[:pb]Estou penando aqui pra traduzir Alfred Jarry. Ontem fiz faxina na casa, usei a furadora que esperava há dias na sala pra ser usada e instalei finalmente a rede da subida do rio Amazonas, li os atrasados guardados, estudei, lavei louça, roupa, e mais, mais, tudo pra postergar um pouco mais o momento da dúvida, esta ou aquela palavra, ou será que tem outros sentidos que não descobri, será que ele quis dizer exatamente o contrário, tem humor, ironia, ou desta vez ele está apenas dizendo o que queria dizer, simplesmente, ou, ou . . . .
Dessas torturas que a gente cria pra gente mesmo, aquilo que eu fazia com prazer e simplesmente porque queria, de repente é uma responsabilidade, um compromisso, um trabalho, daí tudo outro parece melhor e mais importante e mais urgente.
Só pra dizer que sofro aqui traduzindo, mas gozo gozo, quando descubro a palavra certa, ou invento algum sentido, ou entendo ou acho que entendo o que ele quis dizer. Não posso perguntar pra ele o que ele quis dizer, mas se fosse possível, será que perguntaria? Na minha (nada) humilde e árdua tarefa de tradutora, às vezes me sinto tão escrava e outras tão livre, resumindo, é bom. Eu gosto. Sofro sofro, mas qual delícia não sofre junto??
E nesses labirintos das línguas, hoje fiquei feliz de saber que nosso cd bilíngue, bi várias coisas, parcerias variadas, nosso Hortênsia du Samba, parceria do Revista do Samba (esse trio que me dá tantas alegrias há tantos anos, com meus parceiros Vítor da Trindade e Beto Bianchi) e da banda francesa Tante Hortense, está agora disponível nas redes de música virtual, ITunes, Spotify, Deezer, e tal. Foi um trabalho tão único, invenção e proposta do compositor francês Stéphane Massy, que conheci por causa e no Teatro Oficina, e que nos convidou – o Revista do Samba – pra fazer um trabalho juntos. Nos reunimos primeiro em São Paulo para as criações – já havíamos trocado algumas ideias virtualmente – e primeiros shows, daí logo gravamos. No Estúdio Outra Margem do Paulo Lepetit, com produção musical luxuosa dele. Isso foi em 2009. Em 2011 fomos à França lançar o cd, com shows em Marseille, Paris, Aix-en-Provence e Lille. Daí ficou a vontade de tocar mais juntos, fazer mais coisas, e acho que nesse ano de 2017 conseguiremos. O cd teve uma primeira tiragem, que já está esgotada, tivemos tipo um tube, a canção Le Bel Amant du Berry, que entrou na programação de algumas rádios francesas, críticas boas por lá, e agora que bom!, hora de divulgar de novo. Não chegamos a fazer shows de lançamento aqui, com o cd já pronto, mas enquanto gravávamos tocamos no Oficina e na Cidade Tiradentes, o que foi bem ótimo e nos preparou pros shows franceses. Nos demos bem em cena.
O trabalho de criação em parceria foi uma experiência de ter que criar alguma coisa naqueles dias com aquelas pessoas. Algumas já íntimas pessoal e artisticamente e outras que conhecíamos ali naquele dia e hora. A banda Tante Hortense: Stéphane Massy que inventou a história toda, que já era um amante do Brasil, da música daqui, compositor cheio de ideias e muitas palavras, M-Jo cantora doce, minimalista, alquimista de sons sutis, Christophe Rodomisto, guitarrista elegante e chic das melhores notas, Jean-Phi baterista amante e parceiro de teatro e dança, e meu companheiro cavaquinista Eddy, com seu jeito marselhês único de tocar cavaco, e nós três, os Revistas: Vítor com seu mundo dos ritmos e ancestralidades, Beto com suas harmonias pop e swing contradizendo a máxima infeliz do poeta, e eu com a minha cara-de-pau esculpida no teatro e meu cavaquinho Paulinho da Viola. Numa casa lá no Embu das Artes e depois aqui em SP, Oficina, estúdio e os shows, tocando e cantando juntos.
As canções, algumas já prontas que encaixavam no projeto, outras feitas nas parcerias com prazo determinado, parcerias de dois, três, quatro, ideias nascidas ali, todos criando o arranjo juntos – no total somamos 8, 5 do Tante Hortense e 3 do Revista do Samba. Misturar os idiomas, trocar as línguas, musicar palavras francesas com ritmos brasileiros e vice-versa, cantar em português e francês, inventar uma língua comum, a compreensão e não compreensão. Duas canções que falam disso, On Se Comprend e Sans Tradução, o amor entre uma brasileira e um caipira francês, Le Bel Amant du Berry, a São Paulo Big Brother Grande Irmão, o samba-enredo da cidade do Rio de Janvier em francês, uma Baleia no rio Sena, uma Piroca no pulso, uma tristeza com algo de chic na bossa Je Suis Aussi, La Révolution que começa pelo cu, La Vache surrealista e a máquina de moer tudo isso e mais outro tudo, Moissonner et Battre. Uma viagem a partir das cinco semanas que experimentamos criar juntos, trabalhar e dividir intimidades e dia-a-dia.
(*pra ouvir as canções é só teclar no título da música em azul).
Pra quem entende as duas línguas ouvir pode ser uma viagem divertida e cheia de sentidos, pra quem entende uma pode adivinhar a outra na música, talvez entenda mais, descubra outros sentidos. Pra quem gosta desse mundo da tradução traição, um descanso, ou um desafio, ou um deleite.
Escrevi tudo isso pra fugir um pouco do Jarry, e volto a ele já com saudade. Um pouco mais musical. Fica a dica então, entra lá – ou por aqui mesmo – e ouve. Hortênsia du Samba. Um exercício real pra compreensão do outro, ou puro deleite. Um pouco mais disso no mundo e estaríamos mais em paz.
De onde apareceu, passou, já foi
ou vai ser bom
Dans la confusion
J’étais content . . . . .
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