Deu Cupim

Deu cupim (samba de gafieira de Henricão e J. Alcides)

Se não fosse o samba, Henrique Felipe da Costa, o Henricão, teria seguido a carreira de jogador de futebol. Natural de Itapira, interior de São Paulo, começou jogando no Velo, de Rio Claro, depois no Floresta, de Amparo, até vir para a capital jogar no Corinthians. Era campeão do interior e chegou a fazer dois jogos pelo Corinthians, e segundo ele mesmo era um bom goleiro. Mas as cabrochas do samba falaram mais alto, e aí perdemos um goleiro e ganhamos um sambista.

Henricão foi um dos fundadores do Cordão Carnavalesco Vai Vai, ao lado dos amigos Benedito Sardinha, Livinho, Frederico Penteado, Lolo, Dona Castorina, Dona Iracema e Dona Sinhá, em 1930. É o autor do primeiro samba para o Vai Vai, quando eles se encontravam na casa do Louro, na rua Rocha no. 12, e ainda eram aquela turma de amigos do vai vai em qualquer lugar, ou vai vai embora daqui, e ele motorista na rua Augusta, em 28.

Foi dali convidado a cantar na Rádio Educadora Paulista, no tempo do microfone de carvão. Trabalhou também na Rádio Record, e depois foi tentar a vida no Rio de Janeiro, onde logo ficou amigo do sambista Ataulfo Alves, gravando em seu programa Caminho da Glória, na Rádio Cruzeiro do Sul. Lá frequentou a Festa da Penha, berço do samba carioca, e viu várias escolas de samba nascerem como blocos carnavalescos. Lançou vários de seus sambas na Gafieira Elite, antiga Kananga do Japão.

Foi também ator de cinema, participando de filmes como Quero Movimento e Berlim na Batucada, de Lulu de Barros, onde atuou ao lado de Francisco Alves e Procópio Ferreira. Seu personagem Justino no filme Sinhá Moça, produção da Vera Cruz, lhe rendeu o prêmio Governador do Estado de São Paulo, entre outros.

Foi o primeiro Rei Momo negro da história do carnaval paulistano, e o foi em homenagem ao palhaço Piolin, que se encontrava muito doente na época. A verba de seu reinado foi utilizada em auxílio do amigo e Henricão foi “Rei Momo do Mundo Maravilhoso de Piolin”, como declarou no programa MPB Especial de 73, dirigido por Fernando Faro.

Compôs Deu Cupim em parceria com o jornalista e escritor J. Alcides, nascido José Alcides Barrichello, filho de imigrantes italianos.

ficha técnica gravação:

Beto Bianchi – violão

Letícia Coura – voz e cavaquinho

Vítor da Trindade – pandeiro e surdo

Participações especiais:

Celso Sim – voz

Bocato – trombone

Manoel Trindade – caixa, agogô e surdo

Chão do Bixiga

Chão do Bixiga (samba de Fernando Penteado e Elias Gomes)

A capa da revista de sambas retrata um pedaço especial do chão do Bixiga, esquina das ruas São Vicente e Lourenço Granato (que pode ser visto nesta foto de Maurício Shirakawa, tirada nos idos de 2005, bem antes das obras de agora que fizeram de toda essa história um grande buraco no chão).  Em frente à sede social da escola, que acabou de ser demolida para dar início às obras da estação de metrô Saracura Vai Vai. Esta é a luta de vários grupos organizados no bairro do Bixiga: para que o nome da estação seja esse, Saracura Vai Vai, para que as obras sejam interrompidas, pelos muitos objetos de valor arqueológico encontrados ali por conta das escavações, e para que a sede da Escola volte para o local.

Ali eram realizados os ensaios da Escola de Samba Vai Vai, única de São Paulo que praticava seus ensaios ao ar livre, com a permissão e aprovação da vizinhança.  Conquista de anos de samba, porque não foi sempre assim…

Por ali passava o rio Saracura, cujas margens eram conhecidas no final do século XVIII como esconderijo de escravizados fugidos.  Logo depois da abolição da escravidão, a região do Bixiga continuou concentrando boa parte da população negra da cidade, que chegava do interior à procura de trabalho.

Era uma região alagadiça, que em momentos de estiagem tornava-se propícia à prática do futebol.  Ali se reunia no final da década de 20, ainda às margens do rio Saracura – entre as atuais rua Rocha e Rui Barbosa, um grupo de amigos que gostava de futebol, acompanhava os jogos do time do bairro, o Cai Cai, mas se virava melhor no samba.  Passou a ser chamado de turma do Vai Vai, transformando-se oficialmente em 1930, para evitar as constantes perseguições da polícia, no Cordão Carnavalesco Vai Vai, e finalmente em 1972, no Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Vai Vai.

