[:pb]Moléculas de água e mundos de plástico[:]

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foto Chico Castro

 

A partir da informação de que nosso corpo humano é constituído de 60 a 70% de água, me instiga saber como as moléculas de água reagem aos sons (o pesquisador japonês Masaru Emoto inventou um experimento para fotografar cristais de água congelada que haviam ‘ouvido’ sons diversos; as formas encontradas são inúmeras, diversas e impressionantes). Basicamente então, a água expressa como grande parte do nosso corpo reage aos sons. Os outros 30, 40%, pelo andar da indústria alimentícia, devem estar constituídos em boa parte por plástico, já que numa velocidade assustadora tudo o que comemos vem sendo adulterado e acobertado pelo imenso poder financeiro desta mesma indústria. E o plástico é a matéria da vez. Somos água e plástico.

A proposta original da minha segunda pele seria um penetrável de água envolta em plástico e duas caixas de som potentes ao redor. Para qualquer um de nós penetrar, sentir a água e o plástico em volta como uma segunda pele e sentir o som vibrar pelo corpo através da água. O plástico formaria a superfície de contato. Orelhas sensitivas de água e plástico espalhadas por todo o corpo, proporcionando uma outra percepção do som. Ouviríamos então ali as canções dos espetáculos d’Os Sertões que eu havia citado nos textos anteriores.

Como o resultado esperado da proposta segunda pele seria principalmente visual já que a ser fotografado, e não haveria tempo para outras pessoas penetrarem minha instalação, aceitei o som ambiente discreto (que estava acontecendo no teatro) e penetrei eu mesma minha extensão aquo-plástica, e ao invés de me concentrar para tentar sentir o som através da água, ou ampliar minha percepção auditiva vibracional do corpo todo, experimentei um prolongamento do meu corpo em contato com o plástico, a água, e através da luz.
Qual é o limite do meu corpo? Até onde nossos sentidos – audição, visão e tato – estão sub-utilizados, sub-explorados? Como experimentar uma possível ampliação dos sentidos? Como sentir o próprio corpo a partir de elementos externos?

E para fechar com chave de ouro o semestre das Arquiteturas do Corpo, Oswald de Andrade, hoje e sempre: “a alegria dos que não sabem e descobrem.”

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[:pb]a rã do parque da aclimAção[:]

[:pb]Voltando de um exame ultrassom transvaginal passo no parque. Aproveitar que moro perto de um numa cidade como São Paulo. O médico passou o gel e enfiou aquele pau eletrônico com camisinha em mim, saí de lá com fotos dos meus ovários, do útero e outras coisas. Tudo muito asséptico mas mesmo assim me fez lembrar que sou um corpo. E que no geral a gente esquece dele e de tudo que tem dentro.

Me dou um tempo pra meditar o que faltou no parque. Sentei de frente pro lago, por do sol, árvores, pássaros cantando. Estou ali há alguns minutos e um barulho no chão de folhas ao lado. Abro o olho e . . . uma rã !

Deu uns três pulos, passou calmamente na minha frente. Eu imóvel, agora de olhos abertos, observo. Ela parou um pouco à minha direita e ficou imóvel como eu.   De vez em quando os olhos se mexiam. Eu só via o olho direito, aquele olho fora do corpo, mas imaginei que ela mexia os dois ao mesmo tempo. Na verdade poderia ser um sapo, mas acho que era uma rã. Uma sapinha.

Ficamos ali as duas, meditando. Observando. Ela de um verde meio musgo, diferente das folhas do chão. Há quatorze anos frequento esse parque – moro do lado desde então – e nunca tinha visto uma rã ali. E agora estávamos as duas lado a lado em silêncio, meditando, observando o sol se por. Logo pensei nas rãs que tenho comido todo sábado e domingo por volta das seis da tarde. Eu não, Tarsila. Mas eu também. E as falas do Oswald na cabeça “é, eu comi muito, muita gente tua. Tanta gente tua eu tracei que de tanto comer enjoei.” Daí o Murubixaba, “você se empanturrou dos nossos, deixa de prosa, por isso tua carne é gostosa !” E eu ali, do lado da rã, ouvindo isso dela.

É, eu comi muita gente tua. Tanta gente tua eu tracei que de tanto comer, enjoei. Não, eu não enjoei. Só estava um pouco envergonhada ali ao lado dela. E ela tranquila, parecia me perdoar, entender. É a natureza, é isso mesmo. Eu sei, ela dizia.

“Um ser desprovido de razão seu semelhante não come. Como pode um homem comer outro homem?” Uma sapa comer outra sapa? “Somos todos bichos humanos iguais . . . ..”   e a música peça que não sai da cabeça.

