escrever. . . então é isso?!

Essa é a Praça Roosevelt. Desenhei pra me acalmar com a ideia da publicação.  Foi meu primeiro conto lido em público, pelo Ivam Cabral, antes da praça ser o que ela é hoje, mas ali mesmo, nos Satyros, lá pelos idos presentes do iníCio desse milênio.

Essa é a Praça Roosevelt. Desenhei pra me acalmar com a ideia da publicação. Foi meu primeiro conto lido em público, pelo Ivam Cabral, antes da praça ser o que ela é hoje, mas ali mesmo, nos Satyros, lá pelos idos presentes do iníCio desse milênio.

 

Então é isso?!   É quinta agora ! ! !   dia 13, das grandes transformações…

Especialíssimas as intervenções que acontecerão na noite de lançamento em SP, presente de amigos artistas que admiro tanto, que tive a alegria de conhecer trabalhando junto. E que também misturam as artes, do teatro, das letras, da memória, da história, da imagem, luz, artes plásticas. Verônica, com seu Fantasma do Circo tão concreto que se mistura com a própria história do circo no Brasil, Ivam, que além de ator emocionante criador de seus personagens e ator da vida da cidade é dramaturgo, escritor das terras de Cabral e outras histórias, Mariano parceiro do Oficina e vários carnavais, vizinho de muro por 3 meses, artista gráfico de tantas imagens e letras, Sônia parceira de figurinos exuberantes e aventuras na Amazônia, que me mostrou os caminhos da caligrafia e desenhos da tinta preta, Banti criador de densidades de luz e sombra, Lua Lucas, ator atriz, cantora, escritora de interessantes crônicas pessoais do cotidiano. E o meu cavaquinho, companheiro fiel de tantas…

E o livro? Eram contos, que de repente passaram a se chamar livro com Maria e Ulisses. Começou no blog do site, criação da dupla Brenda&Maria, que abriu de novo o caminho das letras. Aimar Labaki, lá de outros carnavais, que de um café mostrou o caminho das pedras, Alex que arriscou e chegou no ritmo acelerado que bateu com a urgência da vontade, Marcia Tiburi que amorosamente se divertiu e escreveu o prefácio, Welington Andrade que emprestou sua erudição despretensiosa, Beto Mettig que lá da Bahia de São Salvador compartilha seus tesouros.

Tantas histórias e tanta gente ali. Amigos amantes que deram sua atenção e suas vozes, que leram antes, Fábio, Márcia, Adriana, Samuel, Beatriz, Nana, Ana, Ivam, Maria, Ulisses, Verônica. E agora já imaginando meus próximos amigos íntimos, venham, possíveis leitores …

Ritmo de formatura, ou primeira comunhão, ou primeira apresentação do teatro ou coral da escola. Do pré. Feliz pacas – pra lembrar de outros tempos e homenagear os animais. Bacante praticante. Méééééé ! ! ! ! ! !

A experiência / experimentação da música n’Os Sertões

  • e outros espetáculos

*especial para a revista A Bigorna – extraordinária – parte do livro dourado do Oficina 50+ – comemorativo dos 50 anos do Teatro Oficina

 

Chegada

Minha primeira experiência como atuadora no Oficina foi em Bacantes, na virada de 1999 pra 2000. Entrei com a função de aprender tudo e ensaiar as canções com os atores, na maioria não cantores. Tínhamos pouco tempo – depois aprendi a trabalhar com pouco tempo e a estar sempre preparada pra improvisar – inventar e atuar. Foi o começo de um trabalho que resultou no fortalecimento musical do coro do teatro e na ‘oficialização’ do aquecimento vocal diário como forma de afinar, timbrar as vozes, e também concentrar o elenco, ligando-o a partir dessa e nessa sintonia fina que é a música.

Ao longo desses anos no Oficina vivi diferentes processos de criação, talvez com a única característica comum de que nada nunca está nem estará pronto. Que tudo pode e vai sempre mudar. Pensando em música, ainda mais pra ser cantada em coro, essa mudança permanente parece de uma dificuldade intransponível, mas se revela de uma riqueza muito intensa com a prática. Perde-se muitas vezes em qualidade pela dificuldade de afinação, mas ganha-se em intenção, conteúdo e interpretação.

 

O coro

“O coro ditirâmbico recebe a incumbência de excitar o ânimo dos ouvintes até o grau dionisíaco, para que eles, quando o herói trágico aparecer no palco, não vejam algum informe homem mascarado, porém uma figura como que nascida da visão extasiada deles próprios.” (Friedrich Nietzsche, em “O Nascimento da Tragédia”).

Falando especificamente do coro, principalmente musical, sinto que um bom exemplo dessa busca do papel do coro, organicamente integrado com o conteúdo e com a atuação do público, é a montagem dos cinco espetáculos d’Os Sertões. Processo que abriu possibilidades para evoluções em trabalhos seguintes, como nos espetáculos Banquete, Macumba Antropófaga, Acordes e Cacilda!!!, onde partimos para complexas e sofisticadas divisões de vozes, de compositores como Villa Lobos e Paul Hindemith, e composições próprias já criadas para quatro ou mais vozes distintas.

Ah, os primeiros ensaios d’A Terra… Passávamos de três a cinco horas cantando diária e ininterruptamente, no início um grupo de treze pessoas que foi virando um coro potente e coeso. Primeiro o aquecimento vocal, e então um garimpo das canções que já haviam sido criadas em ensaios realizados dez, doze anos antes, em oficinas com Tom Zé, Denise Assunção.

Durante dois meses realizamos ensaios semanais gratuitos abertos ao público, onde usávamos ainda o livro, e arriscávamos todo tipo de invenção e improvisação a partir do próprio texto de Euclides da Cunha, na íntegra. Enquanto ensaiávamos no teatro durante a semana, Zé ia trabalhando a dramaturgia com outro grupo de artistas, a partir dos improvisos –muitos deles musicais- vividos com o público. Durante esse período eu era a única ‘música’ do grupo, e nossa base musical dos ensaios era o canto. No primeiro dia da primavera Zé conduziu o ensaio com o objetivo de compor o trecho que descrevia a primavera no Sertão, e compusemos juntos toda a sequência da exuberância das plantas da caatinga, com cada ator incorporado em sua planta que trazia sua musicalidade própria para ser cantada por ele ou em coro. Depois de meses cantando juntos tínhamos atingido uma intimidade musical que permitiu essa explosão de criação coletiva de cantos de primavera.