Fernando Penteado é neto de Fredericão, Frederico Penteado, um dos fundadores da Escola de Samba Vai Vai, integrante daquela turma de amigos.  É mistura de italiano com negro, o que o torna um típico representante das origens do bairro do Bixiga.  Presidente da Ala dos Compositores da Vai Vai, é autor de vários sambas para a escola, compondo também de vez em quando para outras escolas de samba de São Paulo.  É Embaixador Presidente do Samba Paulistano, e compôs Chão do Bixiga em parceria com o compositor Elias Gomes, apresentador oficial dos ensaios da Vai Vai.

o trio Revista do Samba no estúdio Cachuera! (2005)

ficha técnica gravação:

Beto Bianchi – violão e voz

Letícia Coura – voz e cavaquinho

Vítor da Trindade – pandeiro, tamborim, ganzá, surdo e voz

Tradição – Vai no Bixiga pra ver

Tradição – Vai no Bixiga pra ver (samba de Geraldo Filme)

show de lançamento do álbum Revista Bixiga Oficina do Samba no Teatro Oficina – 2006 – com Revista do Samba e Movimento Bixigão – foto Maurício Shirakawa

Geraldo Filme em entrevista ao programa Ensaio da TV Cultura em 1992:

“o Bixiga é um bairro que me adotou, e eu adotei o Bixiga.  Eu gosto da vida daquela gente.  Eles trabalham de dia pra cantar à noite e comer.  Sinto no Bixiga um pedaço de chão independente.  É onde reina a alegria, onde estão todos os teatros, as casas noturnas.  No Bixiga tudo é festa e o samba não deixa de marcar sua presença lá”.

Quando Raquel Trindade, pintora, pesquisadora, professora de danças populares e filha do poeta Solano Trindade, propôs o enredo Solano Trindade – O Moleque do Recife à Escola de Samba Vai Vai em 75, Geraldo Filme quis compor o samba para homenagear o amigo.  Segundo Fernando Penteado, presidente da Ala dos Compositores da escola, o enredo que poria em prática palavras do poeta, “pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte”,  já entrou como hors-concours, não precisando passar pelo processo normal de seleção da escola.  Mas a Vai Vai tem uma norma, só podem concorrer para a escolha do samba-enredo do ano os membros da Ala de Compositores da escola, e Geraldão da Barra Funda, como era conhecido até então, não fazia parte.

E o que fazer para entrar na ala dos compositores?  Primeiro, compor um samba exaltando a escola. Hum. Geraldão sumiu e todos pensaram que haviam perdido a oportunidade de ter um samba de Geraldo Filme na avenida.  Dali a pouco começam a cantar no bar da dona Odete, ali ao lado da quadra: “quem nunca viu o samba amanhecer…”  e Geraldo foi aceito como compositor da escola, concorreu com seu samba, e foi o compositor do samba-enredo de 1976 da Vai Vai.

É com este samba, TradiçãoVai no Bixiga pra ver, hoje o Hino do Vai Vai, que são abertos todos os ensaios da escola. E é ele que se canta quando a escola se posiciona pra entrar na avenida.

gravação no estúdio Cachuera! – foto de Maurício Shirakawa

ficha técnica gravação:

Beto Bianchi > violão | Letícia Coura > cavaquinho e voz

Participações especiais > Carlos Caçapava > arranjo de percussão

Percussão e Coro Bixigão > Aneliê Schinaider > surdo médio e coro |  Binha > tamborim e coro | Carolina Almeida > surdo de base, tamborim e coro | Isabela Santana  > ganzá e coro | Jéssica dos Santos > surdo agudo | Lady Glória > surdo médio e coro | Laene Santana > ganzá e coro | Mariana > caixa e coro | Monique Salustiano > surdo agudo | Talita > tamborim e coro | Xandy > agogô e coro

Solano Trindade – Moleque do Recife

De 2004 a 2006 nós, o Revista do Samba, ficamos por conta do projeto Revista Bixiga Oficina do Samba, selecionado no Petrobras Cultural, que resultou no álbum de mesmo nome, uma Revista de Sambas, e um documentário, Bixiga Samba, dirigido por Tommy Pietra e Fernando Coimbra. O álbum Revista Bixiga Oficina do Samba, com repertório de sambas do bairro do Bixiga, da Escola de Samba Vai Vai, do Teatro Oficina e do Teatro Popular Solano Trindade, interpretados pelo trio e muitos convidados ilustríssimos, está disponível nas plataformas virtuais. E a Revista de Sambas traz, além de partitura e cifras, um pouco das histórias dessas composições e seus autores.

Vou publicar alguns desses textos aqui – com o link pra ouvir o samba, só clicar –, como mais um canal pra manter essa história viva e cantada por tantas vozes. Acompanhando e ecoando o movimento pelo retorno da sede da Vai Vai ao seu ponto de origem, pela paralisação temporária das obras do metrô, e pela alteração do nome da estação pra Vai Vai Saracura.

Pavilhão Vai Vai no Teatro Oficina – foto Maurício Shirakawa

Solano Trindade – Moleque do Recife  (samba-enredo de Geraldo Filme e Aílton Filme)

“estou conservado no ritmo do meu povo

me tornei cantiga determinadamente

e nunca terei tempo para morrer”

(Solano Trindade, em trecho do poema Canto de Esperança, que escreveu para a filha Raquel Trindade.)

livro O Poeta do Povo de Solano Trindade

Solano, que em língua africana quer dizer Vento Forte, dedicou sua vida à cultura popular. Poeta, ator, pintor, cineasta, cresceu em Pernambuco, onde fundou em 1936, com o pintor Barros, Ascenso Ferreira e o escritor José Vicente Lima, a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileiro.

Em 1950, ao lado da esposa Margarida Trindade e do sociólogo Edson Carneiro, fundou o Teatro Popular Brasileiro, que apresentava uma mistura de música, dança e teatro, desenvolvidos a partir das raízes da cultura negra. O grupo, cujo elenco era formado por domésticas, operários, estudantes e comerciários, percorreu várias cidades brasileiras, viajando em 1955 para a Europa, onde se apresentou em vários países, com destaque para o Festival da Juventude Comunista em Varsóvia, Polônia.

