Marcia Tiburi e o Brasil mais apertado

14695305_10210648943730019_520910363413503396_n (1)Conheci Marcia Tiburi na primeira reunião da #partidA em São Paulo. Minha amiga Nana querida estava em casa, e durante uma conversa feminista me falou do encontro que aconteceria em breve, da Marcia, nos apresentou acho que pelo facebook – quando ainda era possível se comunicar por ali, ao que ela logo respondeu animada sim, venha! Fui.

A reunião foi ótima, conheci mulheres incríveis, fui em outras na sequência, acabamos nos aproximando mais por conta de uma parede que caiu no Teatro Oficina no momento em que ela falava de outras paredes caídas, e que quase nos fez parceiras num texto teatral. A parceria na parede não vingou, mas a ideia sim, virou música, está virando outras, muitas inspirações e novas parcerias. Alguns encontros aqui e ali fui percebendo uma característica muito especial de ariana que ela é, a de botar fogo em ideias e projetos, que depois andam por si.

Tempos depois por outros caminhos ia publicar meu primeiro livro de contos Então é isso?!, e queria muito uma mulher para apresentá-lo, pensei na Marcia. Novamente ela foi tão aberta, tão pronta a ler, dispondo-se a escrever o prefácio, cumprindo prazos, tamanhos, e até discutindo sobre o que havia escrito. É claro que eu não teria como retribuir tanta generosidade, e quanto valeria um prefácio de Marcia Tiburi para uma primeira investida no mundo da literatura, com contos guardados por anos em gavetas e pastas de computador?

Ela como sempre bem humorada: quer me dar um presente? Topa ler trechos do meu livro novo, que vou lançar em São Paulo em breve? E quem ganhou o presente fui eu, que ao lado da poeta Alice Ruiz (!) e do compositor e cantor Carlos Careqa, participei do lançamento de seu Uma fuga perfeita é sem volta.

Hoje fico sabendo pelos jornais que Marcia Tiburi está fora do Brasil e não pretende voltar tão cedo. Que vinha sofrendo perseguições e ameaças de morte, que desde que se negou a estar no mesmo programa de rádio que aquele kimbecil, cuja participação não lhe havia sido comunicada, sua vida virou um inferno com ataques incessantes de intrépidos virtuais, e que depois da candidatura a governadora do Rio pelo PT até a eventos literários precisava ir acompanhada por seguranças, passou a ser agredida na rua, e outros horrores que estamos nos acostumando a achar normais. Ameaças de morte.

Além da tristeza que essa notícia traz, da sensação de abandono cada vez maior, não só nossa, mas desse país gigante e tão amado nas mãos de uma gang alucinada de tão ignorante e cega pela própria mesquinhez, o medo que dá é o de não perceber se já chegou naquele ponto insuportável e que não notamos, ou pelo estado de choque provocado por cada notícia inacreditável que bate na nossa cara logo de manhã, ou porque tudo veio acontecendo tão rápido que não deu tempo de perceber o quão na merda já estamos.

E o que mais assusta nessa história nem é procurar pela notícia da saída da Marcia do país e já encontrar pela internet tantas agressões antes mesmo da notícia em si. Mas pensar em como chegamos nisso, nas pequenas picuinhas do dia a dia, nos comentários maldosos que já ouvimos de ‘amigos’ incríveis, da família ‘adorada’, dos vizinhos ‘cordiais’, nas pequenas agressões cotidianas que nos fazemos uns aos outros por um nada mesquinho que está tão entranhado na nossa cultura que nem distinguimos mais. O que estamos virando? Ou sempre fomos assim e só agora nos damos conta. A merda está escancarada na internet, mas muitas vezes bem escondida em nós mesmos.

Hora de parar de sentar no próprio rabo pra falar só do rabo dos outros. De dar aquela respirada antes de falar, e quem sabe desistir de falar e começar a ouvir. Ouvir o outro. Mas também ouvir profundamente a si mesmo. Se olhar no espelho. Sem máscara.