Seguimos com O Homem I, onde o coro atua cantando o tempo todo –mesmo nas pausas musicais. Canções que compusemos em sua maioria no calor dos ensaios.

Quando iniciamos o processo do espetáculo seguinte, ainda com o anterior em cartaz, sentíamo-nos esgotados em nossas possibilidades musicais. Resolvemos então encomendar música a compositores amigos do teatro. Realizamos leituras de mapeamento musical do texto, e de acordo com a cara da cena indicada pelo diretor, pensávamos em qual compositor se encaixaria melhor para cada momento. Foi assim que passamos trechos do texto para vários compositores, e as criações foram chegando. Adriana Calcanhotto, Sérgio Ricardo, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Jards Macalé, Lirinha, Júnio Barreto enviaram suas composições, além de Chico César, Péricles Cavalcanti e José Miguel Wisnik, que já haviam composto também para as partes anteriores. Cada canção que chegava era aprendida e cantada em coro, e muitas vezes ditava o caminho de criação da cena. Outras compusemos inspirados pelo estilo de compositores que foram simpáticos ao convite mas que que por motivos diversos não puderam compor, como Caetano Veloso, Marina Lima e Arrigo Barnabé.

Seguimos assim nos espetáculos A Luta I e II, e contamos ainda com composições de Arthur Nestrovski, Celso Sim, e continuamos criando nos ensaios. Nessa altura já formávamos uma ala de compositores com Marcelo Pellegrini, Karina Buhr, Adriano Salhab, Adriana Capparelli, Mariana de Moraes, Camila Mota, Otávio Ortega e eu mesma, além dos atores, que sempre colaboravam ora com ideias interessantes, ora com a contribuição milionária de todos os erros, muitas vezes mais inseridos no conteúdo da cena do que a criação original.

 

Coro Bixigão

Somado ao coro de atores trabalhamos também durante todo o processo d’Os Sertões com o coro do Movimento Bixigão, grupo de crianças e adolescentes do bairro do Bexiga, moradores vizinhos ao teatro. Além da contracenação nos espetáculos, construímos uma comunicação imediata através da música. Tanto nas cantadas em coro nas peças, como nas canções de aquecimento, que nos uniam num repertório comum, fazendo-nos parte de um grupo com uma mesma e própria linguagem. Desenvolvemos paralelamente o projeto Revista Bixiga Oficina do Samba a partir dos sambas do Bairro do Bexiga – os do Oficina inclusive -, o que concretizou em música a ligação com o entorno do teatro, com a Escola de Samba Vai Vai, com a história musical do bairro e a ligação com o processo de pesquisa e criação d’Os Sertões, numa busca coletiva e individual das próprias origens, chegando numa identidade comum de sertanejos urbanos da periferia do centro, o tipo brasileiro sem tipo.

 

MOMENTOS DE PROCESSOS DO CORO PROTAGONISTA

Zagreb, Croácia, e Teatro Oficina São Paulo, 2009. Leitura encenada d’O Banquete de Platão – pra levantar com uma pequena equipe do Oficina e atores e músicos croatas, depois montagem em São Paulo. Importamos um canto eslavo de fertilidade e renascimento, Oj Dodole, cantado lá por um coro feminino. Os ensaios em São Paulo começaram com o aprendizado desta canção, adaptando para um coro misto. Idioma croata cujo som nos remetia a línguas indígenas daqui, abaixo da linha do equador.

São Paulo, abril 2011. Montagem da Macumba Antropófaga, a partir do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. Começamos os ensaios com o aprendizado dos coros do choro no. 10 e de Mandú Çárárá de Villa Lobos. Divisão de vozes difícil para um grupo pequeno de atores e quatro músicos. Adaptação do arranjo de orquestra para a banda, com ênfase no ritmo. Sem quórum suficiente pra todas as vozes necessárias, adaptações.

Setembro 2012. Acordes. Transcriação da obra de Paul Hindemith e Bertolt Brecht. Apresentando Macumba Antropófaga no interior de São Paulo e ensaiando Acordes no Oficina entre uma cidade e outra. Divisão de vozes, intervalos difíceis. Música alemã, contagens retas, ritmo quase marcial. Adaptação do texto em português a partir do alemão, encaixando na partitura pra quatro e mais vozes. A cada noite após o trabalho árduo de tirar a música do papel e conseguir cantar em coro, enviávamos pros diretores que detestavam tudo, achando a música muito dura e cantada sem interpretação. Verdade. Nos concentrávamos tanto pra acertar a nota que o sentido não aparecia. Ainda. Isso viria com a repetição e ensaios. Mas como convencer o diretor?

Setembro 2013. Cacilda!!! Como em muitos processos, dificuldade inicial de juntar as pessoas. Buscar união do coro com um novo desafio. Executar partituras difíceis, divisão de muitas vozes, intervalos estranhos. Decidimos começar os ensaios com o Pica Pau – choro n.3 de Villa Lobos.

O processo de criação musical já tem uma cara, quase um método, desenvolvido ao longo de anos de trabalho, longos ensaios dedicados muitas vezes à criação da música de uma única cena, que depois pode vir a ser descartada. O não método. Um dos músicos traz uma ideia musical, uma canção. Que vai sendo modificada a partir da cena, do ator/atriz que vai cantar, do coro que canta junto, do Zé que canta a cada momento uma melodia e ritmo diferentes, mas dando a direção do que quer como interpretação. É nesse ponto que entramos sempre no mesmo conflito. Eu tentando definir melodia e ritmo, para que possam ser apreendidos e cantados. Principalmente se for em coro. Por um coro de não músicos, que não tem a destreza de improvisar ou inventar vozes harmônicas, ou executar um ritmo comum a partir da comunicação do olhar, ou feeling comum. A necessidade de repetir. E a direção que diz que a interpretação, o sentido do que se canta é que vai trazer a afinação e a necessidade do ritmo. E eu penso: um ator precisa do texto pra daí experimentar interpretações, criar a partir da direção. Um cantor ator precisa da melodia, das notas musicais que serão seu texto, e ao menos da sugestão do ritmo. E lá se vão minutos preciosos do ensaio no embate do ovo ou da galinha, notas musicais/melodia e ritmo definidos versus incorporação/interpretação. Apolo e/ou Dionisio?