Publicou os livros Poemas Negros, Poemas de uma vida simples, Seis Tempos de Poesia e Cantares ao Meu Povo, marcos da poesia negra brasileira. Por conta do poema Tem Gente com Fome, foi preso em 1944 e teve seu livro apreendido.

A convite do escultor Assis se apresenta com seu Teatro Popular Brasileiro no Embu, São Paulo, onde acaba fixando residência e criando um pólo cultural. Em 1975, um ano após a morte do poeta, sua filha Raquel Trindade funda no Embu das Artes o Teatro Popular Solano Trindade, dando continuidade ao trabalho desenvolvido por seu pai. Desde então o grupo vem se apresentando com frequência, difundindo cantos e danças populares brasileiros.

Geraldo Filme, amigo do poeta, tendo trabalhado com ele no Teatro Popular Brasileiro, foi o compositor do samba-enredo de 1976 da Vai Vai, Solano Trindade – Moleque do Recife. Raquel Trindade desenhou os carros alegóricos e as fantasias, tudo em preto e branco, cores da escola e de seu Orixá, Obaluayê. Nesse ano a Vai Vai foi vice-campeã do Carnaval de São Paulo. Mas o povo das arquibancadas todo cantou junto o refrão do samba “canta meu povo, vamos cantar, em homenagem ao poeta popular…” e gritou “é campeã!!….”

Beto Bianchi, Raquel Trindade, Letícia Coura, Zinho Trindade, Vítor da Trindade, Thiago Beat Box e Teatro Popular Solano Trindade no lançamento do álbum no Teatro Oficina 2006. Raquel Trindade na gravação do samba, no estúdio Cachuera!

ficha técnica gravação:

Beto Bianchi – violão

Letícia Coura – cavaquinho

Vítor da Trindade – surdo

Participações especiais:

Raquel Trindade A Kambinda – voz

Seu Maninho da Cuíca – cuíca

Naipe de percussão Solano Trindade – Daniel Camillo – caixa de congo | Manoel Trindade – caixa de congo, malacaxeta | Rafael Fazzion – tamborim | Thiago Beat Box – beat box | Zinho Trindade – voz

Coro Bixigão – Aneliê Shinaider, Binha, Carolina Almeida, Isabela Santana, Lady Glória, Laene Santana, Mariana, Talita, Xandy.

Meu adeus pro Gordo. Ou até breve . . .

Descobri outro dia que estou involuntariamente escrevendo um obituário. Tem morrido tanta gente, e numas dessas mortes vem o impulso de escrever, relembrar, fazer viver mais e sempre. Algum encontro, real ou imaginário com aquela pessoa que foi animar outros mundos, impressões de sua passagem pela nossa vida, seus rastros, sua energia, inspiração.

Ontem foi a vez do Jô. Engraçado que o chamo assim sem nunca tê-lo conhecido pessoalmente, com intimidade, eu e tantos e tantos brasileiros que cresceram assistindo a seus programas, rindo dele e de seus personagens, rindo de nós mesmos, desde criança.

Uma vez quase participei de seu programa, eu e o Revista do Samba, parceiros de boa parte de uma vida inteira. Conhecemos, nos idos de 2002 no Embu das Artes, a cantora egípcia Natacha Atlas. Ótima cantora, e super gente boa. Estávamos – o trio Revista do Samba – tocando no Garimpo, um bar restaurante – e agora também pousada – alemão, em troca de uma dívida eterna que temos com o simpático dono Hörst. Graças a ele conseguimos uma ida a Berlim que permitiu que gravássemos nosso primeiro álbum lá. O cara gosta mesmo é de rock, mas se animou com nosso samba misturado e nos levou pra tocar em sua festa de despedida dos trabalhos formais com gente do mundo inteiro. Que festa! Mas não é disso que eu vim falar aqui.

Nessa noite, no Garimpo, lá estava a cantora Natacha, por conta de um parente inglês que adotou o Embu como lar. Ela tinha vindo ao Brasil divulgar seu novo álbum, aproveitar que estava bombando por aqui por conta de uma música sua na novela O Clone, da Globo. Na época nem tínhamos gravado ainda nosso primeiro álbum. Mas ela gostou de nós, do nosso som, improvisamos juntos, ela ao microfone cantando em egípcio com nossas harmonias, melodias e diferentes levadas de samba. Distinguíamos aqui e ali em suas palavras um Ya Habib em escalas árabes, que se casaram muito bem com o nosso samba, e que agradaram aos poucos mas fiéis frequentadores do bar naquela noite fria. Foram momentos deliciosos, música e assuntos diversos com ela, o tio inglês, o anfitrião alemão, e muito samba egípcio esquentando o Embu das Artes.

Ela então se empolgou e nos convidou para repetirmos a parceria em sua participação no Programa do Jô, um de seus compromissos profissionais dos dias seguintes em São Paulo. Seus produtores não apreciaram tanto a proposta, já que estavam aqui pra que ela falasse de sua participação na novela, de sua música que estava bombando no país, da sua carreira internacional. A ideia dela cantar num programa de grande audiência no maior canal de TV do país com um trio de samba desconhecido não lhes pareceu muito boa. Mesmo assim, ela insistiu para que fôssemos ao programa, que ela tentaria nos chamar ali de surpresa, e ver se colava. E lá fomos nós, agora nem lembro se levamos instrumentos, acho que não, senão teria uma lembrança menos feliz da situação. Que só não foi uma roubada daquelas pra rir da gente mesmo anos depois porque o programa era divertido ali da plateia também, e depois rimos juntos de tudo e trocamos mais ideias sobre nossas músicas, viagens, costumes, aventuras.