Cheguei do Carnaval de lavar a alma do Rio de Janeiro, com a Mangueira dando banho de história e arte pro mundo inteiro ver, cantar e dançar junto, e blocos pelo país todo provando mais uma vez que a alegria é a prova dos nove. Começou finalmente o ano, e infelizmente já largamos dando muitos passos pra trás. Que o samba então nos dê força e inspiração pra muito tempo, e imaginação pra sair dessa. E que a Marcia Tiburi continue tendo e botando fogo em tantas ideias, espalhando sua clareza, inteligência e coragem pelo mundão afora. O Brasil vai ficar um pouco menor e mais apertado, mas daqui a pouco essa canoa furada em que estamos pode virar. Os tambores e caxixis já estão batendo e vão bater cada vez mais forte pra balançar essas estruturas de plástico podre. E as paredes de cartas marcadas desse baralho de gangsters vão cair uma a uma com a batida do samba.

Bacantes praticantes nas Satyrianas – Então é isso?!

capa

capa do livro com a bacantinha

Então é isso?!   Será que finalmente estou conseguindo parar com as vidas paralelas? Amanhã é lua cheia na Praça Roosevelt, e lá vamos nós com Então é isso?! nos Parlapatões, nas Satyrianas da Phedra. Morei lá antes dos Satyros e fiz essa canção – Lua Cheia – esperando um amor voltar do ensaio eterno de Bacantes no Teatro Oficina . . . hoje estou fazendo Bacantes (de novo!) no Oficina, postando a Lua Cheia que foi composta ali de frente pra Praça, pra lançar o livro que tem o conto Praça Roosevelt, escrito ali também, antes da praça ser o que é hoje, cheia de teatro e de gente. E de lua.

E com parceiros colegas de camarim e de tantas ali do terceiro andar . . . Marcelo Drummond, sempre Dionisios mesmo quando nem sabe, parceiro silencioso de carnavais e ótimas e bad trips, Sylvia Prado, Cacilda, mana teus cabelos mana . .. e tantas, cabrocha do samba no Bixiga, parceira de Bixigão e carnavais, Dani Rosa, rainha da bateria, parceira de voz, de confissões de camarim e samba no pé e nos quadris pelas ruas de Oropa França e Bahia, Joana Medeiros, irmã incestuosa Cadméééééia, do olhar e palavras de loucura sagrada, pipoca e videogame, Wallace, cabelos de fogo e entusiasmo exuberante e doce, desafio novo e instigante. E uma surpresa da noite, que pode vir ou não, a caligrafia milenar aqui agora, de rua, desenho do nome.

Bacantes praticantes no trabalho diário do teatro, no vagabundear sem descanso das artes. Mais um Então é isso?!, de descoberta, contos que mudam de cara e de voz, diferentes e novos a cada leitura. E mais uma vez aquele obrigadíssima a todos que emprestam sua voz e corpo a esses personagens que foram aparecendo aqui e ali e me azucrinando até conseguirem existir em palavra e som. A alegria é a prova dos 9 ! ! ! ! M E R D A ! ! ! ! !

Ouça a faixa 8 – é a Lua Cheia.

uma bacante em BH – Então é isso?!

2016-09-03-23-06-021

É quinta-feira agora, 27, Então é isso?! em BH.  A alegria é a prova dos 9 ! !

Acabamos de estrear Bacantes no Teatro Oficina em São Paulo, então essa bacantinha – que está na capa do livro Então é isso?!, nele todo e aqui dentro – liga uma coisa na outra, minhas vidas paralelas e uma só, a bacante no teatro, na música, e agora na literatura… há mil anos atrás quando corria criança atrás de brindes em uma exposição no Palácio das Artes, uma das moças que distribuía alguma inutilidade me deu vários brindes e me parabenizou pela minha cara-de-pau. Então é isso?!

Muito feliz por estar na terrinha, Belo Horizonte de tantas madrugadas pelas ruas, tantas histórias, sonhos, amigos, e tragédias também. Tragicomediorgyas da vida . . . e muito contente por estar tão bem acompanhada nessa minha noite de estreia ! !

