Fiquei 3 horas em pé na fila para ver os quadros de Tarsila do Amaral no MASP. Poderia ter evitado a fila longa, mas minha irmã veio para poucos dias em São Paulo e hoje era quando poderíamos ir juntas. E eu já queria ir desde o primeiro dia.
Chegamos e um rapaz – que depois soubemos que não era funcionário ali – nos avisou que ficaríamos na fila de 40 minutos a uma hora. Pareceu longo mas sim, valia a pena, o dia estava lindo, estávamos no vão livre do museu, a vista gloriosa, o verde cantante do parque Trianon em frente, pessoas animadas na fila, crianças, velhos, jovens, casais de todos os gêneros e idades, e um vento nos corpos.
3 horas é tempo pra muito assunto, muita observação, muito pensamento. Estava eu ali pensando em meus momentos de Tarsila, ali mesmo na escadaria do MASP, quando fomos buscar o acervo do palhaço Piolin em 2015 para levar pro Centro de Memória do Circo, em carreata até o centro da cidade. Tivemos o momento palhaços e todos pra foto e até o de dar uma fugidinha com Oswald e fazer uma foto com os cavaletes de vidro da Lina Bo Bardi que receberiam as obras para a nova exposição do museu.
Fui aproveitando as 3 horas de fila – quando é que temos 3 horas para passar o tempo? – pra pensar então no Circo que foi montado ali mesmo no vão, em 1972, para as comemorações dos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Uma homenagem a Abelardo Pinto, o palhaço Piolin, que então há mais de dez anos estava sem sua lona montada na cidade. E fiquei pensando nos meus quadros ali, quer dizer, de Tarsila, naquelas pessoas como eu, nas horas inventadas de tempo para conhecer Tarsila do Amaral.
Fui contando para minha irmã da minha vida passada – no teatro – como Tarsila, o perfume que usava, minhas tardes e noites com Oswald, a pintura dele nu em cena como no desenho, a origem da cena do absinto com ouro, nossa descoberta como antropófagos por causa da rã, que me levou à viagem com a rã do Parque da Aclimação, o leite da cabrinha, a Cacilda sozinha com os fantasmas do TBC que viraria Tarsila com a batida do tambor e a explosão do fogo. O fogo do teatro, fogo de criação, que foi dar em tantas obras impressionantes. Tarsila à frente de seu tempo – ou atrás, já que tudo é circular -, com seus amores, seus talentos, seu charme.
Sabe aqueles sonhos acordados que temos, em que morremos e estamos vendo as pessoas vindo até nós no caixão, um pra chorar um pouco já de saudade, outro para se desculpar, outro pra rogar sua última praga até o além, uns outros arrependidos por terem nos tratado tão mal… ou tão bem. Ali estava eu, na Tarsila que está em meu corpo, ou no pouco muito de Tarsila que vive em mim, vendo as pessoas que escolheram me conhecer (um pouco mais ou pela primeira vez) no sábado de aleluia. Saíram de suas casas, reuniram famílias, amigos, até um cego e seu cão guia, e foram ali, ficar horas na fila pra conhecer o que passei a vida fazendo, buscando, criando.
Depois da fila embaixo, outra em cima. E então entramos. Um pouco perturbador todo mundo fazendo selfies com os celulares, mas incrível também ver tanta gente querendo se fotografar em frente aos quadros de Tarsila. E fotografar os quadros, que podem ser encontrados facilmente na internet. Mas ali está o quadro e eu, no mesmo lugar e ao mesmo tempo. O melhor sorriso, o melhor ângulo, no momento da selfie não se vê mais nada nem ninguém, o que importa no mundo é estar no seu melhor para literalmente ‘ficar bem na foto’.
Mas passado o susto das selfies, era de um prazer indescritível ver crianças reconhecendo a Cuca no quadro, uma outra impressionada com o Sapo, outra com os chifres do Touro. As adolescentes animadas, uma dizendo pra outra, olha a Mona Lisa dela, o Abaporu, rodeado de gente, muita gente, todos ali olhando, querendo talvez entender alguma coisa, sentir as cores, saber o que significa Abaporu – em tupi, homem que come gente, antropófago -, imaginar o que levou a artista a inventar aquela figura. O cego que conhecia todos os quadros e suas histórias e ia contando pros amigos; os que liam todos os textos explicativos, os que não liam nada, os que ficavam muito tempo olhando o mesmo quadro, os que só tiravam uma selfie e iam embora sem ver, as mulheres velhas encantadas com as cenas da Procissão, o Batizado de Macunaíma meio desprezado e enorme no meio da sala, os desenhos das montanhas e igrejas de Minas, de Recife, do Rio de Janeiro, a curiosidade realimentada, as biografias, dela, de Oswald, a história de São Paulo de um outro ângulo, as crônicas de Tarsila pro jornal O Estado de S. Paulo, o Mandú Çárárá de Villa Lobos de novo na cabeça.