Outro momento em que estive no mesmo ambiente que o Jô foi na casa de uma grande amiga, a atriz Regina Braga, em seu aniversário há uns anos atrás. Foi uma festa em que sobramos no final, pr’aqueles últimos drinks, numa intimidade gostosa de quem sabe a hora de tomar uma boa cachaça. E momentos antes lá estava o Jô na sala, e percebi que estava emocionada por estar ali respirando o mesmo ar que todos aqueles personagens que haviam povoado minha vida durante tantos anos. Ele emanava uma energia que enchia todo o ambiente, como uma luz que deixava todos ali mais animados.

E ontem estava eu lá na estreia de São Paulo, em que Regina canta seu amor pela cidade que ela escolheu pra viver, e ao final do espetáculo, a homenagem ao Jô. Que normalmente estaria ali celebrando a vida conosco, mas que naquela noite não pudera comparecer. Celebramos sua vida da melhor forma, com aplausos quentes ao final de um belo espetáculo.

Escrevo tudo isso pra fazer presentes esses pequenos e preciosos momentos. Saborear um pouco mais essas pequenas grandes impressões que experimentamos, e que já já voltarão ao turbilhão da vida. Todas essas homenagens que vêm bombando pela internet só confirmam a presença dele em nossas vidas todas, e na minha em particular, com tantos personagens que vi e acompanhei na infância e dos quais me lembro até hoje, com destaque para a cantora Norminha, “paz, amor, som, e Norminha ! ! ! wow ! ! ” ou algo assim, que repeti e repeti, e também pra Nanayá com Y, que inspiravam meus showzinhos em casa, com destaque para o PicoLetsQuel, wow wow wow wow!!!

E depois ainda os programas de entrevista. Se alguém ainda acha que dá pra ser neutro nesse momento político do país, ou ainda acreditar que pode ser artista e de direita, torço pra que se depare com trechos de alguns programas compartilhados pelas redes, como com o patético lavajatista Dallagnol, ou na contracenação com um inesperado bolsonarista da plateia, nas conversas sobre o impeachment, e tantos outros bons momentos vividos nas madrugadas televisivas. Não estava acompanhando mais esse momento do Jô, e deu uma esperança na humanidade de ver como ele se posicionava durante as entrevistas. E pra terminar a manhã com chave de ouro, li ainda uma carta dele aberta ao presidente, dando uma esclarecida sobre o nazismo. Sempre com humor, mesmo nesses assuntos não muito engraçados.

Mais um artista que se vai e nos deixa nesse mundo que atravessa esse momento tão esquisito. Também momento de grandes transformações. Pegando emprestada a frase do filósofo italiano Antonio Gramsci, que trouxe pra casa num cartaz da última Bienal de São Paulo e que mantenho na porta da cozinha: “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros”. E aqui continuamos nós no mundo agonizante, agora tendo que contracenar com os monstros sem o auxílio luxuoso do aliado humor do Jô.

Que a gente continue aprendendo com ele a desconstruir esses monstros, de preferência com humor, a arma mais poderosa. E a seguir seus exemplos de colocar em prática as palavras de outro palhaço, o da burguesia, como se autodenominava o antropófago Oswald de Andrade. Transformar o tabu em totem. E Viva o Gordo ! ! !

Esse samba dá história . . . ou vice-versa

tudo preparado pra começar as gravações dos 20 anos de Revista do Samba no Teatro Popular Solano Trindade, no Embu das Artes – março/abril 2021

Tenho esse personagem sambista que me dá muitas alegrias nessa vida. E estamos comemorando – dentro do possível que esse verbo possa ter de sentido nesse momento – 20 anos de Revista do Samba, nosso trio criado lá atrás, por amor ao samba, à amizade, e ao prazer de tocar e cantar junto. E que hoje, talvez mais do que em toda a nossa trajetória, é tão importante pra gente lembrar quem a gente é, que cultura tão rica que temos, que música maravilhosa, e sim, que pessoas legais e criativas, que criaram esse gênero, essa música, essa dança, com uma história tão diversa quanto interessante e instigante.

É um pouco de tudo isso que procuramos passar com esse projeto, com essas apresentações, lives, shows, não sei que nome dar a isso que fizemos, um trio de dois no mesmo lugar e um em outra cidade, usando e abusando do que conhecemos dessas tecnolorgias – sim, foi assim mesmo que escrevi – atuais, pra poder cantar e tocar, e chegar às pessoas.

Esses são os movimentos – 6 ao todo, como pedia o edital –, cada um abordando um trabalho, um álbum, cada um com um repertório diferente, tendo no último nosso gran finale das mais mais, selecionadas entre as tantas que tocamos tantas vezes nas nossas tardes e noites de samba e outras aventuras. Esse texto é um convite pra conhecer um pouco das histórias dos sambas e dos sambas das histórias, que fomos entrelaçando com as nossas, e pra ver e ouvir a gente lá no YouTube – Revista do Samba Oficial. Continuo acreditando que é com essa alegria que vem lá do fundo da nossa cultura e alma que vamos conseguir atravessar esses tempos de prov(oc)ação.