E a certeza de que canções criadas assim, no calor do ensaio, com a presença e energia de todos, e pequenas contribuições melódicas de um ator mais musical, ou mesmo do ‘erro’ de muitos, resultam em canções totalmente incorporadas ao texto, conteúdo e cena, e apropriadas em cada nota e tempo por todos os atuadores presentes. O prazer de cantar isso em coro a cada apresentação, e mesmo a cada ensaio é contagiante. É esse contágio que vai vencer o desafio de excitar o ânimo dos ouvintes.

Outubro 2013

os cinco sentidos

a internet.  as palavras.  a música.  os sentidos.

tentando decifrar o que é um, onde um entra no outro, porque umas palavras dão vontade de cantar, porque outras continuam no papel, os sentidos mudam se ouvidos ou lidos, os outros sentidos, a rede, o virtual, onipresente, onipotente, o tudo, o nada, deus.

a letra toda era assim, daí uma parte ficou de fora pra fazer a música, não sei se porque ia ficar grande demais, ou o assunto virou outro, a letra assim já é grande.  tenho curiosidade de saber se quem ouve ouve a letra.

a letra:

os cinco sentidos
… ou os quatro elementos
… ou o dia em que eu acabei não caindo na rede

deu vontade de entrar
de falar pela Internet
te ouvir sem te encontrar

quem sabe assim eu descubro teu segredo
conto tudo sem ter medo
cego medo de errar

nome secreto
endereço incompleto
sem passado e sem lugar

liberdade pra sumir, de virar outra pessoa
nessa madrugada à toa
só no impulso onda no ar

um novo eu personagem inusitado
sem ter certo nem errado
só vontade de inventar

um novo eu criatura imaginada
sem defeito imaculada
pra até eu me apaixonar

um novo eu o grotesco e desvalido
desprezado por cupido
eu escondido o eu vulgar

o velho eu o eu eu mesmanick name
de alegria e de tristeza
guerra jogo mágoa e bar

todos procuram e não a esmo
é só você, é, você mesmo
que eles querem encontrar

atrás de um nome nick name
jogo de amor um vídeo game
apaixonei-me sem notar

 

ah, não….

de virtual já chega deus que não me amola
deus do sol da carambola
deus da lua o paladar

de virtual já chega deus que nem me encosta
deus tesão que você gosta
deus de mãos pra me pegar

de virtual já chega deus e o big bang
deus explosão y-lang y-lang
deus essência de cheirar

de virtual já chega deus que esconde esconde
deus que está só não sei onde
deus que nem quer mas vai me olhar

de virtual já chega deus o esquecido
deus do som do meu ouvido
deus da música pra cantar

 

a música:

Nick Name (Letícia Coura)

Letícia Coura – voz e violão
Adriana Capparelli – voz
Fabio Tagliaferri – viola de arco
Daniel Nakamura – guitarra
Nana Carneiro da Cunha – violoncelo
Guilherme Kastrup – arranjo percussão

r e v i s t a do samba no Paquistão – e o Rasta-pé do cercadinho

Lahore, Paquistão

World Performing Arts Festival, jardins do príncipe Shah Jehan e ´cercadinho´ pras mulheres

na loja:
– quero uma roupa feminina, gostei daquela, laranja.
– tem também esta azul, aquela é seda do norte do …
– eu quero só uma mesmo, obrigado.
– só uma?
– é, eu só tenho uma mulher.
– que pobreza…

E assim meu parceiro Vítor da Trindade, percussionista, comprou o presente pra sua única esposa. Com ele e o violonista Beto Bianchi, formamos em 99 o Revista do Samba, pra tocar os sambas que mais gostávamos misturados às nossas aventuras pelo gênero. Mal sabíamos até onde iríamos por conta disso. Pela Internet, o convite. Lahore, Paquistão, pra participar do World Performing Arts Festival.

Lahore, cidade com mais de 2000 anos de idade, capital da província de Punjab, fronteira com a Índia e capital cultural do Paquistão, onde nasceu o príncipe Shah Jehan, que construiu pra sua amada e pro mundo o Taj Mahal. Em São Paulo nem um guia para o país que talvez esconda (escondia mesmo, esse texto foi escrito em 2008) Osama Bin Laden. Juntei informações da Internet às fornecidas pelo festival, e soltei a imaginação.

Depois de 20 horas de vôo divididas por uma espera de 10 horas no aeroporto de Londres, chegamos pela manhã em Islamabad, capital do Paquistão, onde um simpático funcionário da embaixada brasileira nos recebeu no aeroporto pequeno mas com lugar atapetado garantido e cercado pra quem quiser rezar. Seguimos de carro para Lahore, a 380 km dali. Pela janela horizontes desertos sem fim, um chão arenoso em tons de bege e cinza, colorido de tempos em tempos pelas roupas multicores e esvoaçantes de trabalhadores do campo ou andarilhos indo de um nada pra outro. E pelos ônibus e caminhões, também coloridos, cheios de desenhos, bordas trabalhadas, lotados de coisa e de gente.

Nas paradas o motorista nos ia apontando integrantes do Taliban, identificados pelas roupas e comprimento da barba. Aos poucos saberia reconhecê-los pelo olhar. Uma mistura de medo e desprezo: mulher e ainda sem véu…

A chegada se deu por uma periferia sem fim, até chegar na parte rica da cidade, mostrando uma disparidade que bem conhecemos entre uma classe alta, ocidentalizada ou não, e o ´resto´. Um trânsito que pode ser comparado ao dobro do volume de carros de São Paulo, mas com os motoristas do Rio de Janeiro… motos carregando famílias inteiras, um homem, uma ou duas mulheres (sempre sentadas de lado), o bebê e as crianças. Algumas carroças puxadas por cavalos e muitos táxis triciclos, com a audácia dos nossos motoboys. E todos andando ao contrário, que lá foi colônia inglesa, quando tudo ainda era a Índia. O Paquistão passou a existir como país de maioria absoluta muçulmana com o fim do Império Britânico na região em 1947.