Macumba Antropófaga – Teatro Oficina 2011 – foto de Acauã Sol
Li antes de sair de casa que Tarsila pediu o Abaporu de volta ao Oswald quando eles se separaram. Ela o havia presenteado com o quadro em seu aniversário de 1928, que acabou dando origem ao Manifesto Antropófago, que veio a dar na Antropofagia nas artes, que inspirou depois tanta gente, e que deu até no espetáculo Macumba Antropófaga do Teatro Oficina onde eu virei a Tarsila pela primeira vez em 2010 e depois de novo e de novo, que me fez descobrir o prazer de desenhar depois de tantos anos sem saber que podia.
As voltas da vida, sempre girando, eu chegando de Minas em São Paulo lá atrás, Zé Celso e Marcelo Drummond cantando o Soneto do Olho do Cu no Teatro Municipal, onde aconteceu em 1922 a Semana de Arte Moderna, anos depois a Macumba Antropófaga no Teatro Oficina, Tarsila nascendo vermelha, amarela, azul e verde no cavalete de vidro da Lina e em mim, e outra vez no Dia do Circo, com Oswald Marcelo, os modernistas, Piolin e muitos palhaços no Largo do Paissandu pro Festim Antropofágico desse ano de 2019, e hoje Tarsila exposta em cores, bichos, pedras e folhas pra multidão, e queimando aqui dentro. Roda Viva.
Tantas histórias numa história. Voltando às 3 horas da fila, pude pensar ainda que loucura a vida das pessoas, Tarsila e Oswald que foram tão ricos, viveram vidas quase inimagináveis nas mais altas rodas artísticas de Paris e daqui, depois o mundo dando uma virada e eles também com a queda do café e da bolsa, daí conheceram outras realidades, continuaram suas buscas artísticas por outros caminhos, e hoje a Antropofagia é estudada no mundo todo (exageros incluídos) e Tarsila é uma pintora que desperta interesse renovado no Brasil e fora, com obras espalhadas por diversos países, seu quadro A Lua recém adquirido e exposto pelo MoMA de Nova Iorque, e o Abaporu cotado em aproximados 100 milhões de reais. Quantia abstrata pros padrões matemáticos e financeiros comuns, e contraditório com o final da vida da artista, que morreu em 1973 aos 87 anos sem ver sua obra reconhecida a esse ponto. De dinheiro, de crítica e de gente. Não necessariamente nessa ordem.
E também quanta energia uma exposição dessa movimenta. Só por estarmos ali na fila, logo apareceram vendedores de água, salgados, brigadeiros. Até uma performance relativa à Páscoa, meio sem graça mas bem aplaudida. E todos os trabalhadores ali mesmo do MASP. E todo o trabalho para organizar a exposição, todas as pessoas envolvidas, vários países onde as obras moram hoje. E todas aquelas pessoas que foram ver. E os restaurantes e lanchonetes ao redor e do próprio museu que venderam um pouco mais hoje pra nos alimentar na fila, durante e depois da visita à exposição. Os transportes. As outras exposições visitadas. Outras obras e autores conhecidos no próprio museu, por causa da visita de hoje. Lembranças desta e de outras exposições, que vão durar muito tempo.
E agora os meus olhos, meu corpo e minha imaginação, e da tanta gente que foi ali hoje, estão impregnados com tantas cores, bichos, gentes, lugares. Os rostos d’Os Operários, d’Os Trabalhadores, os Autorretratos, os mandacarus, palmeiras, manacás, as plantas gigantes, lugares, festas, o Carnaval em Madureira, os olhos tristes da Segunda Classe, a vontade de ler mais e de novo Oswald e Mário de Andrade, Raul Bopp, de conhecer mais Piolin, de saber mais sobre o cubismo, sobre Anita Malfatti, Pagu, de conhecer um pouco mais dos anos 20 em Paris, da história de São Paulo, dos povos originários daqui, dos invasores bandeirantes, dos jesuítas, dos imigrantes todos, voluntários e não, da crise do café, da queda da bolsa, dos casarões da Avenida Paulista e dos moradores do bairro do Bixiga vindos de toda parte.
Inspiração que dias sombrios não tiram. É a arte que sempre dá a virada.