20 anos Revista do Samba - flyer

Beto Bianchi, Letícia Coura e Vítor da Trindade, no início dos trabalhos do trio, ano 2001. foto de Paulo Sommer, no estúdio PAC do percussionista Dudu Tucci, em Berlim.

Esse projeto nos possibilitou também revisitar algumas histórias que fomos colecionando nesses 20 anos de samba, de viagens e shows pelo mundo. Falo um pouquinho delas a seguir.

 

As primeiras viagens

Sempre associei nosso início das viagens – e da maravilhosa carreira internacional! – ao 11 de setembro. Acordei com um telefonema do – agora extinto – Ministério da Cultura: “Letícia Barbosa Coura? você não vai querer as passagens?” Custei a entender. Era 2001, eu estava no meio do processo de ensaios do espetáculo Bacantes do Teatro Oficina. “Duas passagens, Revista do Samba, é isso?”, a voz perguntou do outro lado. Sim ! ! respondi já então animada, lembrando da nossa tentativa no edital com o pedido de duas passagens para Berlim, para nos apresentarmos como Revista do Samba. Vítor já estava na Alemanha, as passagens seriam para mim e para o Beto. Foi uma surpresa, super em cima da hora, e ficou a impressão de que conseguimos as passagens porque alguém provavelmente havia desistido de alguma viagem, por conta do medo que se instaurou no mundo logo após o ataque às torres gêmeas. E assim fomos, intrépidos, para o outro lado do Atlântico, dar o pontapé inicial para uma bela e promissora história de shows em vários países, e participações em muitos festivais de música por esse mundão afora.

 

Paquistão e o Rasta-pé do cercadinho

Revista do Samba no World Performing Arts Festival em Lahore, Paquistão, 2006.

Fomos parar no Paquistão em 2006. Esses telefonemas em horários inusitados com surpresas realmente surpreendentes. World Performing Arts Festival, realizado em Lahore, quase na divisa com a Índia, reunindo música, teatro, teatro de bonecos, poesia, dança. Foram 10 dias de muita arte, muita troca com artistas de muitos países diferentes, e uma enxurrada de cores, sons, idiomas, comidas. Por indicação dos organizadores do festival, fomos a uma cerimônia sufi, na companhia de um bailarino francês, alguém da embaixada brasileira e um simpático paquistanês que se dispôs a ir como nosso guia, nos iniciando nos mistérios locais. Eu era a única mulher do grupo, e passei por uma experiência que felizmente acabei conseguindo transformar em samba, o Rasta-pé do cercadinho. Como o nome já sugere, tive que assistir à cerimônia separada de meus companheiros homens, sentada sozinha num cercadinho, onde os participantes deixavam seus sapatos. Pra saber um pouco mais da história, só ouvir o samba e deixar o esqueleto balançar…

 

Samba no Monte das Oliveiras

RDS Monte das Oliveiras

Em 2005 fomos tocar em Israel. Eu estava em cartaz com Os Sertões, no Teatro Oficina – 26 horas de peça no total –, e a vida foi bem alucinante nessa época. Me lembro de pagar uma daquelas massagens de aeroporto, porque ia viajar a noite inteira depois de fazer uma peça de 6 horas… Daí já dentro do avião, antes de apagar e acordar do outro lado do Atlântico, descobri no guia que tinha comprado que Tel-Aviv, onde íamos nos apresentar, era uma cidade à beira-mar… ignorâncias à parte, na hora de passar na alfândega, acho que pra entrar no país, nos pararam com as bagagens. Um rapaz bem jovem – como eram os policiais e militares em geral que vimos em Israel – queria saber o que era aquele objeto estranho, perguntou se era algum tipo de arma. Vítor explicou então que era um instrumento musical, e não pareceu convencer o funcionário da imigração. Contamos que éramos um trio brasileiro que tocava samba, e nada. Daí Vítor pegou o berimbau e começou a tocar, e logo outro rapaz, agora com o uniforme do exército, se aproximou animado e começou a ensaiar uns passos de capoeira. “Conheço, é capoeira!”, e logo puxou conversa com o Vítor sobre essa dança luta brasileira, várias pessoas se aproximaram pra ver os passos e ouvir aquele instrumento estranho em ação. Por um breve momento aquela parte do aeroporto se descontraiu com um pouco de música e dança.

 

Do outro lado do mundo

em frente ao Palácio Imperial em Seul, Coreia do Sul, 2009.

Em 2009 fomos convidados para um festival em Seul, na Coreia do Sul. E de lá fomos tocar em uma outra cidade coreana, à beira do mar do Japão, Gangneung. Tocamos num belo teatro e também no mercado de peixes, lugar maravilhoso e indescritível, com tantos peixes que nunca tinha visto na vida, muito menos saboreado… e no jantar da noite pós-show dei o meu primeiro fora ao tentar escolher alguma iguaria da cozinha coreana, sem entender nada no cardápio, e perguntei se eles tinham sushi – de peixe, já que tínhamos acabado de conhecer o mercado. Ao que o produtor da cidade com uma cara não muito amigável respondeu que sushi de peixe era ‘coisa de japoneses’. Me senti uma daquelas pessoas que muito animadas chegam no Brasil e perguntam da capital, Buenos Aires… Mas para compensar minha gafe, tinha aprendido no camarim, com uma moça que nos acompanhou na cidade, a cantar uma canção coreana, da qual consegui cantar um pedaço pro nosso anfitrião, melhorando um pouco minha imagem com ele. E quando voltei pra peça da época, Cacilda!! – é, continuava na minha vida dupla entre o teatro e o samba –, ainda consegui fazer o público cantar em coreano comigo. Tinha uma cena no meio do segundo ato, que servia pra acordar parte do público desavisado em uma peça de 6 horas, em que eu ‘interpretava’ uma preparadora vocal que fazia um aquecimento com o público. Normalmente eram exercícios de voz, mas nesse dia o público – e elenco – cantaram comigo: A ri ranga há, ri ranga há ! ou algo assim …

E a experiência na Coreia do Sul ainda deu outro samba, o Kamzahammidá, como conseguimos dizer obrigada em coreano..

