Esse samba dá história . . . ou vice-versa

tudo preparado pra começar as gravações dos 20 anos de Revista do Samba no Teatro Popular Solano Trindade, no Embu das Artes – março/abril 2021

Tenho esse personagem sambista que me dá muitas alegrias nessa vida. E estamos comemorando – dentro do possível que esse verbo possa ter de sentido nesse momento – 20 anos de Revista do Samba, nosso trio criado lá atrás, por amor ao samba, à amizade, e ao prazer de tocar e cantar junto. E que hoje, talvez mais do que em toda a nossa trajetória, é tão importante pra gente lembrar quem a gente é, que cultura tão rica que temos, que música maravilhosa, e sim, que pessoas legais e criativas, que criaram esse gênero, essa música, essa dança, com uma história tão diversa quanto interessante e instigante.

É um pouco de tudo isso que procuramos passar com esse projeto, com essas apresentações, lives, shows, não sei que nome dar a isso que fizemos, um trio de dois no mesmo lugar e um em outra cidade, usando e abusando do que conhecemos dessas tecnolorgias – sim, foi assim mesmo que escrevi – atuais, pra poder cantar e tocar, e chegar às pessoas.

Esses são os movimentos – 6 ao todo, como pedia o edital –, cada um abordando um trabalho, um álbum, cada um com um repertório diferente, tendo no último nosso gran finale das mais mais, selecionadas entre as tantas que tocamos tantas vezes nas nossas tardes e noites de samba e outras aventuras. Esse texto é um convite pra conhecer um pouco das histórias dos sambas e dos sambas das histórias, que fomos entrelaçando com as nossas, e pra ver e ouvir a gente lá no YouTube – Revista do Samba Oficial. Continuo acreditando que é com essa alegria que vem lá do fundo da nossa cultura e alma que vamos conseguir atravessar esses tempos de prov(oc)ação.

20 anos Revista do Samba - flyer

Beto Bianchi, Letícia Coura e Vítor da Trindade, no início dos trabalhos do trio, ano 2001. foto de Paulo Sommer, no estúdio PAC do percussionista Dudu Tucci, em Berlim.

Esse projeto nos possibilitou também revisitar algumas histórias que fomos colecionando nesses 20 anos de samba, de viagens e shows pelo mundo. Falo um pouquinho delas a seguir.

 

As primeiras viagens

Sempre associei nosso início das viagens – e da maravilhosa carreira internacional! – ao 11 de setembro. Acordei com um telefonema do – agora extinto – Ministério da Cultura: “Letícia Barbosa Coura? você não vai querer as passagens?” Custei a entender. Era 2001, eu estava no meio do processo de ensaios do espetáculo Bacantes do Teatro Oficina. “Duas passagens, Revista do Samba, é isso?”, a voz perguntou do outro lado. Sim ! ! respondi já então animada, lembrando da nossa tentativa no edital com o pedido de duas passagens para Berlim, para nos apresentarmos como Revista do Samba. Vítor já estava na Alemanha, as passagens seriam para mim e para o Beto. Foi uma surpresa, super em cima da hora, e ficou a impressão de que conseguimos as passagens porque alguém provavelmente havia desistido de alguma viagem, por conta do medo que se instaurou no mundo logo após o ataque às torres gêmeas. E assim fomos, intrépidos, para o outro lado do Atlântico, dar o pontapé inicial para uma bela e promissora história de shows em vários países, e participações em muitos festivais de música por esse mundão afora.

 

Paquistão e o Rasta-pé do cercadinho

Revista do Samba no World Performing Arts Festival em Lahore, Paquistão, 2006.