O festival

Dez dias e noites de música, teatro, teatro de bonecos, cinema e dança. Artistas de quarenta países diferentes, de todos os continentes. Sete salas-tenda para dança, teatro e teatro de bonecos, três espaços para cinema e teatro, e um palco arena ao ar livre para os shows musicais, com capacidade para quatro mil pessoas. O World Performing Arts Festival acontece em Lahore desde 1992, quando começou como um festival de Teatro de Bonecos, organizado pelo Rafi Peer Theatre Workshop, da tradicional família de artistas Peerzada. É hoje o maior festival do sudeste da Ásia, e um dos principais eventos a promover a troca cultural e artística entre Oriente e Ocidente.

O convite é feito para que os artistas se apresentem, mas também para que permaneçam durante todo o evento. Assim vivemos intensamente em Lahore os dez dias do festival, e pudemos assistir espetáculos de linguagens diversas, tradicionais e contemporâneas, e ainda conhecer os maiores nomes da música paquistanesa. Três noites foram dedicadas à música local: a Mystic Soul Night, para a música de inspiração sufi, a mística islâmica; Ghazal Night, dedicada aos poetas, inesquecível pelo silêncio e concentração do público, e o encerramento do festival, a Classic Night, com representantes das mais importantes famílias de forte tradição musical no país – porque o conhecimento musical no Paquistão é transmitido pelas famílias, e pelo nome do artista já identificamos seu estilo.

O Samba e o Tango

Em um dos shows tivemos a participação especial de um grupo formado por argentinos e espanhóis que vivem em Barcelona, Conexion Tango. Tocamos juntos “O Samba e o Tango”, com um final apoteótico numa mistura bem-humorada dos ritmos. Mistura que agradou ao nosso embaixador que acabava de chegar da Índia (inimiga política do país), e considerou pertinente o exemplo não só de tolerância mas de amizade entre dois povos vizinhos. Desde que não se fale em futebol…

A dançarina argentina no seu vestido colado ao corpo e pernas descobertas dançando grudada em seu parceiro chileno, num país onde as mulheres andam um passo atrás dos homens, cabeças cobertas e roupas que não deixam transparecer uma única curva, e não dançam em público; o bailarino que dançou a dança de Shiva, mas quase não se apresenta mais devido à onda conservadora do país e o preconceito com as tradições indianas; os iranianos e as flores para as bailarinas americanas que apresentaram uma dança típica de seu país mas que é hoje proibida pelo governo fundamentalista do Irã; a bomba que explodiu no ponto do ônibus entre o hotel e o festival, a Xuxa ucraniana, a banda paquistanesa/americana de punk rock, os tapetes de tantas cores e desenhos, a amabilidade dos paquistaneses, as conversas sobre Deus, os jogos de críquete nos parques, o estádio de hockey, os talibans da estrada.

A cabeça rodando, entro no quarto do hotel, e pra tentar dormir ligo a televisão. MTV da China, filmes de Bollywood, musicais indianos, noticiários em árabe, ou urdu e punjabi, idiomas paquistaneses, muitos homens barbados, tento distinguir se é uma rede pirata falando do próximo ataque terrorista, ou apenas o jornal da noite. Melhor tentar as ovelhas.

Baco

Folga. Um passeio à tarde pelo mercado, cheio e animadíssimo, artigos de mil e uma noites, todo o imaginário de Ali Babá, Alladin e Sherazade, ali ao alcance dos olhos, das mãos, e de algumas rúpias. E para escolher com calma a melhor combinação de cores de véus, écharpes e roupas de seda, ou proveniência do tapete, chá de menta. Pra brindar à vida entramos no restaurante de um hotel cinco estrelas, e perguntamos logo ao garçom que vinho ele teria para nos oferecer – haviam nos indicado que em hotéis assim teríamos acesso a hábitos ocidentais. Ele ficou branco, e olhando para os lados e falando baixo, disse-nos que ali não serviam bebidas alcoólicas, explicando, são todos muçulmanos, seria uma afronta beber na presença deles. E num tom mais baixo ainda, se vocês tiverem sua própria garrafa, podem tentar conseguir um quarto para bebê-la… Ele só não nos indicou onde poderíamos encontrar a tal garrafa, então desistimos da comemoração e voltamos ao festival.

Educação sexual no museu e o rasta-pé do cercadinho

Lahore é uma metrópole, aproximadamente 10 milhões de habitantes, com grandes jardins e monumentos erguidos na época áurea da cidade, sob o Império Mongol, que durou do século XVI ao XIX. Destaque para o Shalimar Garden, terminado durante o Império de Shan Jehan, o forte e as muralhas da cidade. É uma pena que como não muçulmanos não possamos entrar nas mesquitas, mas pode-se passear pelos jardins, pátios e corredores que as cercam. A mesquita Badshahi é a maior de arquitetura Mongol do país, finalizada em 1674. Andar descalça por ela, ouvindo o canto que chama para uma das orações do dia ajuda a compreender a religiosidade do lugar. O museu da cidade, o Lahore Museum, apesar de ser um dos maiores do sul da Ásia não é muito grande em comparação aos museus europeus, mas apresenta pinturas e esculturas greco-budistas, peças tibetanas, instrumentos musicais, além de uma detalhada exposição de fotos da fundação do país.

A visita ao museu foi especial graças a um garoto de dezessete anos que passava suas tardes ali. Começou me explicando cada peça, e foi então me perguntando de onde eu era, se era casada, o que fazia ali. Nisso entraram alguns barbudos, e ele me fez notar que todas as mulheres naquele momento cobriram as cabeças e mesmo os rostos, e me encorajou a fazer o mesmo. Perguntei porque e ele me explicou que aqueles eram religiosos, e que era um sinal de respeito eu me cobrir. Perguntei porque novamente, e na seqüência acabei respondendo a tantas perguntas, praticamente uma aula intensiva de educação sexual, movida por uma compaixão instantânea por aquele garoto no auge de sua juventude, sem nenhuma informação sobre o sexo oposto e uma solidão de chorar.

Aliás é de se reparar a grande intimidade física existente entre os homens, em contraposição ao ostensivo recato imposto às mulheres.

