Zuza Homem de Mello
E cada vez mais vamos ficando com a incumbência de reinventar o Brasil
Logo antes de me mudar pra São Paulo – e isso faz tempo . . . – conheci o Zuza. Foi num festival em Belo Horizonte, eu já com minha trouxa pra deixar a terrinha, e aconteceu o Festival do Carrefour, num estacionamento imenso do igualmente imenso supermercado. Inscrevemos a canção A Sopa (clique aqui para ouvir), poema de Lewis Carrol com transcriação de Augusto de Campos, musicado por Marcos Pimenta. Uma música estranha, que Marquinhos me mostrou pra cantar, e eu logo me animei e incorporei minha personagem cantora meio lírica meio cabaré.
Para nossa alegria fomos classificados para nos apresentarmos num show ao vivo para os jurados. A direção artística do festival era do Zuza Homem de Mello, que eu conhecia de nome, o que inclusive nos incentivou a fazer a inscrição d’A Sopa. A banda a se apresentar seguiria praticamente a formação da banda O Grande Ah!…, com quem cantei durante alguns anos e que seguiria depois da minha saída e mudança pra São Paulo.
Achamos muito pertinente participar do Festival do Carrefour com uma canção de nome A Sopa, e quisemos fazer da nossa apresentação um grito contra a fome. Panelas compunham a percussão, e todos nós da banda, ao final da música, pegávamos cada um sua panela e terminávamos assim a nossa performance.
E não estávamos sós. Na imensa plateia no imenso estacionamento, tínhamos nossa torcida organizada. Márcia minha irmã era a chefe da torcida, e responsável por todos os adereços e objetos de arte para os componentes. Pratos de plástico de várias cores colados no alto de cabos de vassoura formavam um belo mar dançante pra quem via do palco, e funcionava muito bem para quem estava no público, pois apontavam acima das cabeças mesmo dos mais altos torcedores das músicas concorrentes. Completando o figurino, e como destaque da ala dos tomadores e defensores d’A Sopa, Márcia despontava na torcida com seu chapéu enfeitado com folhas de repolho, uma camiseta bordada com macarrões de três cores e um grande caldeirão de alumínio pendurado no estandarte com o prato à ponta. E para que ficasse bem claro que era a torcida d’A Sopa, e não de qualquer outra canção ou de algum novo produto do Carrefour, o nome da canção em letras garrafais não deixava dúvida de qual era a melhor música da noite. Ou ao menos a única que tinha uma torcida organizada e bem adereçada. E a mais animada, claro !
Não ganhamos o festival, acho que nem ficamos para as finais nem mesmo de BH. Pelo que me lembro as selecionadas concorreriam depois com as finais de outras capitais, num grande evento musical nacional. Mas Zuza, talvez impressionado pela torcida, mas com certeza também pela canção – estranha e bela, que anos depois gravamos no álbum Mariantivel, do Grande Ah!…. – foi falar conosco, que tinha adorado a música e a performance, perguntou quem éramos, nos associou a uma vanguarda da música paulista da época, o que nos deixou orgulhosos já que apreciávamos bastante a Lira Paulistana e todo um movimento que surgia naquele início dos anos 90.
Zuza então contou que era diretor artístico de um outro festival, e que gostaria de nos convidar a nos inscrevermos nele também, o Festival de Avaré, no interior de São Paulo. Uau ! ! eu estava justamente me mudando pra capital paulista, me jogando na estrada, na aventura da vida artística, já me sentia colegando com todos os meus ídolos da música lá em Avaré que não tinha ideia de onde era.
Inscrevemos então A Sopa – quer dizer, acho que fui eu na minha animação que fiz os trâmites necessários – no Festival de Avaré, chamei meus parceiros de performance, o Marcos Pimenta, autor da canção, que estaria justamente chegando da França onde fazia alguma pós em física, e achei que estava tudo organizado para conquistarmos o interior de São Paulo com nossa música.