 

Saara, Atlas, Marrakesh . . .

Letícia Coura e Vítor da Trindade em Rabat, Marrocos, 2007. Em frente ao cartaz anunciando o show do Revista do Samba no Festival Mawazine.

Depois do nosso maravilhoso show em pleno Saara, resolvemos continuar no Marrocos, aproveitar a oportunidade e ir conhecer Marrakesh. Sim, Marrakesh!, a cidade dos hippies, a terra prometida dos doidões, do imaginários de príncipes, reis, califas, camelos… continuaríamos por nossa conta – e risco –, e logo percebemos a mudança de patamar quando o táxi chegou. Era um carro bem pequeno, e nós com todas aquelas bagagens de músicos, olhamos meio desanimados pro cara do hotel. Ele logo então se prontificou e chamou outro táxi. Em seguida chegou um Mercedes Benz, e pensamos, uau!, nos demos bem ! entramos no carro animados, com nossas malas, instrumentos, íamos até a rodoviária pegar um ônibus que desceria os Atlas até Marrakesh. Mas o caminho até a rodoviária era longo, e logo percebemos que o táxi não era só pra nós, e parecia pegar todo mundo que estava no caminho, humanos e mais alguns animais como galinhas e cabras. E malas. . . .

E em Marrakesh, ao lado da praça . . . , precisávamos de uma informação pra nos localizarmos por ali, e eu sabiamente perguntei pra uma moça que passava por nós. NiquI ela começou a nos indicar como chegar no local que procurávamos, passou um rapaz muito falante, simpático, dando a entender que conhecia a cidade mais que a moça, falando mais alto, gesticulando, e meus parceiros deram ouvidos a ele… a moça fez uma cara que na hora não consegui ler muito bem, meio de preguiça do cara, e não querendo competir quem falava mais alto, acabou indo embora. Resultado, fomos atrás do cara, e logo chegamos na casa de um primo dele, que nada tinha a ver com o endereço que procurávamos, mas o primo tinha uns tapetes muito bonitos – e bem caros – para nos oferecer . . .

curta nossa página e nossa música no YouTube ! só clicar: Revista do Samba Oficial

 

 

Um samba pra Beth Carvalho

Captura de tela 2019-05-01 15.23.06E lá se foi Beth Carvalho. Difícil não pensar que o Brasil vai ficando mais triste. E que a responsabilidade de não deixar a peteca cair vai ficando cada vez mais na nossa mão.

Tive a alegria de conhecer pessoalmente Beth Carvalho no Rio de Janeiro, na Tijuca, há mais de vinte anos atrás, numa ida com o letrista Costa Netto para tratar de assuntos da Dabliú, seu selo que ia lançar meu primeiro cd, o Bam Bam Bam. Que delícia uma noite de samba na casa do compositor Moacyr Luz, recém colega de gravadora e vizinho de prédio de Aldir Blanc, que também estava lá. Muita cerveja muito gelada, cachaça daquelas que descem acariciando a garganta e esquentando o corpo todo, tira-gostos maravilhosos, uma fartura danada, e a música que não parava. Muito bamba do samba, o violão que passava pra lá e pra cá, Beth no cavaquinho…

Sentei num canto ouvindo a música, tomando cerveja, cachaça, experimentando a petiscada carioca, sem conhecer ninguém mas já conhecendo todo mundo, e engreno uma conversa com um cara ao lado, falamos de sambas, música brasileira, ah, essa é demais, do fulano… adoro esse outro samba, uau, tava pensando nesse, ele então me contou que estava fazendo um livro com os sambas mais mais de todos os tempos, daí perguntei o nome dele, ele disse Almir. Uns dez segundos se passaram e eu entendi: Almir ! você é o Almir Chediak !!!, ele realmente me parecia familiar, daí agradeci muito a ele, graças às suas harmonias caprichadas tinha aprendido a tocar melhor meu violão, seus songbooks que me ensinaram tanto e me fizeram enveredar pela harmonia da bossa nova, do samba e da música brasileira de vários compositores e gêneros diversos. Que alegria de novo estar ali aquela hora, poder ouvir, trocar, e sim, agradecer todo aquele aprendizado e inspiração.

