejo sentada ao lado dela, a madrinha do samba, a Beth Carvalho da voz rouca, estou cantando com ela, todo mundo cantando junto, feliz. Daí pergunto se ela conhece o Ziriguidum. Imagina se a Beth Carvalho, a rainha do Ziriguidum, não conhece o Ziriguidum … perguntei empolgada, tinha feito a mesma pergunta no camarim depois de um show da Elza Soares. Era o Ziriguidum cantado por ela e Monsueto numa gravação hoje facilmente encontrada no youtube, parte do filme Briga, Mulher e Samba, de 1961. É um samba irresistível, que a própria Elza Soares não se lembrava de ter gravado. Na empolgação da noite, perguntei a Beth Carvalho se ela conhecia – tipo aqueles chatos sem noção que ficam pedindo ‘aquela’ música – e ela muito naturalmente disse que não, e pediu então que eu cantasse pra ela conhecer. Ih. Agora ali não podia fugir, de onde tirei a ideia de fazer essa pergunta, maldita espontaneidade etílica, agora estava eu ali com um violão na minha frente, com um Ziriguidum a executar pra Beth Carvalho conhecer o que é Ziriguidum .. . . através de mim. Mais outros dez segundos, fazer o quê, peguei o violão, cantei, ela foi cantando junto, perguntou de quem era, Monsueto, eu disse, adoro Monsueto, ela completou, e eu feliz contei a história do camarim com a Elza Soares, duas rainhas do Ziriguidum para quem tive a honra de cantar o Ziriguidum.
Depois fui a um show dela aqui em São Paulo, e ao final fui ao camarim agradecer a noite cheia de Ziriguidum, e encontrei lá muitos compositores com um samba na mão, na esperança de ter um samba seu imortalizado na voz de Beth Carvalho, como tantos outros antes, de Cartola a Zeca Pagodinho.
Outros anos depois fomos tocar – o trio Revista do Samba, meus parceiros Beto Bianchi, Vítor da Trindade, e eu – num festival no sul da França e mais tarde no mesmo festival assistimos a um show dela numa arena romana, e cantamos juntos a plenos pulmões Andança – aquela mesma que não aguentávamos mais cantar nem ouvir em alguma roda por aqui – nós e todos os brasileiros que foram lá matar um pouco da saudade do Brasil, uma emoção e um orgulho da riqueza da música brasileira encantando e alegrando o mundo. E no fim do show uma Beth Carvalho meio contrariada de ter que acabar o show antes do show acabar, tendo que seguir um horário francês de festival com muitas atrações, d’accord, uma cultura que influenciou o mundo inteiro, mas que não sabe como funciona uma roda de samba.
Depois tantas vezes vendo Beth Carvalho lançar novos sambistas, sempre presente nos atos em favor da democracia, e cantando o samba do #LulaLivre na internet.
Hoje o Brasil está um pouco mais triste. O Almir já se foi tempos atrás, deixando o Brasil mais desarmônico, agora a Beth Carvalho foi fazer um samba com Cartola noutros mundos, e as rosas daqui vão falar ainda menos. Lembrando daquela noite lá na Tijuca, vem o sentimento de responsabilidade pra nós, que conhecemos e vivemos o Brasil com esses artistas, um tempo de esperança, de criação, com a cultura daqui sendo valorizada aqui e no mundo, encontrando meios de compor, cantar, divulgar essa música brasileira tão diversa e rica por todo canto. A hora é de ter cada vez mais esses artistas conosco, nos inspirando. Os podres poderes vão e vêm, sobem e caem, mas o samba continua fazendo o mundo todo e até Marte rebolar. E fico – e deixo vocês – com a voz da carioca Beth Carvalho mergulhando no samba paulista, cantando a Tradição do compositor Geraldo Filme, que há décadas atrás já compunha contra a verticalização do bairro: quem nunca viu o samba amanhecer, vai no Bixiga pra ver, vai no Bixiga pra ver . . .