Que nobreza essa rã. Me perdoar assim, do nada, e me deixar ficar ao seu lado, as duas observando o lago, a sol – que na peça o sol é a sol -, as árvores, o vento. As pessoas passavam no caminho embaixo, cada uma com seu celular ou seu cachorro. Crianças de bicicleta, patins. Até uma mulher com araras coloridas treinadas. E nós ali, imóveis, eu pensando nas rãs que comia todo final de semana, tentando então aceitar que essa é a lei da vida. Antropofagia. Depois todos viramos terra mesmo, essa aqui bem embaixo das nossas bundas. Aliás como as pernas dela parecem as minhas. Abaporu.

Macumba Antropófaga – Teatro Oficina 2017 – foto Jennifer Glass

E nós ali. O relógio da igreja bateu quatro vezes, quatro horas. Sol de inverno, vento nas folhas, cantos de pássaros, uns três cantos diferentes, não sei qual de qual. Ela imóvel e eu também. Comecei a pedir perdão a ela. Envergonhada de todas as rãs que comi na vida e ao mesmo tempo aceitando, como ela mesma parecia dizer mantendo-se calma ali do lado, a vida é assim mesmo. De vez em quando um barulho de gente me desviava a atenção dela, e quando eu voltava os olhos pra onde ela estava, por alguns segundos não conseguia vê-la. Ela da cor das folhas, da textura do chão, imóvel ali, ela era o chão e as folhas e a terra. Quantas coisas vemos mas não enxergamos. Olhamos mas não distinguimos. Porque não conhecemos ou simplesmente porque não estamos ali. Porque não sabemos ver. Não queremos. Ignorância ou desinteresse. Mas logo eu a via de novo, e continuávamos ali, lado a lado, existindo.

Quando criança passava férias no Rancho Alegre – a alegria é a prova dos nove ! é é é ! ! ! – e os primos saíam à noite com os adultos da região pra caçar rãs e tatus. Apesar de gostar de alguns programas ‘dos meninos’, nesse eu nunca quis ir. Via aqueles paus com a ponta afiada e não conseguia imaginar como alguém pode ser tão cruel pra querer espetar aquilo numa rã indefesa ou num tatu perdido no mato. A caça era à noite, com a lanterna eles os cegavam, e daí conseguiam atacá-los atordoados. Eu achava aquilo um horror mas depois comia a rã bem feliz. Agora pedia perdão também por essas rãs devoradas no passado. Mas a vida é assim mesmo, ela continuava me dizendo e me aceitando em silêncio ali quieta.

Estava ficando tarde, minhas pernas doíam de muito tempo na mesma posição. Meditando, evitando a dor de cabeça. Mais de quarenta anos tendo enxaqueca e de repente eu sabia lidar com ela, não tinha mais. Queria dizer isso pra todo mundo, escrever receitas de como acabar com sua enxaqueca, mas quem iria ouvir ou ler? Tentei umas vezes logo que voltei do meu retiro meditativo mas entendi que não é bem assim. Pensava na enxaqueca que aprendi a conhecer e que não tenho mais, ou tenho mas agora sei contracenar com ela, e me lembrei da sapinha ou sapinho meu amigo lá da praia. Numa das outras encarnações construí uma casa na praia e ficava lá às noites sozinha na casa em construção, e por um bom tempo tive um amigo sapo. Bem pequenininho, vinha ficar comigo à noite na cozinha. Ou ao lado da cadeira de balanço onde ficava olhando as árvores e o mar. A mar, que no teatro é a mar. Ficávamos ali em silêncio. Ele mexia pouco, de vez em quando comia um pernilongo. Até que um dia ele ficou tanto tempo na mesma posição sem comer nenhum pernilongo que estranhei. Fui dar uma cutucada nele e vi que tinha morrido. Enterrei ele ali na frente da casa. Fiquei com saudade nas noites solitárias seguintes, e muito de vez em quando depois, como agora, lembrava dele.

E a sapinha continuava ali. Deu mais uns dois pulos, agora pra frente. Pensei em toda a cena da peça, Tarsila e Oswald vendo as rãs, ouvindo o Pica Pau do Villa Lobos, às vezes cantando um pouco junto, com o absinto ainda descendo quente. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Ela não era minha inimiga. Eu é que era a inimiga dela ali. É, eu comi muito, muita gente tua. Meu corpo tinha gente dela nele, talvez por isso ela se sentia bem ali do meu lado. E eu também do lado dela. Pensando que depois nós duas viraremos terra. Em como será que morrem as outras rãs. As outras, como ela, que não são assassinadas para serem devoradas em peças de teatro, sítios ou restaurantes. Será que elas apenas morrem como o sapinho da praia, ou são capturadas e devoradas por animais maiores? Ela parecia não se importar com nada disso, ainda imóvel ali na minha frente. Só de vez em quando um movimento dos olhos.