Como estrangeira escapei um pouco dessa imposição, mas tive uma boa demonstração da condição feminina na vida cotidiana da cidade. Fomos a uma cerimônia sufi, em companhia de um sociólogo francês, um guia amigo paquistanês e o embaixador brasileiro. Quinta-feira à noite, bairro afastado. Uma árvore imensa, e sob ela uma pequena multidão sentada em roda no chão, acocorada nos galhos das árvores e pelos degraus que davam no mausoléu de um poeta. Dois Ogans tocando dhols, tambores enormes pendurados no corpo, e no meio homens em transe rodando sem parar, alguns com impressionantes movimentos frenéticos de cabeça, que pareciam querer desenroscar do pescoço. Encontramos um lugar na roda, e imediatamente me fizeram sinal pra não sentar ali, apontando-me um cercadinho onde todos deixavam os sapatos. Obedeci. Não foi exatamente amigável a maneira como me indicaram o lugar. Sentada sozinha, literalmente cercada por uma tela de arame, constatei que eu era a única mulher ali, e o fato de ter coberto a cabeça com um véu não os fez muito mais simpáticos à minha presença. Acabada a cerimônia fomos visitar o mausoléu do poeta, e de novo fui barrada na porta, e também não ganhei o belo colar de flores reservado aos visitantes – homens. Fui então até o pátio onde descobri outras mulheres, sob uma outra árvore centenária enorme, cheia de papeizinhos com pedidos e agradecimentos. Havia uma calma especial ali, e o guia paquistanês veio me fazer companhia. Mas a sensação desagradável da segregação não saiu de mim. Só um ano depois, e com o auxílio luxuoso do humor, vomitei essa experiência na forma transformadora de um samba. O Rasta-pé do Cercadinho, minha singela vingança, quem sabe um grão de areia no deserto das lutas pelos direitos das mulheres…

Muitas contradições num país que quase elegeu uma mulher pra Presidente (Benazir Bhutto, assassinada no final de 2007), que admite cada vez mais mulheres nas universidades, mas que ainda permite por lei a poligamia para os homens. Uma música belíssima e poemas de encontro com o amante divino, uma religiosidade que permeia todos os detalhes cotidianos, mas a constante e crescente pressão de grupos fundamentalistas. O amor e ódio em relação à cultura ocidental.

Depois de tantas aventuras, tanta informação e troca entre universos tão ricos quanto distintos, fica a certeza de que a arte, com sua liberdade infinita, é o caminho mais curto e eficaz para a comunicação entre as pessoas. Principal acontecimento cultural da cidade, quiçá do país, o World Performing Arts Festival realiza sua imensa contribuição ao esforço de compreensão e assimilação das diferenças, e mais que tolerância, promove a curiosidade e o interesse pela diversidade cultural, através do enriquecedor encontro de artistas. E se é que a vida imita mesmo a arte, então temos alguma esperança.

o que ouvir:

família Ali Khan

. Nusrat Fateh Ali Khan – considerado maior cantor paquistanês de Qawwali, forma musical nascida do encontro desde o século XII entre as tradições poéticas e musicais de monges sufistas vindos da Pérsia e a devoção musical de populações locais.
. Sain Zahoor – cantor de origem rural da região de Punjab, cresceu cantando em santuários sufi, e é hoje um dos principais divulgadores de poetas sufi e da música tradicional paquistanesa.

cantoras

. Reshman – natural de família cigana do Rajastão, cantou na infância em santuários Sindh, e é hoje uma das cantoras mais populares do país, tendo gravado muito para filmes tanto paquistaneses quanto indianos.
. Tina Sani – cantora Ghazal também bastante popular, de tradicional estilo Punjabi.
. Zarsanga – também de família cigana, conhecida como a Rainha da Música Pashto.

onde ir:

Shalimar Garden
Badshahi Mosque
Lahore Museum

World Performing Arts Festival
todo ano, mês de novembro
Complexo Cultural Al Amrah

 

 

revista do samba e a Mesquita Badshahi

trio Revista do Samba no pátio da Mesquita Badshahi – Lahore, Paquistão

  • esse texto foi escrito para a revista Lugar, da Folha de S.Paulo – publicado em dezembro 2008.  e fomos lá tocar no World Performing Arts Festival  em 2006.

TIO DOUGLAS

Eduleia leite da fiinha

desenho no texto de Mystérios Gozosos – Eduleia – Teatro Oficina 2016

Estavam novamente no cinema. Era dos poucos lugares em que ele podia ficar com ela em público sem ser incomodado. E em que ela acreditava ir para se divertirem, e quem sabe até ele não tinha, assim, uma preocupação cultural em relação a ela? É claro que os filmes sempre tinham histórias com trepadas dos atores principais. Mas também, qual filme atual que não tem “cenas de sexo”?, ele dizia. E ela gostava de vê-las.

Nesse dia especialmente sentia-se animada, estava feliz porque seu colega a havia chamado de gostosa pra todo mundo ouvir. Aquilo custou três dias de suspensão, o orientador não achou muito educativo pré-adolescentes -era assim que os chamavam- de onze, doze anos, trocando carícias obscenas durante as aulas. Não estava muito triste em perder as matérias, mas não gostava muito de não ter onde ir durante o dia, e em casa sempre era obrigada a obedecer ordens. E não gostava também do jeito que ele a tratava na presença da mulher. E ela, tia Dolores (ou dona Dolores, dependendo do humor não gostava que a chamasse de tia), vinha maltratando-a muito nos últimos meses.

E o filme já havia começado, mas ela não entendia muito bem o que se passava. A imagem era ruim, os atores apareciam sempre sem cabeça, e a cor fazia com que se lembrasse das fotos de criança que guardava trancadas no armário. Nas fotos ela parecia tão feliz, com sua mãe carregando-a nos braços e enchendo-a de beijos. E ainda por cima todos falavam tão depressa, que ela não conseguia acompanhar o que diziam pelas legendas. Língua esquisita, deve ser espanhol. Gostava mais quando os atores falavam inglês. Lembrava do Michael Jackson.