Lá pras tantas, já animada pela cerveja, pelo samba, pela cachaça, pelas conversas inspiradas, me vejo sentada ao lado dela, a madrinha do samba, a Beth Carvalho da voz rouca, estou cantando com ela, todo mundo cantando junto, feliz. Daí pergunto se ela conhece o Ziriguidum. Imagina se a Beth Carvalho, a rainha do Ziriguidum, não conhece o Ziriguidum … perguntei empolgada, tinha feito a mesma pergunta no camarim depois de um show da Elza Soares. Era o Ziriguidum cantado por ela e Monsueto numa gravação hoje facilmente encontrada no youtube, parte do filme Briga, Mulher e Samba, de 1961. É um samba irresistível, que a própria Elza Soares não se lembrava de ter gravado. Na empolgação da noite, perguntei a Beth Carvalho se ela conhecia – tipo aqueles chatos sem noção que ficam pedindo ‘aquela’ música – e ela muito naturalmente disse que não, e pediu então que eu cantasse pra ela conhecer. Ih. Agora ali não podia fugir, de onde tirei a ideia de fazer essa pergunta, maldita espontaneidade etílica, agora estava eu ali com um violão na minha frente, com um Ziriguidum a executar pra Beth Carvalho conhecer o que é Ziriguidum .. . . através de mim. Mais outros dez segundos, fazer o quê, peguei o violão, cantei, ela foi cantando junto, perguntou de quem era, Monsueto, eu disse, adoro Monsueto, ela completou, e eu feliz contei a história do camarim com a Elza Soares, duas rainhas do Ziriguidum para quem tive a honra de cantar o Ziriguidum.

Depois fui a um show dela aqui em São Paulo, e ao final fui ao camarim agradecer a noite cheia de Ziriguidum, e encontrei lá muitos compositores com um samba na mão, na esperança de ter um samba seu imortalizado na voz de Beth Carvalho, como tantos outros antes, de Cartola a Zeca Pagodinho.

Outros anos depois fomos tocar – o trio Revista do Samba, meus parceiros Beto Bianchi, Vítor da Trindade, e eu – num festival no sul da França e mais tarde no mesmo festival assistimos a um show dela numa arena romana, e cantamos juntos a plenos pulmões Andança – aquela mesma que não aguentávamos mais cantar nem ouvir em alguma roda por aqui – nós e todos os brasileiros que foram lá matar um pouco da saudade do Brasil, uma emoção e um orgulho da riqueza da música brasileira encantando e alegrando o mundo. E no fim do show uma Beth Carvalho meio contrariada de ter que acabar o show antes do show acabar, tendo que seguir um horário francês de festival com muitas atrações, d’accord, uma cultura que influenciou o mundo inteiro, mas que não sabe como funciona uma roda de samba.

Depois tantas vezes vendo Beth Carvalho lançar novos sambistas, sempre presente nos atos em favor da democracia, e cantando o samba do #LulaLivre na internet.

Hoje o Brasil está um pouco mais triste. O Almir já se foi tempos atrás, deixando o Brasil mais desarmônico, agora a Beth Carvalho foi fazer um samba com Cartola noutros mundos, e as rosas daqui vão falar ainda menos. Lembrando daquela noite lá na Tijuca, vem o sentimento de responsabilidade pra nós, que conhecemos e vivemos o Brasil com esses artistas, um tempo de esperança, de criação, com a cultura daqui sendo valorizada aqui e no mundo, encontrando meios de compor, cantar, divulgar essa música brasileira tão diversa e rica por todo canto. A hora é de ter cada vez mais esses artistas conosco, nos inspirando. Os podres poderes vão e vêm, sobem e caem, mas o samba continua fazendo o mundo todo e até Marte rebolar. E fico – e deixo vocês – com a voz da carioca Beth Carvalho mergulhando no samba paulista, cantando a Tradição do compositor Geraldo Filme, que há décadas atrás já compunha contra a verticalização do bairro: quem nunca viu o samba amanhecer, vai no Bixiga pra ver, vai no Bixiga pra ver . . .

[:pb]On Se Comprend, Sans Tradução, ou Tradução / Traição . . .[:]

[:pb]Estou penando aqui pra traduzir Alfred Jarry. Ontem fiz faxina na casa, usei a furadora que esperava há dias na sala pra ser usada e instalei finalmente a rede da subida do rio Amazonas, li os atrasados guardados, estudei, lavei louça, roupa, e mais, mais, tudo pra postergar um pouco mais o momento da dúvida, esta ou aquela palavra, ou será que tem outros sentidos que não descobri, será que ele quis dizer exatamente o contrário, tem humor, ironia, ou desta vez ele está apenas dizendo o que queria dizer, simplesmente, ou, ou . . . .

Dessas torturas que a gente cria pra gente mesmo, aquilo que eu fazia com prazer e simplesmente porque queria, de repente é uma responsabilidade, um compromisso, um trabalho, daí tudo outro parece melhor e mais importante e mais urgente.

Só pra dizer que sofro aqui traduzindo, mas gozo gozo, quando descubro a palavra certa, ou invento algum sentido, ou entendo ou acho que entendo o que ele quis dizer. Não posso perguntar pra ele o que ele quis dizer, mas se fosse possível, será que perguntaria?   Na minha (nada) humilde e árdua tarefa de tradutora, às vezes me sinto tão escrava e outras tão livre, resumindo, é bom. Eu gosto. Sofro sofro, mas qual delícia não sofre junto??

