Tão pouco tempo e tudo mudou tanto. Sem volta.
Acabei de saber que a Neide morreu. Minha parceira, eu mais velha, eu mais nova, ela eu, ela em mim, ela falando com ela mesma que ali era eu, e nós éramos uma, uma força de vida, um sentimento, um pensamento de vida toda. O que fiz, o que deixei de fazer, que bobagem, não deixe de fazer nada que você quer, é o que ela me dizia, é o que dizia pra si mesma, uma reflexão do que fizemos e deixamos de fazer na vida.
Hoje ela morreu, lá se foi ela, estava no hospital, usando um respirador, mas já se livrando dele segundo as últimas notícias que tivemos, e que eram boas, de esperança de que ela ia se recuperar, voltar pra casa, que nós íamos nos reencontrar e continuar nossos trabalhos.
Não, nós não vamos continuar nossos trabalhos tão cedo. Mas no que quer que ele se transforme, ela estará conosco. Vou sempre me inspirar na cena que fizemos juntas. Ela tão rápida, generosa, engraçada, presente com sua presença de vida inteira, de vida vivida e agora ali, passado presente futuro um só, em ações e reflexões. Uma leveza de fim de caminhada, aquele foda-se maravilhoso onde nada importa e tudo importa, é estar ali e viver. Uma dor no corpo aqui e ali que a impedia de andar ou ficar em pé em algumas práticas, mas a presença, sempre. Aquela cara de desenho animado, já uma mistura andrógina, uma pessoa. Uma pessoa velha, a mais velha de nós, nossa anciã, a mais sábia, a mais leve. A mais divertida. A mais desencanada. Agora desencarnada, desencarnando, que não sabemos direito como isso funciona. Só sabemos que todas vamos passar por isso. Nosso último desafio. Até começar uma nova aventura ou quem sabe tudo de novo . . .
Penso então na nossa peça, no trabalho que estávamos construindo juntas, e que elas estavam sendo nossa inspiração. Nossos trabalhos diários, nossos encontros, nossos primeiros ensaios tijolAs. Algo estava no ar. Uma sensação de que não continuaríamos daquele jeito, não sabia bem o porquê, às vezes pensava que íamos mudar o espaço da apresentação, talvez uma esperança de um espaço maior, de possibilidades de continuidades, o fato é que algo parecia que não ia acontecer como os caminhos pareciam indicar. Hoje penso se já sabíamos de alguma forma que algo estava por vir. E agora em casa, um pouco doente – porque pelo jeito também peguei a tal covid-19 -, me sentindo impotente, inútil, sem muita força que essa coisa derruba a gente, com alguma vontade que vai e vem, sem saber o que fazer, o que dá pra fazer, agora é me recuperar, mas a sensação só aumenta. A cena do filme em que estamos parados esperando aquele enorme planeta se aproximar e colidir com a Terra.
Quanto tempo vamos ficar assim? Quando poderemos sair, encontrar as pessoas? Sem medo, sem dúvida do que podemos e ou devemos fazer ou não. Máscaras? Sempre máscaras e medo de nos contagiarmos? E os teatros. Quando poderemos estar com as pessoas, todas ali ao mesmo tempo, naquela promiscuidade de ar que sai de mim e entra no outro, nos outros, eu que respiro o ar que já passou por tantos, e ainda transformamos tudo em som, música? Quando cantaremos todos juntos de novo, com nossos sons se misturando, nossos ares dançantes entrando e saindo entrando e saindo e formando ondas, movimentos de cor e luz pelos ares, que captamos, repetimos juntos e separados e formamos nossas sinfonias?
Justamente não sabemos.
Mas vamos encontrar um jeito. Porque queremos nos encontrar, queremos cantar juntos de novo, brincar de ser outros, de ser o que pensamos que somos, o que pensamos que outros são, de trocar existências. Aí vamos nos olhar de novo olho no olho sem telas ondas feixes algoritmos fios sem fios correntes. E vamos sentir as vibrações tantas, de perto, entrando e saindo de corpos presentes vivos e animados. E vamos cantar, pular, dançar, nos abraçar, encostar, cair uns em cima dos outros, vamos dar as mãos e fazer uma grande roda pelo mundo, batendo os pés no chão, acordando os mortos debaixo da terra e voando pelos ares, e vamos celebrar a vida, esse mistério em movimento.