Rodolfo Vaz, amigo de tantas, que re-conheci no teatro, sempre presente de perto e de longe, ator que surpreende em cada mergulho no escuro, Brisa Marques que encantou todo mundo quando viemos com o Oficina pras Dionisíacas em BH em 2010, Marcelo Veronez que também apareceu pra mim nessas Dionisíacas, e que depois surpreendeu como cantor, e Ulisses, meu mais recente amigo de infância, companheiro das letras, da animação e do humor, leitor interessado e interessante ….  E o meu cavaquinho, companheiro fiel de tantas…

E o livro? Eram contos, que de repente passaram a se chamar livro com Maria e Ulisses. Começou no blog do site, criação da dupla Brenda&Maria, que abriu de novo o caminho das letras. Aimar Labaki, lá de outros carnavais, que de um café mostrou o caminho das pedras, Alex que arriscou e chegou no ritmo acelerado que bateu com a urgência da vontade, Marcia Tiburi que amorosamente se divertiu e escreveu o prefácio, Welington Andrade que emprestou sua erudição despretensiosa, Beto Mettig que lá da Bahia de São Salvador compartilha seus tesouros.

Tantas histórias e tanta gente ali. Amigos amantes que deram sua atenção e suas vozes, que leram antes, Fábio, Márcia, Adriana, Samuel, Beatriz, Nana, Ana, Ivam, Maria, Ulisses, Verônica. E agora já imaginando meus próximos amigos íntimos, venham, possíveis leitores …

Ritmo de formatura, ou primeira comunhão, ou primeira apresentação do teatro ou coral da escola. Do pré. Feliz pacas – pra lembrar de outros tempos e homenagear os animais. Bacante praticante. Méééééé ! ! ! ! ! !

confirme aqui sua presença no evento do facebook.

escrever. . . então é isso?!

Essa é a Praça Roosevelt. Desenhei pra me acalmar com a ideia da publicação.  Foi meu primeiro conto lido em público, pelo Ivam Cabral, antes da praça ser o que ela é hoje, mas ali mesmo, nos Satyros, lá pelos idos presentes do iníCio desse milênio.

Essa é a Praça Roosevelt. Desenhei pra me acalmar com a ideia da publicação. Foi meu primeiro conto lido em público, pelo Ivam Cabral, antes da praça ser o que ela é hoje, mas ali mesmo, nos Satyros, lá pelos idos presentes do iníCio desse milênio.

 

Então é isso?!   É quinta agora ! ! !   dia 13, das grandes transformações…

Especialíssimas as intervenções que acontecerão na noite de lançamento em SP, presente de amigos artistas que admiro tanto, que tive a alegria de conhecer trabalhando junto. E que também misturam as artes, do teatro, das letras, da memória, da história, da imagem, luz, artes plásticas. Verônica, com seu Fantasma do Circo tão concreto que se mistura com a própria história do circo no Brasil, Ivam, que além de ator emocionante criador de seus personagens e ator da vida da cidade é dramaturgo, escritor das terras de Cabral e outras histórias, Mariano parceiro do Oficina e vários carnavais, vizinho de muro por 3 meses, artista gráfico de tantas imagens e letras, Sônia parceira de figurinos exuberantes e aventuras na Amazônia, que me mostrou os caminhos da caligrafia e desenhos da tinta preta, Banti criador de densidades de luz e sombra, Lua Lucas, ator atriz, cantora, escritora de interessantes crônicas pessoais do cotidiano. E o meu cavaquinho, companheiro fiel de tantas…

E o livro? Eram contos, que de repente passaram a se chamar livro com Maria e Ulisses. Começou no blog do site, criação da dupla Brenda&Maria, que abriu de novo o caminho das letras. Aimar Labaki, lá de outros carnavais, que de um café mostrou o caminho das pedras, Alex que arriscou e chegou no ritmo acelerado que bateu com a urgência da vontade, Marcia Tiburi que amorosamente se divertiu e escreveu o prefácio, Welington Andrade que emprestou sua erudição despretensiosa, Beto Mettig que lá da Bahia de São Salvador compartilha seus tesouros.

Tantas histórias e tanta gente ali. Amigos amantes que deram sua atenção e suas vozes, que leram antes, Fábio, Márcia, Adriana, Samuel, Beatriz, Nana, Ana, Ivam, Maria, Ulisses, Verônica. E agora já imaginando meus próximos amigos íntimos, venham, possíveis leitores …

Ritmo de formatura, ou primeira comunhão, ou primeira apresentação do teatro ou coral da escola. Do pré. Feliz pacas – pra lembrar de outros tempos e homenagear os animais. Bacante praticante. Méééééé ! ! ! ! ! !