Fomos parar no Paquistão em 2006. Esses telefonemas em horários inusitados com surpresas realmente surpreendentes. World Performing Arts Festival, realizado em Lahore, quase na divisa com a Índia, reunindo música, teatro, teatro de bonecos, poesia, dança. Foram 10 dias de muita arte, muita troca com artistas de muitos países diferentes, e uma enxurrada de cores, sons, idiomas, comidas. Por indicação dos organizadores do festival, fomos a uma cerimônia sufi, na companhia de um bailarino francês, alguém da embaixada brasileira e um simpático paquistanês que se dispôs a ir como nosso guia, nos iniciando nos mistérios locais. Eu era a única mulher do grupo, e passei por uma experiência que felizmente acabei conseguindo transformar em samba, o Rasta-pé do cercadinho. Como o nome já sugere, tive que assistir à cerimônia separada de meus companheiros homens, sentada sozinha num cercadinho, onde os participantes deixavam seus sapatos. Pra saber um pouco mais da história, só ouvir o samba e deixar o esqueleto balançar…

 

Samba no Monte das Oliveiras

RDS Monte das Oliveiras

Em 2005 fomos tocar em Israel. Eu estava em cartaz com Os Sertões, no Teatro Oficina – 26 horas de peça no total –, e a vida foi bem alucinante nessa época. Me lembro de pagar uma daquelas massagens de aeroporto, porque ia viajar a noite inteira depois de fazer uma peça de 6 horas… Daí já dentro do avião, antes de apagar e acordar do outro lado do Atlântico, descobri no guia que tinha comprado que Tel-Aviv, onde íamos nos apresentar, era uma cidade à beira-mar… ignorâncias à parte, na hora de passar na alfândega, acho que pra entrar no país, nos pararam com as bagagens. Um rapaz bem jovem – como eram os policiais e militares em geral que vimos em Israel – queria saber o que era aquele objeto estranho, perguntou se era algum tipo de arma. Vítor explicou então que era um instrumento musical, e não pareceu convencer o funcionário da imigração. Contamos que éramos um trio brasileiro que tocava samba, e nada. Daí Vítor pegou o berimbau e começou a tocar, e logo outro rapaz, agora com o uniforme do exército, se aproximou animado e começou a ensaiar uns passos de capoeira. “Conheço, é capoeira!”, e logo puxou conversa com o Vítor sobre essa dança luta brasileira, várias pessoas se aproximaram pra ver os passos e ouvir aquele instrumento estranho em ação. Por um breve momento aquela parte do aeroporto se descontraiu com um pouco de música e dança.

 

Do outro lado do mundo

em frente ao Palácio Imperial em Seul, Coreia do Sul, 2009.

Em 2009 fomos convidados para um festival em Seul, na Coreia do Sul. E de lá fomos tocar em uma outra cidade coreana, à beira do mar do Japão, Gangneung. Tocamos num belo teatro e também no mercado de peixes, lugar maravilhoso e indescritível, com tantos peixes que nunca tinha visto na vida, muito menos saboreado… e no jantar da noite pós-show dei o meu primeiro fora ao tentar escolher alguma iguaria da cozinha coreana, sem entender nada no cardápio, e perguntei se eles tinham sushi – de peixe, já que tínhamos acabado de conhecer o mercado. Ao que o produtor da cidade com uma cara não muito amigável respondeu que sushi de peixe era ‘coisa de japoneses’. Me senti uma daquelas pessoas que muito animadas chegam no Brasil e perguntam da capital, Buenos Aires… Mas para compensar minha gafe, tinha aprendido no camarim, com uma moça que nos acompanhou na cidade, a cantar uma canção coreana, da qual consegui cantar um pedaço pro nosso anfitrião, melhorando um pouco minha imagem com ele. E quando voltei pra peça da época, Cacilda!! – é, continuava na minha vida dupla entre o teatro e o samba –, ainda consegui fazer o público cantar em coreano comigo. Tinha uma cena no meio do segundo ato, que servia pra acordar parte do público desavisado em uma peça de 6 horas, em que eu ‘interpretava’ uma preparadora vocal que fazia um aquecimento com o público. Normalmente eram exercícios de voz, mas nesse dia o público – e elenco – cantaram comigo: A ri ranga há, ri ranga há ! ou algo assim …

E a experiência na Coreia do Sul ainda deu outro samba, o Kamzahammidá, como conseguimos dizer obrigada em coreano..