Eu começava a pensar que precisava ir embora, que nem tinha almoçado ainda, mas estava tão bom ali do lado dela. Éramos dois seres vivos, mais vivos que as pessoas embaixo com os celulares e os cachorros. Bobagem, ninguém mais vivo que ninguém, mas eu ali com ela entendi os deuses. As deusas. Na verdade não entendi nada, mas vi a vida nela.

Foi difícil me despedir. Ficava olhando pra ela. Desviava o olhar e olhava de novo, até conseguir distingui-la no meio das folhas e do chão da terra, todos os tons de verde e marrom. Ela ali. É que eu não tinha vontade de ir embora. Era bom ficar ali com ela. Fui indo devagar, peguei a bicicleta, ela imóvel, achando tudo muito natural. De repente eu olhava pro mesmo lugar e só via folhas e chão. Daí aguçava o olhar e a via de novo. Fui me despedindo assim. E no caminho de volta ainda encontrei o Pica Pau comendo o mamãozinho dos pássaros. É só saber ver.

Agora sei que minha amiga rã estará lá no parque sempre. Se não ela, muita gente dela. Eu vou saber que elas estão lá. Não estarei mais sozinha no parque no meio de todas aquelas pessoas correndo olhando e falando no celular. E sábado que vem vou comer mais gente tua. E lembrar dela tranquila do meu lado dizendo que a vida é assim mesmo.

(Voltando ao exame. “. . . e nunca soubemos o que é fronteiriço . . .” Roubei o roupão de papel que usei por alguns minutos e que a enfermeira mandou jogar no lixo; achei desperdício. Vai ficar ótimo na peça!)[:]

[:pb]Nota da tradutora d’As Onze Mil Varas, de Apollinaire[:]

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quentinho da gráfica, já nas livrarias.  feliz de traduzir – e ver o livro pronto! – um autor tão livre e inventivo com as ideias e com as palavras, nessa ordem e vice-versa.  uma nota da tradutora pra me explicar, me absolver desse ofício tão desafiador, estimulante e inspirador.  e que dá um trabalho ! . . . . .

 

sobre erotizar a própria linguagem

na orelha do livro, por Contador Borges: “em As Onze Mil Varas, as peripécias libertinas não se fazem sem erotizar a própria linguagem (o que se deixa ver muito bem na tradução de Letícia Coura), produzindo um efeito de significância, aquilo que Roland Barthes define como produção sensual dos sentidos.  É nesse ponto que a experiência erótica e a poética coincidem”.

 

 

Nota da tradutora

Nota do tradutor já é estranha em si, já que o tradutor ideal talvez seja aquele ser invisível, que cumpre quieto seu trabalho de fazer chegar em seu idioma as palavras do autor a seus leitores e ponto. Mas o fantasma do tradutor traidor, a angústia da consciência do perigo de se perder um sentido, um duplo sentido, triplo, um jogo, uma invenção, uma possibilidade… parece impor que se apresente uma justificativa, um álibi, ou ao menos que se explique esta ou aquela decisão, a escolha de uma certa palavra, vírgula, tempo.

Me faz lembrar um dramaturgo alemão que afirmou traduzir um autor que admirava justamente porque não falava seu idioma, o francês, e queria compreendê-lo em sua própria língua. Ao que o autor respondeu muito feliz que queria mais era ser reinventado por seu tradutor, já que a admiração era recíproca. Ok, situações como essa não se repetem tanto, mas são uma lembrança estimulante pros piores momentos.

Na verdade sabemos que as palavras têm vida própria, escolhem onde querem estar, que sentido dar às coisas, ações, sensações, sentimentos. O que fazemos é humildemente dar passagem a elas, mesmo que seja apenas de um idioma pra outro.

Então, minha defesa. O que me trouxe a esta árdua, ousada e fascinante tarefa de tradução foi primeiro a música e quase junto o teatro.

Há muitos anos introduzi em meu repertório uma canção de Boris Vian, e me frustrava quando cantava em francês e percebia que ninguém se divertia tanto com a letra como eu. Aí sim, me sentia traindo o autor. Fiz então uma primeira versão para o português que acabou levando a outras, que acabaram virando um cd, que acabou virando um espetáculo meio cabaré que fizemos na abertura dos Satyros na Praça Roosevelt em São Paulo, com direção de Rodolfo García Vazquez e com o ator Ivam Cabral como um anagrama de Vian, o pianista Beba Zanettini e o percussionista Vítor da Trindade como parceiros de cena. As palavras cantadas e faladas em português e francês se encaixaram bem, era tudo música.