TIO DOUGLAS

Eduleia leite da fiinha

desenho no texto de Mystérios Gozosos – Eduleia – Teatro Oficina 2016

Estavam novamente no cinema. Era dos poucos lugares em que ele podia ficar com ela em público sem ser incomodado. E em que ela acreditava ir para se divertirem, e quem sabe até ele não tinha, assim, uma preocupação cultural em relação a ela? É claro que os filmes sempre tinham histórias com trepadas dos atores principais. Mas também, qual filme atual que não tem “cenas de sexo”?, ele dizia. E ela gostava de vê-las.

Nesse dia especialmente sentia-se animada, estava feliz porque seu colega a havia chamado de gostosa pra todo mundo ouvir. Aquilo custou três dias de suspensão, o orientador não achou muito educativo pré-adolescentes -era assim que os chamavam- de onze, doze anos, trocando carícias obscenas durante as aulas. Não estava muito triste em perder as matérias, mas não gostava muito de não ter onde ir durante o dia, e em casa sempre era obrigada a obedecer ordens. E não gostava também do jeito que ele a tratava na presença da mulher. E ela, tia Dolores (ou dona Dolores, dependendo do humor não gostava que a chamasse de tia), vinha maltratando-a muito nos últimos meses.

E o filme já havia começado, mas ela não entendia muito bem o que se passava. A imagem era ruim, os atores apareciam sempre sem cabeça, e a cor fazia com que se lembrasse das fotos de criança que guardava trancadas no armário. Nas fotos ela parecia tão feliz, com sua mãe carregando-a nos braços e enchendo-a de beijos. E ainda por cima todos falavam tão depressa, que ela não conseguia acompanhar o que diziam pelas legendas. Língua esquisita, deve ser espanhol. Gostava mais quando os atores falavam inglês. Lembrava do Michael Jackson.

Ele já havia começado como de costume. Pegava a mão dela e fazia com que segurasse naquela coisa, que a essas alturas esperava dura já pra fora da calça. Como ele parecia gostar daquilo… quer dizer, às vezes não sabia muito bem se ele gostava mesmo, pois era tudo tão rápido. E hoje ele parecia ainda nervoso. Não seria por causa da suspensão, pois nem lhe contara ainda… Mas à medida que o filme ia passando -parecia não haver mesmo história, ou era ela que não entendia-, lembrava do Marquinho, o colega, e quanto mais se lembrava dele parecia quase bom fazer o que fazia. Pegava naquele pau duro, e especialmente naquele dia sentia a buceta esquentar, doer até dentro da calcinha justa. Engraçado que das outras vezes não sentia exatamente prazer em ver aquele homem, que ela respeitava e até temia um pouco, se esfregando na cadeira do cinema e por fim soltando aquela coisa branca em cima dela. Tinha vontade de perguntar o porquê daquilo, mas tinha vergonha. Nunca conversavam, e ela achava que este não deveria ser o primeiro assunto. Sentia que por algum motivo aquilo deveria permanecer um segredo entre eles.

Mas ele estava realmente nervoso. Saíram do cinema e foram tomar um sorvete. Oba!! Antes nunca tinham ido. As coisas estavam melhorando. Sentia-se até um pouco culpada pela suspensão. Poxa, eles eram tão legais com ela e era assim que retribuía. E no meio do sorvete -ela pediu um duplo, bem grande – ele foi pra cima dela, lambia o seu sorvete, começou a beijá-la como no filme. Com força, ele enfiava a língua dentro da sua boca, misturada com o sorvete, pegava em seus cabelos, se esfregava nela, apertava com os dedos o bico dos seios que começavam a despontar sob a camiseta.   E agora, meu Deus!? Ela não sabia o que fazer, o pessoal da sorveteria olhando meio de lado, aquele sessentão meio animado demais, com aquela menina que parecia sua neta. Levou-a dali e dentro do carro começou a falar de um jeito que ela não conhecia, muito rápido. Ivetinha (era assim que ele a chamava quando estavam sozinhos), nós vamos nos mudar, vamos morar só eu e você, já aluguei uma casa na praia, você não vai mais precisar estudar, nem aguentar sua tia lhe dando ordens nem olhando torto pra você. Agora você vai ser a dona da casa, e tudo vai ser do jeito que você quiser. Nós vamos almoçar hambúrguer com batata frita e coca-cola todos os dias, com ovos nevados de sobremesa, você vai poder escutar música bem alto e ver todos os programas que quiser na televisão!… É, isso mesmo, nós vamos agora. Ele babava.