 

Saara, Atlas, Marrakesh . . .

Letícia Coura e Vítor da Trindade em Rabat, Marrocos, 2007. Em frente ao cartaz anunciando o show do Revista do Samba no Festival Mawazine.

Depois do nosso maravilhoso show em pleno Saara, resolvemos continuar no Marrocos, aproveitar a oportunidade e ir conhecer Marrakesh. Sim, Marrakesh!, a cidade dos hippies, a terra prometida dos doidões, do imaginários de príncipes, reis, califas, camelos… continuaríamos por nossa conta – e risco –, e logo percebemos a mudança de patamar quando o táxi chegou. Era um carro bem pequeno, e nós com todas aquelas bagagens de músicos, olhamos meio desanimados pro cara do hotel. Ele logo então se prontificou e chamou outro táxi. Em seguida chegou um Mercedes Benz, e pensamos, uau!, nos demos bem ! entramos no carro animados, com nossas malas, instrumentos, íamos até a rodoviária pegar um ônibus que desceria os Atlas até Marrakesh. Mas o caminho até a rodoviária era longo, e logo percebemos que o táxi não era só pra nós, e parecia pegar todo mundo que estava no caminho, humanos e mais alguns animais como galinhas e cabras. E malas. . . .

E em Marrakesh, ao lado da praça . . . , precisávamos de uma informação pra nos localizarmos por ali, e eu sabiamente perguntei pra uma moça que passava por nós. NiquI ela começou a nos indicar como chegar no local que procurávamos, passou um rapaz muito falante, simpático, dando a entender que conhecia a cidade mais que a moça, falando mais alto, gesticulando, e meus parceiros deram ouvidos a ele… a moça fez uma cara que na hora não consegui ler muito bem, meio de preguiça do cara, e não querendo competir quem falava mais alto, acabou indo embora. Resultado, fomos atrás do cara, e logo chegamos na casa de um primo dele, que nada tinha a ver com o endereço que procurávamos, mas o primo tinha uns tapetes muito bonitos – e bem caros – para nos oferecer . . .

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r e v i s t a do samba no Paquistão – e o Rasta-pé do cercadinho

Lahore, Paquistão

World Performing Arts Festival, jardins do príncipe Shah Jehan e ´cercadinho´ pras mulheres

na loja:
– quero uma roupa feminina, gostei daquela, laranja.
– tem também esta azul, aquela é seda do norte do …
– eu quero só uma mesmo, obrigado.
– só uma?
– é, eu só tenho uma mulher.
– que pobreza…

E assim meu parceiro Vítor da Trindade, percussionista, comprou o presente pra sua única esposa. Com ele e o violonista Beto Bianchi, formamos em 99 o Revista do Samba, pra tocar os sambas que mais gostávamos misturados às nossas aventuras pelo gênero. Mal sabíamos até onde iríamos por conta disso. Pela Internet, o convite. Lahore, Paquistão, pra participar do World Performing Arts Festival.

Lahore, cidade com mais de 2000 anos de idade, capital da província de Punjab, fronteira com a Índia e capital cultural do Paquistão, onde nasceu o príncipe Shah Jehan, que construiu pra sua amada e pro mundo o Taj Mahal. Em São Paulo nem um guia para o país que talvez esconda (escondia mesmo, esse texto foi escrito em 2008) Osama Bin Laden. Juntei informações da Internet às fornecidas pelo festival, e soltei a imaginação.

Depois de 20 horas de vôo divididas por uma espera de 10 horas no aeroporto de Londres, chegamos pela manhã em Islamabad, capital do Paquistão, onde um simpático funcionário da embaixada brasileira nos recebeu no aeroporto pequeno mas com lugar atapetado garantido e cercado pra quem quiser rezar. Seguimos de carro para Lahore, a 380 km dali. Pela janela horizontes desertos sem fim, um chão arenoso em tons de bege e cinza, colorido de tempos em tempos pelas roupas multicores e esvoaçantes de trabalhadores do campo ou andarilhos indo de um nada pra outro. E pelos ônibus e caminhões, também coloridos, cheios de desenhos, bordas trabalhadas, lotados de coisa e de gente.