Ele já havia começado como de costume. Pegava a mão dela e fazia com que segurasse naquela coisa, que a essas alturas esperava dura já pra fora da calça. Como ele parecia gostar daquilo… quer dizer, às vezes não sabia muito bem se ele gostava mesmo, pois era tudo tão rápido. E hoje ele parecia ainda nervoso. Não seria por causa da suspensão, pois nem lhe contara ainda… Mas à medida que o filme ia passando -parecia não haver mesmo história, ou era ela que não entendia-, lembrava do Marquinho, o colega, e quanto mais se lembrava dele parecia quase bom fazer o que fazia. Pegava naquele pau duro, e especialmente naquele dia sentia a buceta esquentar, doer até dentro da calcinha justa. Engraçado que das outras vezes não sentia exatamente prazer em ver aquele homem, que ela respeitava e até temia um pouco, se esfregando na cadeira do cinema e por fim soltando aquela coisa branca em cima dela. Tinha vontade de perguntar o porquê daquilo, mas tinha vergonha. Nunca conversavam, e ela achava que este não deveria ser o primeiro assunto. Sentia que por algum motivo aquilo deveria permanecer um segredo entre eles.

Mas ele estava realmente nervoso. Saíram do cinema e foram tomar um sorvete. Oba!! Antes nunca tinham ido. As coisas estavam melhorando. Sentia-se até um pouco culpada pela suspensão. Poxa, eles eram tão legais com ela e era assim que retribuía. E no meio do sorvete -ela pediu um duplo, bem grande – ele foi pra cima dela, lambia o seu sorvete, começou a beijá-la como no filme. Com força, ele enfiava a língua dentro da sua boca, misturada com o sorvete, pegava em seus cabelos, se esfregava nela, apertava com os dedos o bico dos seios que começavam a despontar sob a camiseta.   E agora, meu Deus!? Ela não sabia o que fazer, o pessoal da sorveteria olhando meio de lado, aquele sessentão meio animado demais, com aquela menina que parecia sua neta. Levou-a dali e dentro do carro começou a falar de um jeito que ela não conhecia, muito rápido. Ivetinha (era assim que ele a chamava quando estavam sozinhos), nós vamos nos mudar, vamos morar só eu e você, já aluguei uma casa na praia, você não vai mais precisar estudar, nem aguentar sua tia lhe dando ordens nem olhando torto pra você. Agora você vai ser a dona da casa, e tudo vai ser do jeito que você quiser. Nós vamos almoçar hambúrguer com batata frita e coca-cola todos os dias, com ovos nevados de sobremesa, você vai poder escutar música bem alto e ver todos os programas que quiser na televisão!… É, isso mesmo, nós vamos agora. Ele babava.

Nem passaram em casa. Ela ficou um pouco assustada com a ideia, mas logo se acostumou. A estrada era bonita, toda rodeada de árvores e casinhas. Talvez se esquecesse rápido de tia Dolores. Mas com certeza teria muita saudade do Marquinho. Será que o veria de novo?

TIA CIATA NA FIESP

tia Ciata abriu o seu terreiro e garantiu o samba frente à repressão

*tia Ciata abriu o seu terreiro e garantiu o samba frente à repressão 

 

O pior cego é aquele que não quer ver.

Voltando de mais uma manifestação contra o golpe, passei em frente à Fiesp. A “nossa” não tinha muita gente, pelo menos não muita gente em proporção à quantidade de policiais nos impedindo até de passar pelo vão do Masp.

Com certo medo do que está por vir, olhando pro imenso carro de som parado em frente à Fiesp com aqueles bonecos infláveis horrendos – hoje o pato não foi, provavelmente pros patrocinadores da ‘manifestação’ não terem que pagar direito autoral -, vejo tia Ciata.

Fiquei pensando se os músicos que estavam tocando no caminhão de som da Fiesp tinham visto aquela homenagem à tia Ciata bem ali em frente. Aliás a Paulista inteira está homenageando o centenário dessa música que faz o Brasil conhecido e amado em boa parte do mundo. Muito mais – e ainda bem! – do que o narigudo ‘dono’ da Fiesp ou qualquer político brasileiro fora o Lula.

Eles estavam tocando no carro um samba ridicularizando o PT. A parte que ouvi eram uns versos criticando a ciclovia do Haddad, dizendo que estavam vazias e que não tinha ninguém pra pedalar. Olhei pra pista, e naquele exato momento uns dez ciclistas desviavam dos ‘manifestantes’ que a ocupavam, obrigando-os a sair da ciclovia. Se o cantor não conseguiu – ou não quis – ver esses ciclistas, a tia Ciata é que pelo jeito ele não vai ver. Será que ela está rindo dele, pedindo perdão aos deuses do samba por aqueles músicos não saberem o que estão fazendo, por não conseguirem vê-la ali resistindo a tudo, dando esperança a quem passa.. ? .. ou estará triste em ver a criação de seu terreiro tão profanada, cantada pra defender os interesses da casa grande ainda por cima numa manifestação fake?

Não vi como era a banda, mas fiquei pensando se são cegos que não querem ver ou apenas não conseguem. Por ignorância, preguiça ou desinteresse concreto pela trajetória da música que eles estão ali usando de uma forma tão contrária à sua história.

E a tia Ciata só olhando. A força que ela representa ali, o símbolo da invenção e prática prazerosa do samba, uma mulher, como a nossa presidenta eleita, uma mulher como tantas que estão agora lutando pela democracia, contra essa direita machista, misógina, uma mulher como as que levaram flores pra presidenta, como as que foram detidas por se manifestarem contra o golpe no voo com deputados golpistas.

Será que ela está pensando no quanto o samba foi proibido, por ser coisa de ‘preto, pobre, vagabundo’ ? Ou lembrando do sucesso dos Oito Batutas em Paris, que não podiam tocar nos cinemas do Rio porque eram pretos na maioria? Vendo ali de cima o quanto demoramos pra ver que o Brasil é, sim um país racista, e que ao menos nesses últimos anos de governo (mais) popular avançamos – com muito ainda a avançar – na direção de um país mais justo? E que todas essas conquistas estão a ponto de descer pelo ralo pra ter que começar tudo de novo?

Ah, tia Ciata . .. . pelo menos te vi ali.  Porque o Brasil criou o samba, e vai conseguir sair dessa ! !

 

*foto do banner na av. Paulista em SP, em frente ao prédio da Fiesp, homenageando tia Ciata.

CANTAR

cantar lestranj

Ver ouvir alguém cantando.

Há os que sabem ouvir.