Nem passaram em casa. Ela ficou um pouco assustada com a ideia, mas logo se acostumou. A estrada era bonita, toda rodeada de árvores e casinhas. Talvez se esquecesse rápido de tia Dolores. Mas com certeza teria muita saudade do Marquinho. Será que o veria de novo?

O mais que perfeito

*conto do livro Então é isso?!  que há de existir

 

O MAIS QUE PERFEITO  

(pétala de rosa)

 

Andava pensando porque não fodera mais na vida.

O mais que perfeito. Seu marido, o mais que perfeito. Um homem exemplar, quarenta e cinco anos juntos, três filhos, sete netos. Um mau negócio do filho, que confiara num sócio muito honesto, ah, meu pai que dizia se alguém diz de outro alguém que fulano é muito honesto, pode desconfiar. Ou se é honesto ou não é. E ele confiara. Se fodera.

Mas vai entender os caminhos que a vida nos apresenta. É só saber ver, aprendera naqueles livros de autoajuda que não ajudaram muito, e até ocuparam um tempo que pena que não usara para outros fins, mas o presente é o que interessa, o tempo perfeito já fora, as pessoas teimam em dizer que é a juventude o mais que perfeito tempo, mas pra ela o mais que perfeito já era. O negócio é agora.

Perderam tudo. Até o sítio foi na falência do filho, e agora pra não perder o apartamento onde moram ela voltou a trabalhar. É, sessenta e nove anos e daí, sentia-se bem e animada. Seus anos de colégio de freira estudando francês finalmente lhe seriam úteis. Conhecera nas aulas de yoga um rapaz muito simpático que falava sempre com ela, tinham alguns autores preferidos comuns, falavam de Paris, da neve, histórias de reis, museus, que ela conhecera em viagens de lua de mel, bodas de papel, prata, e ele não, nunca fora, mas conhecia bem dos livros que lera. Ele começou a tirar dúvidas com ela, contar dos textos novos, dublagem de filmes, documentários, palestras. Ela comentara com ele que outrora ensinara francês, ele perguntou se ela fazia traduções. Era a oportunidade.

Até bula de remédio traduziu. Aos poucos ele foi lhe passando textos mais complexos. Artigos de revistas femininas, documentos de estrangeiros para imigração, currículos para bolsas de estudo, narração de documentários, diálogos de filmes. Até que um dia ele chegou com um livrinho pequeno, velhinho, que encontrara por acaso em um sebo. Entregou a ela e pediu que lesse. Que dissesse depois o que achara. Se topava traduzir.

Nos dicionários que tinha em casa não encontrava nada daquilo. Já há alguns anos frequentava uma lan house para terceira idade, com monitores que orientavam os velhos que não se davam muito bem com o mundo virtual. Ali encontraria o que procurava. Dicionários virtuais.

Sites pornográficos ali eram discretamente repelidos, mas ninguém suspeitara do conteúdo do que andava buscando. No início era o verbo. Fora. E foi assim que foi descobrindo palavras que não conhecia, que significavam atos que não praticara, talvez porque não havia palavras que os significassem em português? Até o latim das missas de outrora era mais rico em vocabulários libertinos.

A primeira palavra pela qual se apaixonou, e na sequência pelo que significava a palavra, foi godemichê. Em algum lugar encontrou consolo, mas não significava o que queria dizer. Vibrador muito menos, já que o godemichê tradicional não vibrava. E outra, não precisava de consolo, queria era novas ideias. Ainda tinha bastante força e ritmo nas mãos, preferia o sistema biomecânico, ou seja, com as próprias mãos, sentia mais vigor. E era um ótimo exercício para os braços. E o significado, dá-me alegria, dá-me prazer, me faz gozar, tudo isso de bom e ainda estava aprendendo latim! Sim, vinha do latim, godemichet, rejouis-moi, não se aguentou, contou pro marido, que já observara a mudança na esposa, cada vez mais animada, acordava dizendo que tivera um sonho bom, andara descobrindo coisas, aprendendo…