Na data combinada fui pra Avaré. A essas alturas já estava em São Paulo, contava encontrar meus parceiros já na cidade do festival. Chegando lá, pra confirmar, liguei pro Duzão, guitarrista da banda – ele e Marquinhos eram os parceiros band leaders d’O Grande Ah!… –, achando que não conseguiria contato, já que naquela época não existia celular e ele deveria estar na estrada. Para minha surpresa ele atendeu a chamada, e com ar de quem estava bem tranquilo em casa. “Onde você está?”, perguntei já meio desesperada, “nós tocamos amanhã aqui em Avaré!” Levei então aquele banho de água fria com a resposta.
Naqueles tempos não havia despertado totalmente em mim o lado produtor, a necessidade da ativação de um personagem faz-tudo para fazer com que nossas ideias, devaneios, sonhos, vontades, insights se tornassem realidade. Duzão não tinha entendido que a coisa já estava acontecendo, que o festival já estava rolando, hoje nem consigo entender direito o que aconteceu. Liguei então para o Marquinhos, pensei que talvez fosse apenas um mal entendido na comunicação pelos telefonemas interurbanos. Ele estava chegando naquele quase instante da França, com a cabeça voando ainda, e chegou a pensar na possibilidade de tentar chegar em Avaré a tempo para defender A Sopa comigo. O que acabou não acontecendo.
Já pensava que ia ter que aprender a lidar com aquela frustração por não ter dado continuidade ali em Avaré a uma carreira de sucesso para A Sopa. Mas o pior eu teria que enfrentar ali mesmo: teria que me justificar perante o festival, eu estava ali na cidade – que naquele momento vivia plenamente o festival de música –, por conta do festival, para me apresentar, e acabava de saber que ninguém da banda apareceria. Fui falar com o Zuza. O cara massa que tinha gostado da música, apostado nela, nos convidado a inscrever A Sopa, eu recém chegada em São Paulo, animadíssima por participar já tão rápido de um festival de música ao lado de artistas que conhecia e admirava.
E ele foi tão maravilhoso Com sua experiência percebeu logo a minha frustração, que justamente por inexperiência eu não tinha conseguido organizar a ida do grupo até ali, mas não julgou, não me criticou nem repreendeu. Tão pouco desprezou. Pelo contrário, ficou solidário à minha sensação de impotência, perguntou se eu não queria tentar me apresentar com a banda do festival – que acompanhava alguns participantes –, pensou comigo em possibilidades. Me disse que tudo bem, que essas coisas aconteciam, e que o melhor que ele poderia me oferecer naquele momento era me convidar pra assistir a todas as apresentações, torcer por elas, e me divertir.
E foi o que fiz. Com a melhor companhia que poderia ter, o próprio Zuza. Senti que ganhei ali um padrinho que me abençoava pelos caminhos da música, pela alucinante, maravilhosa, inspiradora, árdua e prazerosa trilha da vida na arte. Nunca mais o encontrei pessoalmente, mas ele esteve sempre presente na minha vida, me inspirando através dos livros, programas de rádio e tv, e tantos projetos incríveis na música brasileira. Outro dia mesmo estava ouvindo sua voz em algum programa em alguma rádio escolhida quase ao acaso. E junto com a voz imediatamente a lembrança daquelas noites generosas em Avaré.
* Percebi que esse blog é quase um obituário. Vou escrevendo sobre pessoas que foram nos deixando aqui, nesse lugar que está passando por tão maus bocados. Uma forma de homenagem, um jeito de fazer essas pessoas mais vivas que nunca, mais inspiradoras ainda, contar um pouco de como elas passaram por mim e deixaram tantas marcas, e que talvez só eu mesma tenha como contar. E de saber que elas estão aqui também, que continuam em cada lembrança, em cada decisão que elas nos incentivam a tomar, nos mostrando caminhos. Viva Zuza !