Paralelamente, conheci através da poeta e diretora de teatro Beatriz Azevedo o dramaturgo francês Bernard-Marie Koltès, e aqui a necessidade da tradução se deu pelo projeto de montar um espetáculo, que resultou em um mergulho na obra dele, com o estudo de várias peças, entrevistas, artigos, críticas, onde tive a sorte de ir lapidando as traduções a partir das leituras de atores como Maria Alice Vergueiro, Fernando Peixoto, Magali Biff , Adílson Barros e tantos outros que participaram do processo.

Tudo isso pra situar que o que sempre me guiou na tradução foi a música e a teatralidade do texto. A vontade da palavra viva. E neste caso específico d’As Onze Mil Varas, de Guillaume Apollinaire, o ritmo das cenas.

As barreiras da época em que foi escrito, do tom de um outro idioma, tentei transpor deixando o ritmo e a necessidade das cenas falarem por si. O jogo entre a liberdade e violência descaradas e as formalidades ‘civilizadas’, o uso de expressões populares ou de época, gírias, deram o tom do autor aos diálogos e narrativas, e a dica para a tradução. E nos momentos mais quentes, uma pequena fugida do esmero nas concordâncias gramaticais. Pra não perder o compasso.

E a opção por algumas traduções literais com pequenas notas explicativas. Como não traduzir literalmente o ato de fazer ‘pétala de rosa’ em alguém? Mesmo que tenha sentido a necessidade de explicar a expressão que se refere a uma lambida no cu, optei por deixar a beleza da imagem quase falar por si.

Que essas pequenas enormes traições então continuem, se assim quiserem, e que venham mais libertinos franceses, com muita música e ação.[:]

uma bacante em BH – Então é isso?!

2016-09-03-23-06-021

É quinta-feira agora, 27, Então é isso?! em BH.  A alegria é a prova dos 9 ! !

Acabamos de estrear Bacantes no Teatro Oficina em São Paulo, então essa bacantinha – que está na capa do livro Então é isso?!, nele todo e aqui dentro – liga uma coisa na outra, minhas vidas paralelas e uma só, a bacante no teatro, na música, e agora na literatura… há mil anos atrás quando corria criança atrás de brindes em uma exposição no Palácio das Artes, uma das moças que distribuía alguma inutilidade me deu vários brindes e me parabenizou pela minha cara-de-pau. Então é isso?!

Muito feliz por estar na terrinha, Belo Horizonte de tantas madrugadas pelas ruas, tantas histórias, sonhos, amigos, e tragédias também. Tragicomediorgyas da vida . . . e muito contente por estar tão bem acompanhada nessa minha noite de estreia ! !

Rodolfo Vaz, amigo de tantas, que re-conheci no teatro, sempre presente de perto e de longe, ator que surpreende em cada mergulho no escuro, Brisa Marques que encantou todo mundo quando viemos com o Oficina pras Dionisíacas em BH em 2010, Marcelo Veronez que também apareceu pra mim nessas Dionisíacas, e que depois surpreendeu como cantor, e Ulisses, meu mais recente amigo de infância, companheiro das letras, da animação e do humor, leitor interessado e interessante ….  E o meu cavaquinho, companheiro fiel de tantas…

E o livro? Eram contos, que de repente passaram a se chamar livro com Maria e Ulisses. Começou no blog do site, criação da dupla Brenda&Maria, que abriu de novo o caminho das letras. Aimar Labaki, lá de outros carnavais, que de um café mostrou o caminho das pedras, Alex que arriscou e chegou no ritmo acelerado que bateu com a urgência da vontade, Marcia Tiburi que amorosamente se divertiu e escreveu o prefácio, Welington Andrade que emprestou sua erudição despretensiosa, Beto Mettig que lá da Bahia de São Salvador compartilha seus tesouros.

Tantas histórias e tanta gente ali. Amigos amantes que deram sua atenção e suas vozes, que leram antes, Fábio, Márcia, Adriana, Samuel, Beatriz, Nana, Ana, Ivam, Maria, Ulisses, Verônica. E agora já imaginando meus próximos amigos íntimos, venham, possíveis leitores …

Ritmo de formatura, ou primeira comunhão, ou primeira apresentação do teatro ou coral da escola. Do pré. Feliz pacas – pra lembrar de outros tempos e homenagear os animais. Bacante praticante. Méééééé ! ! ! ! ! !

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