Nas paradas o motorista nos ia apontando integrantes do Taliban, identificados pelas roupas e comprimento da barba. Aos poucos saberia reconhecê-los pelo olhar. Uma mistura de medo e desprezo: mulher e ainda sem véu…

A chegada se deu por uma periferia sem fim, até chegar na parte rica da cidade, mostrando uma disparidade que bem conhecemos entre uma classe alta, ocidentalizada ou não, e o ´resto´. Um trânsito que pode ser comparado ao dobro do volume de carros de São Paulo, mas com os motoristas do Rio de Janeiro… motos carregando famílias inteiras, um homem, uma ou duas mulheres (sempre sentadas de lado), o bebê e as crianças. Algumas carroças puxadas por cavalos e muitos táxis triciclos, com a audácia dos nossos motoboys. E todos andando ao contrário, que lá foi colônia inglesa, quando tudo ainda era a Índia. O Paquistão passou a existir como país de maioria absoluta muçulmana com o fim do Império Britânico na região em 1947.

O festival

Dez dias e noites de música, teatro, teatro de bonecos, cinema e dança. Artistas de quarenta países diferentes, de todos os continentes. Sete salas-tenda para dança, teatro e teatro de bonecos, três espaços para cinema e teatro, e um palco arena ao ar livre para os shows musicais, com capacidade para quatro mil pessoas. O World Performing Arts Festival acontece em Lahore desde 1992, quando começou como um festival de Teatro de Bonecos, organizado pelo Rafi Peer Theatre Workshop, da tradicional família de artistas Peerzada. É hoje o maior festival do sudeste da Ásia, e um dos principais eventos a promover a troca cultural e artística entre Oriente e Ocidente.

O convite é feito para que os artistas se apresentem, mas também para que permaneçam durante todo o evento. Assim vivemos intensamente em Lahore os dez dias do festival, e pudemos assistir espetáculos de linguagens diversas, tradicionais e contemporâneas, e ainda conhecer os maiores nomes da música paquistanesa. Três noites foram dedicadas à música local: a Mystic Soul Night, para a música de inspiração sufi, a mística islâmica; Ghazal Night, dedicada aos poetas, inesquecível pelo silêncio e concentração do público, e o encerramento do festival, a Classic Night, com representantes das mais importantes famílias de forte tradição musical no país – porque o conhecimento musical no Paquistão é transmitido pelas famílias, e pelo nome do artista já identificamos seu estilo.

O Samba e o Tango

Em um dos shows tivemos a participação especial de um grupo formado por argentinos e espanhóis que vivem em Barcelona, Conexion Tango. Tocamos juntos “O Samba e o Tango”, com um final apoteótico numa mistura bem-humorada dos ritmos. Mistura que agradou ao nosso embaixador que acabava de chegar da Índia (inimiga política do país), e considerou pertinente o exemplo não só de tolerância mas de amizade entre dois povos vizinhos. Desde que não se fale em futebol…

A dançarina argentina no seu vestido colado ao corpo e pernas descobertas dançando grudada em seu parceiro chileno, num país onde as mulheres andam um passo atrás dos homens, cabeças cobertas e roupas que não deixam transparecer uma única curva, e não dançam em público; o bailarino que dançou a dança de Shiva, mas quase não se apresenta mais devido à onda conservadora do país e o preconceito com as tradições indianas; os iranianos e as flores para as bailarinas americanas que apresentaram uma dança típica de seu país mas que é hoje proibida pelo governo fundamentalista do Irã; a bomba que explodiu no ponto do ônibus entre o hotel e o festival, a Xuxa ucraniana, a banda paquistanesa/americana de punk rock, os tapetes de tantas cores e desenhos, a amabilidade dos paquistaneses, as conversas sobre Deus, os jogos de críquete nos parques, o estádio de hockey, os talibans da estrada.