Há os que soltam a voz, os que prendem, os que cantam com a cabeça, com o corpo, com a buceta, com o pau, com o cu, os que pisam no chão, os que saem do chão, os que fazem uma boca pra cantar, os que cantam como falam, os que inventam uma voz cantora, os que cantam as palavras, os que cantam as notas, os que cantam com a harmonia, os que vão pelo ritmo, os que cantam sozinhos, os que cantam junto.

Os que cantam forte e se fazem ouvir. Os que cantam baixo e criam silêncios. A voz agradável, a voz suave, doce, a sensual, a cheia de nervos, a cheia de ar, a resfolegante, a voz que mascara, a que revela. A voz aguda, a fina, a estridente, a pontuda, a firme, a gorda, a cheia, a grave, a profunda. A que esquenta, a que irrita, a que machuca o ouvido, a que não chega até ele.

A orgia de cantar junto, sentir suas ondas vibrando, entrando e saindo de si e dos outros que cantam também e emitem ondas que batem, que entram e saem de todos, vibram juntas e separadas, promiscuidade de sons, de ares, hálitos, calores, alturas, intensidades, espasmos, êxtases.

Os que arriscam sem medo graves e agudos, independente da capacidade ou experiência da voz em seguir o ímpeto. Os que podem ter grande extensão mas não se arriscam. E mostram mais. Os que não abrem a boca, os que cantam antes de ouvir, os que disparam no ritmo, os que ficam pra trás, os que estão aqui, os que não, os que cantam com as mãos, com os olhos, com o coração. Os que tensionam o braço, o pescoço, a garganta, a boca. Os que cantam com alegria, medo ou dor.

Mas todos, todos, se abrem, se jogam, se mostram, e depois de cantar por algumas horas estão mais bonitos.

 

*ilustração de Lestranj Oão

**texto escrito no fim do primeiro mês dos trabalhos com a Universidade Antropófaga – cadernos de atuação 2015.

O mais que perfeito

*conto do livro Então é isso?!  que há de existir

 

O MAIS QUE PERFEITO  

(pétala de rosa)

 

Andava pensando porque não fodera mais na vida.

O mais que perfeito. Seu marido, o mais que perfeito. Um homem exemplar, quarenta e cinco anos juntos, três filhos, sete netos. Um mau negócio do filho, que confiara num sócio muito honesto, ah, meu pai que dizia se alguém diz de outro alguém que fulano é muito honesto, pode desconfiar. Ou se é honesto ou não é. E ele confiara. Se fodera.

Mas vai entender os caminhos que a vida nos apresenta. É só saber ver, aprendera naqueles livros de autoajuda que não ajudaram muito, e até ocuparam um tempo que pena que não usara para outros fins, mas o presente é o que interessa, o tempo perfeito já fora, as pessoas teimam em dizer que é a juventude o mais que perfeito tempo, mas pra ela o mais que perfeito já era. O negócio é agora.

Perderam tudo. Até o sítio foi na falência do filho, e agora pra não perder o apartamento onde moram ela voltou a trabalhar. É, sessenta e nove anos e daí, sentia-se bem e animada. Seus anos de colégio de freira estudando francês finalmente lhe seriam úteis. Conhecera nas aulas de yoga um rapaz muito simpático que falava sempre com ela, tinham alguns autores preferidos comuns, falavam de Paris, da neve, histórias de reis, museus, que ela conhecera em viagens de lua de mel, bodas de papel, prata, e ele não, nunca fora, mas conhecia bem dos livros que lera. Ele começou a tirar dúvidas com ela, contar dos textos novos, dublagem de filmes, documentários, palestras. Ela comentara com ele que outrora ensinara francês, ele perguntou se ela fazia traduções. Era a oportunidade.

Até bula de remédio traduziu. Aos poucos ele foi lhe passando textos mais complexos. Artigos de revistas femininas, documentos de estrangeiros para imigração, currículos para bolsas de estudo, narração de documentários, diálogos de filmes. Até que um dia ele chegou com um livrinho pequeno, velhinho, que encontrara por acaso em um sebo. Entregou a ela e pediu que lesse. Que dissesse depois o que achara. Se topava traduzir.

Nos dicionários que tinha em casa não encontrava nada daquilo. Já há alguns anos frequentava uma lan house para terceira idade, com monitores que orientavam os velhos que não se davam muito bem com o mundo virtual. Ali encontraria o que procurava. Dicionários virtuais.

Sites pornográficos ali eram discretamente repelidos, mas ninguém suspeitara do conteúdo do que andava buscando. No início era o verbo. Fora. E foi assim que foi descobrindo palavras que não conhecia, que significavam atos que não praticara, talvez porque não havia palavras que os significassem em português? Até o latim das missas de outrora era mais rico em vocabulários libertinos.

A primeira palavra pela qual se apaixonou, e na sequência pelo que significava a palavra, foi godemichê. Em algum lugar encontrou consolo, mas não significava o que queria dizer. Vibrador muito menos, já que o godemichê tradicional não vibrava. E outra, não precisava de consolo, queria era novas ideias. Ainda tinha bastante força e ritmo nas mãos, preferia o sistema biomecânico, ou seja, com as próprias mãos, sentia mais vigor. E era um ótimo exercício para os braços. E o significado, dá-me alegria, dá-me prazer, me faz gozar, tudo isso de bom e ainda estava aprendendo latim! Sim, vinha do latim, godemichet, rejouis-moi, não se aguentou, contou pro marido, que já observara a mudança na esposa, cada vez mais animada, acordava dizendo que tivera um sonho bom, andara descobrindo coisas, aprendendo…

Descobrira uma expressão, e não achava paralelo em português. Sentiu-se novamente uma ignorante no assunto, quarenta e cinco anos de casada e o marido não era assim um especialista nem em expressões libertinas francesas e infelizmente muito menos nos atos que elas podiam descrever. Faire feuille de rose, que poético, fazer pétala de rosa, só de brincadeira pedira a seu marido à noite, para fazer-lhe um pouco de pétala de rosa. Ele não entendeu, mas deu-lhe um beijo de borboleta muito carinhoso, de que ela sempre gostara muito quando mais jovem, um piscar de olhos sobre a bochecha, chegara até o pescoço já com uma expressão quase safada, J. era mesmo um romântico. Como explicar a ele que estava descobrindo novas expressões, e que esta poética fazer pétala de rosa era nada menos que dar ou receber uma lambida no cu? Perguntou às amigas da aula de pilates, mas nenhuma sabia o que era, e ela fingiu ainda não saber também. Passou então a imaginar quantas pessoas fariam pétala de rosa em seu prédio. O casal vizinho? Ouvira os gritos da mulher, uma cinquentona gorda sempre de cara boa, será? Pensou que sim, eles deviam saber fazer muitas coisas sem palavras em português para definir. E o casal de cima, dois homens, esses provavelmente faziam muita pétala de rosa, o nome já significava, casal gay, estavam sempre alegres, animados. Será que só ela e o marido não faziam pétala de rosa?