Descobrira uma expressão, e não achava paralelo em português. Sentiu-se novamente uma ignorante no assunto, quarenta e cinco anos de casada e o marido não era assim um especialista nem em expressões libertinas francesas e infelizmente muito menos nos atos que elas podiam descrever. Faire feuille de rose, que poético, fazer pétala de rosa, só de brincadeira pedira a seu marido à noite, para fazer-lhe um pouco de pétala de rosa. Ele não entendeu, mas deu-lhe um beijo de borboleta muito carinhoso, de que ela sempre gostara muito quando mais jovem, um piscar de olhos sobre a bochecha, chegara até o pescoço já com uma expressão quase safada, J. era mesmo um romântico. Como explicar a ele que estava descobrindo novas expressões, e que esta poética fazer pétala de rosa era nada menos que dar ou receber uma lambida no cu? Perguntou às amigas da aula de pilates, mas nenhuma sabia o que era, e ela fingiu ainda não saber também. Passou então a imaginar quantas pessoas fariam pétala de rosa em seu prédio. O casal vizinho? Ouvira os gritos da mulher, uma cinquentona gorda sempre de cara boa, será? Pensou que sim, eles deviam saber fazer muitas coisas sem palavras em português para definir. E o casal de cima, dois homens, esses provavelmente faziam muita pétala de rosa, o nome já significava, casal gay, estavam sempre alegres, animados. Será que só ela e o marido não faziam pétala de rosa?

Estava entusiasmada, aprendera outra. Faire minette. Que gracioso. Foi descobrir em dicionários de gírias francesas do século XVII. Chupar buceta… que interessante, por que não temos uma expressão assim em português? Fazer minete, fazer mimi para os íntimos. Redundante. Apesar de não conhecer muito a prática, tinha certeza que isso sim, muita gente fazia. Será que só não ela e seu marido? J. sempre fora muito respeitador. Ela fora feliz assim com ele, sentia-se preservada das maldades do mundo. Mas agora lendo tudo aquilo não podia evitar de sentir uma certa curiosidade. Se todas aquelas palavras e expressões existiam, é porque deviam dar alegria às pessoas. A exemplo do godemichê. Me dá alegria, prazer, me faz gozar! Sim, ter um godemichê, fazer minete com as amigas? Ou pedir pro marido? A essa altura da vida, qual o problema em experimentar novas práticas? Só os dois em casa, nunca gostara muito de pôquer bisca ou truco, por que não experimentar as novas palavras na prática?

Resolveu tentar.

O marido também se ocupava com algumas aulas grátis na vizinhança, mas separado dela, pra sentir saudades e encontrá-la à noite pro jantar. Se viravam como podiam com o excesso de tempo e a falta de dinheiro.

Comprara um vinho. Gastara quase tudo o que recebera com a última tradução, justamente um conto anônimo francês do século XVII. Ou de agora mesmo, não tinha certeza do alcance da cultura nem do caráter de pesquisador de seu colega de yoga, mas também pouco se importara. O que contava era o conteúdo, a inspiração que dera e, claro, os trocados suficientes para comprar aquela garrafa. Aquelas, eram duas. Sentia-se na Paris seiscentista, ou uma camponesa do sul da França, trabalhando nas vinhas, pisando as uvas, de sol a sol nas plantações, e à noite em festas bárbaras. Foi contando algumas dessas histórias para o marido, já na terceira taça de vinho, resolveram se recostar num canto mais confortável da casa, à luz de velas do jantar, tudo mais bonito, quase rodando, um calor vindo de dentro, do vinho, da pimenta da comida, das velas…

Vão descobrindo prazeres, lugares nunca antes tocados. Tinham tempo! Um belo dia, depois de gloriosos momentos juntos, o godemichê, sucessivas minetes, ela soltou esguichos no rosto do marido. Na hora ficara envergonhada, achou que estava tendo problemas de falta de retenção urinária, foi ao médico. Descobriu que estava começando um novo momento em sua vida, ejaculara! sim, as mulheres ejaculam, esporram, mas ela não conhecia nenhum termo específico pra isso, em português – ao menos em seu círculo de amigas – nunca ouvira falar nada parecido. Ou seja, não existia. Viu que em francês usavam muito o termo descarregar, para ejaculação masculina e feminina, e aquela passou a ser a senha entre ela e o marido. Acho que hoje quero descarregar um pouco… falavam isso na frente dos filhos, netos, de amigos, ninguém entendia ou não percebia mesmo o sorrisinho safado dos dois. Anoitecera. Seria mais uma noite de delícias.

E mais tantas palavras a aprender.