A cabeça rodando, entro no quarto do hotel, e pra tentar dormir ligo a televisão. MTV da China, filmes de Bollywood, musicais indianos, noticiários em árabe, ou urdu e punjabi, idiomas paquistaneses, muitos homens barbados, tento distinguir se é uma rede pirata falando do próximo ataque terrorista, ou apenas o jornal da noite. Melhor tentar as ovelhas.

Baco

Folga. Um passeio à tarde pelo mercado, cheio e animadíssimo, artigos de mil e uma noites, todo o imaginário de Ali Babá, Alladin e Sherazade, ali ao alcance dos olhos, das mãos, e de algumas rúpias. E para escolher com calma a melhor combinação de cores de véus, écharpes e roupas de seda, ou proveniência do tapete, chá de menta. Pra brindar à vida entramos no restaurante de um hotel cinco estrelas, e perguntamos logo ao garçom que vinho ele teria para nos oferecer – haviam nos indicado que em hotéis assim teríamos acesso a hábitos ocidentais. Ele ficou branco, e olhando para os lados e falando baixo, disse-nos que ali não serviam bebidas alcoólicas, explicando, são todos muçulmanos, seria uma afronta beber na presença deles. E num tom mais baixo ainda, se vocês tiverem sua própria garrafa, podem tentar conseguir um quarto para bebê-la… Ele só não nos indicou onde poderíamos encontrar a tal garrafa, então desistimos da comemoração e voltamos ao festival.

Educação sexual no museu e o rasta-pé do cercadinho

Lahore é uma metrópole, aproximadamente 10 milhões de habitantes, com grandes jardins e monumentos erguidos na época áurea da cidade, sob o Império Mongol, que durou do século XVI ao XIX. Destaque para o Shalimar Garden, terminado durante o Império de Shan Jehan, o forte e as muralhas da cidade. É uma pena que como não muçulmanos não possamos entrar nas mesquitas, mas pode-se passear pelos jardins, pátios e corredores que as cercam. A mesquita Badshahi é a maior de arquitetura Mongol do país, finalizada em 1674. Andar descalça por ela, ouvindo o canto que chama para uma das orações do dia ajuda a compreender a religiosidade do lugar. O museu da cidade, o Lahore Museum, apesar de ser um dos maiores do sul da Ásia não é muito grande em comparação aos museus europeus, mas apresenta pinturas e esculturas greco-budistas, peças tibetanas, instrumentos musicais, além de uma detalhada exposição de fotos da fundação do país.

A visita ao museu foi especial graças a um garoto de dezessete anos que passava suas tardes ali. Começou me explicando cada peça, e foi então me perguntando de onde eu era, se era casada, o que fazia ali. Nisso entraram alguns barbudos, e ele me fez notar que todas as mulheres naquele momento cobriram as cabeças e mesmo os rostos, e me encorajou a fazer o mesmo. Perguntei porque e ele me explicou que aqueles eram religiosos, e que era um sinal de respeito eu me cobrir. Perguntei porque novamente, e na seqüência acabei respondendo a tantas perguntas, praticamente uma aula intensiva de educação sexual, movida por uma compaixão instantânea por aquele garoto no auge de sua juventude, sem nenhuma informação sobre o sexo oposto e uma solidão de chorar.

Aliás é de se reparar a grande intimidade física existente entre os homens, em contraposição ao ostensivo recato imposto às mulheres.