Estava entusiasmada, aprendera outra. Faire minette. Que gracioso. Foi descobrir em dicionários de gírias francesas do século XVII. Chupar buceta… que interessante, por que não temos uma expressão assim em português? Fazer minete, fazer mimi para os íntimos. Redundante. Apesar de não conhecer muito a prática, tinha certeza que isso sim, muita gente fazia. Será que só não ela e seu marido? J. sempre fora muito respeitador. Ela fora feliz assim com ele, sentia-se preservada das maldades do mundo. Mas agora lendo tudo aquilo não podia evitar de sentir uma certa curiosidade. Se todas aquelas palavras e expressões existiam, é porque deviam dar alegria às pessoas. A exemplo do godemichê. Me dá alegria, prazer, me faz gozar! Sim, ter um godemichê, fazer minete com as amigas? Ou pedir pro marido? A essa altura da vida, qual o problema em experimentar novas práticas? Só os dois em casa, nunca gostara muito de pôquer bisca ou truco, por que não experimentar as novas palavras na prática?

Resolveu tentar.

O marido também se ocupava com algumas aulas grátis na vizinhança, mas separado dela, pra sentir saudades e encontrá-la à noite pro jantar. Se viravam como podiam com o excesso de tempo e a falta de dinheiro.

Comprara um vinho. Gastara quase tudo o que recebera com a última tradução, justamente um conto anônimo francês do século XVII. Ou de agora mesmo, não tinha certeza do alcance da cultura nem do caráter de pesquisador de seu colega de yoga, mas também pouco se importara. O que contava era o conteúdo, a inspiração que dera e, claro, os trocados suficientes para comprar aquela garrafa. Aquelas, eram duas. Sentia-se na Paris seiscentista, ou uma camponesa do sul da França, trabalhando nas vinhas, pisando as uvas, de sol a sol nas plantações, e à noite em festas bárbaras. Foi contando algumas dessas histórias para o marido, já na terceira taça de vinho, resolveram se recostar num canto mais confortável da casa, à luz de velas do jantar, tudo mais bonito, quase rodando, um calor vindo de dentro, do vinho, da pimenta da comida, das velas…

Vão descobrindo prazeres, lugares nunca antes tocados. Tinham tempo! Um belo dia, depois de gloriosos momentos juntos, o godemichê, sucessivas minetes, ela soltou esguichos no rosto do marido. Na hora ficara envergonhada, achou que estava tendo problemas de falta de retenção urinária, foi ao médico. Descobriu que estava começando um novo momento em sua vida, ejaculara! sim, as mulheres ejaculam, esporram, mas ela não conhecia nenhum termo específico pra isso, em português – ao menos em seu círculo de amigas – nunca ouvira falar nada parecido. Ou seja, não existia. Viu que em francês usavam muito o termo descarregar, para ejaculação masculina e feminina, e aquela passou a ser a senha entre ela e o marido. Acho que hoje quero descarregar um pouco… falavam isso na frente dos filhos, netos, de amigos, ninguém entendia ou não percebia mesmo o sorrisinho safado dos dois. Anoitecera. Seria mais uma noite de delícias.

E mais tantas palavras a aprender.

primeiro post

 

canastra4É um convite. Finalmentecanastra4 fiz um site, ou blog. Pra organizar a vida. Já que a cabeça . . .

Andava com dúvidas. A essa altura da vida, querendo entender o que passei fazendo todos esses anos. Como cantora sou ótima atriz, como atriz sou uma boa corifeia, animadora de atuadores e públicos cantores em potencial. Toco cavaquinho, violão, e tento tocar um pouco de piano agora pra na próxima encarnação já chegar um pouco mais preparada. Mas o que gosto mesmo de tocar é percussão, que não sei. Me formei jornalista, que no meio do curso, depois de uma parada de um ano pra viajar de mochila nas costas, me desiludi com o jornalismo, daí fiz publicidade e foi pior ainda, então acabei me formando nos dois, já que comecei a não me ver fazendo nem uma coisa nem a outra pelo resto da vida. Se eu imaginasse que o jornalismo ia virar isso que estamos vendo hoje no Brasil… Mas com curso superior teria direito a cela especial na prisão. É verdade isso? Não precisei usar. Ainda.

Escrevo desde sempre, e apesar de ter estudado inglês por vários anos, acabei falando melhor francês e a sorte da vida me fez íntima porque tradutora – ou vice-versa – de escritores geniais. Vou escrever aqui com uma certa frequência. Quero muito que alguém se interesse e leia. Na contramão desses tempos de agressões pela internet, tenho gostado mais ainda agora de conhecer as pessoas pelo que escrevem. Quero experimentar isso mais direto nas duas mãos. Vou postar coisas que escrevi em outras épocas também, e que saíram aqui e ali, e que ainda estão valendo pra hoje.

Impressões pelo mundo de fora e de dentro, música, teatro, pessoas, lugares.

Organizei também o que venho cantando, compondo, gravando. Com muitos, diferentes e inspiradores parceiros. E como costurei isso com o teatro. As músicas de teatro são mais complicadas de achar, mas um dia vou conseguir organizar isso também.

Então entra aqui, seja bem vindx, comente se quiser.

É uma liberdade muito boa ser o que se é.

E que as deusas e deuses encham de alegrias, saúde, fartura e muuuuuuito amor minhas parceiras na invenção desse meu mundinho virtual. Todo meu amor e meu muito obrigada às antropófagas Brenda Amaral e Maria Bitarello, companheiras de leite das vacas e conversas sobre o cosmos.

*já vou publicar meu segundo post.  meu conto mais recente, desde que entrei de novo nesse mundo da tradução de libertinos.