Como estrangeira escapei um pouco dessa imposição, mas tive uma boa demonstração da condição feminina na vida cotidiana da cidade. Fomos a uma cerimônia sufi, em companhia de um sociólogo francês, um guia amigo paquistanês e o embaixador brasileiro. Quinta-feira à noite, bairro afastado. Uma árvore imensa, e sob ela uma pequena multidão sentada em roda no chão, acocorada nos galhos das árvores e pelos degraus que davam no mausoléu de um poeta. Dois Ogans tocando dhols, tambores enormes pendurados no corpo, e no meio homens em transe rodando sem parar, alguns com impressionantes movimentos frenéticos de cabeça, que pareciam querer desenroscar do pescoço. Encontramos um lugar na roda, e imediatamente me fizeram sinal pra não sentar ali, apontando-me um cercadinho onde todos deixavam os sapatos. Obedeci. Não foi exatamente amigável a maneira como me indicaram o lugar. Sentada sozinha, literalmente cercada por uma tela de arame, constatei que eu era a única mulher ali, e o fato de ter coberto a cabeça com um véu não os fez muito mais simpáticos à minha presença. Acabada a cerimônia fomos visitar o mausoléu do poeta, e de novo fui barrada na porta, e também não ganhei o belo colar de flores reservado aos visitantes – homens. Fui então até o pátio onde descobri outras mulheres, sob uma outra árvore centenária enorme, cheia de papeizinhos com pedidos e agradecimentos. Havia uma calma especial ali, e o guia paquistanês veio me fazer companhia. Mas a sensação desagradável da segregação não saiu de mim. Só um ano depois, e com o auxílio luxuoso do humor, vomitei essa experiência na forma transformadora de um samba. O Rasta-pé do Cercadinho, minha singela vingança, quem sabe um grão de areia no deserto das lutas pelos direitos das mulheres…

Muitas contradições num país que quase elegeu uma mulher pra Presidente (Benazir Bhutto, assassinada no final de 2007), que admite cada vez mais mulheres nas universidades, mas que ainda permite por lei a poligamia para os homens. Uma música belíssima e poemas de encontro com o amante divino, uma religiosidade que permeia todos os detalhes cotidianos, mas a constante e crescente pressão de grupos fundamentalistas. O amor e ódio em relação à cultura ocidental.

Depois de tantas aventuras, tanta informação e troca entre universos tão ricos quanto distintos, fica a certeza de que a arte, com sua liberdade infinita, é o caminho mais curto e eficaz para a comunicação entre as pessoas. Principal acontecimento cultural da cidade, quiçá do país, o World Performing Arts Festival realiza sua imensa contribuição ao esforço de compreensão e assimilação das diferenças, e mais que tolerância, promove a curiosidade e o interesse pela diversidade cultural, através do enriquecedor encontro de artistas. E se é que a vida imita mesmo a arte, então temos alguma esperança.

o que ouvir:

família Ali Khan

. Nusrat Fateh Ali Khan – considerado maior cantor paquistanês de Qawwali, forma musical nascida do encontro desde o século XII entre as tradições poéticas e musicais de monges sufistas vindos da Pérsia e a devoção musical de populações locais.
. Sain Zahoor – cantor de origem rural da região de Punjab, cresceu cantando em santuários sufi, e é hoje um dos principais divulgadores de poetas sufi e da música tradicional paquistanesa.

cantoras

. Reshman – natural de família cigana do Rajastão, cantou na infância em santuários Sindh, e é hoje uma das cantoras mais populares do país, tendo gravado muito para filmes tanto paquistaneses quanto indianos.
. Tina Sani – cantora Ghazal também bastante popular, de tradicional estilo Punjabi.
. Zarsanga – também de família cigana, conhecida como a Rainha da Música Pashto.

onde ir:

Shalimar Garden
Badshahi Mosque
Lahore Museum

World Performing Arts Festival
todo ano, mês de novembro
Complexo Cultural Al Amrah

 

 

revista do samba e a Mesquita Badshahi

trio Revista do Samba no pátio da Mesquita Badshahi – Lahore, Paquistão

  • esse texto foi escrito para a revista Lugar, da Folha de S.Paulo – publicado em dezembro 2008.  e fomos lá tocar no World Performing Arts Festival  em 2006.