capa cd Hortênsia du Samba

capa cd Hortênsia du Samba

E nesses labirintos das línguas, hoje fiquei feliz de saber que nosso cd bilíngue, bi várias coisas, parcerias variadas, nosso Hortênsia du Samba, parceria do Revista do Samba (esse trio que me dá tantas alegrias há tantos anos, com meus parceiros Vítor da Trindade e Beto Bianchi) e da banda francesa Tante Hortense, está agora disponível nas redes de música virtual, ITunes, Spotify, Deezer, e tal. Foi um trabalho tão único, invenção e proposta do compositor francês Stéphane Massy, que conheci por causa e no Teatro Oficina, e que nos convidou – o Revista do Samba – pra fazer um trabalho juntos. Nos reunimos primeiro em São Paulo para as criações – já havíamos trocado algumas ideias virtualmente – e primeiros shows, daí logo gravamos. No Estúdio Outra Margem do Paulo Lepetit, com produção musical luxuosa dele. Isso foi em 2009. Em 2011 fomos à França lançar o cd, com shows em Marseille, Paris, Aix-en-Provence e Lille. Daí ficou a vontade de tocar mais juntos, fazer mais coisas, e acho que nesse ano de 2017 conseguiremos. O cd teve uma primeira tiragem, que já está esgotada, tivemos tipo um tube, a canção Le Bel Amant du Berry, que entrou na programação de algumas rádios francesas, críticas boas por lá, e agora que bom!, hora de divulgar de novo. Não chegamos a fazer shows de lançamento aqui, com o cd já pronto, mas enquanto gravávamos tocamos no Oficina e na Cidade Tiradentes, o que foi bem ótimo e nos preparou pros shows franceses. Nos demos bem em cena.

O trabalho de criação em parceria foi uma experiência de ter que criar alguma coisa naqueles dias com aquelas pessoas. Algumas já íntimas pessoal e artisticamente e outras que conhecíamos ali naquele dia e hora. A banda Tante Hortense: Stéphane Massy que inventou a história toda, que já era um amante do Brasil, da música daqui, compositor cheio de ideias e muitas palavras, M-Jo cantora doce, minimalista, alquimista de sons sutis, Christophe Rodomisto, guitarrista elegante e chic das melhores notas, Jean-Phi baterista amante e parceiro de teatro e dança, e meu companheiro cavaquinista Eddy, com seu jeito marselhês único de tocar cavaco, e nós três, os Revistas: Vítor com seu mundo dos ritmos e ancestralidades, Beto com suas harmonias pop e swing contradizendo a máxima infeliz do poeta, e eu com a minha cara-de-pau esculpida no teatro e meu cavaquinho Paulinho da Viola. Numa casa lá no Embu das Artes e depois aqui em SP, Oficina, estúdio e os shows, tocando e cantando juntos.

As canções, algumas já prontas que encaixavam no projeto, outras feitas nas parcerias com prazo determinado, parcerias de dois, três, quatro, ideias nascidas ali, todos criando o arranjo juntos – no total somamos 8, 5 do Tante Hortense e 3 do Revista do Samba.  Misturar os idiomas, trocar as línguas, musicar palavras francesas com ritmos brasileiros e vice-versa, cantar em português e francês, inventar uma língua comum, a compreensão e não compreensão. Duas canções que falam disso, On Se Comprend e Sans Tradução, o amor entre uma brasileira e um caipira francês, Le Bel Amant du Berry, a São Paulo Big Brother Grande Irmão, o samba-enredo da cidade do Rio de Janvier em francês, uma Baleia no rio Sena, uma Piroca no pulso, uma tristeza com algo de chic na bossa Je Suis Aussi, La Révolution que começa pelo cu, La Vache surrealista e a máquina de moer tudo isso e mais outro tudo, Moissonner et Battre. Uma viagem a partir das cinco semanas que experimentamos criar juntos, trabalhar e dividir intimidades e dia-a-dia.

(*pra ouvir as canções é só teclar no título da música em azul).

Pra quem entende as duas línguas ouvir pode ser uma viagem divertida e cheia de sentidos, pra quem entende uma pode adivinhar a outra na música, talvez entenda mais, descubra outros sentidos. Pra quem gosta desse mundo da tradução traição, um descanso, ou um desafio, ou um deleite.

Escrevi tudo isso pra fugir um pouco do Jarry, e volto a ele já com saudade. Um pouco mais musical. Fica a dica então, entra lá – ou por aqui mesmo – e ouve. Hortênsia du Samba. Um exercício real pra compreensão do outro, ou puro deleite. Um pouco mais disso no mundo e estaríamos mais em paz.

 

De onde apareceu, passou, já foi

ou vai ser bom

Dans la confusion

J’étais content . . . . .

 [:]

r e v i s t a do samba no Paquistão – e o Rasta-pé do cercadinho

Lahore, Paquistão

World Performing Arts Festival, jardins do príncipe Shah Jehan e ´cercadinho´ pras mulheres

na loja:
– quero uma roupa feminina, gostei daquela, laranja.
– tem também esta azul, aquela é seda do norte do …
– eu quero só uma mesmo, obrigado.
– só uma?
– é, eu só tenho uma mulher.
– que pobreza…

E assim meu parceiro Vítor da Trindade, percussionista, comprou o presente pra sua única esposa. Com ele e o violonista Beto Bianchi, formamos em 99 o Revista do Samba, pra tocar os sambas que mais gostávamos misturados às nossas aventuras pelo gênero. Mal sabíamos até onde iríamos por conta disso. Pela Internet, o convite. Lahore, Paquistão, pra participar do World Performing Arts Festival.

Lahore, cidade com mais de 2000 anos de idade, capital da província de Punjab, fronteira com a Índia e capital cultural do Paquistão, onde nasceu o príncipe Shah Jehan, que construiu pra sua amada e pro mundo o Taj Mahal. Em São Paulo nem um guia para o país que talvez esconda (escondia mesmo, esse texto foi escrito em 2008) Osama Bin Laden. Juntei informações da Internet às fornecidas pelo festival, e soltei a imaginação.

Depois de 20 horas de vôo divididas por uma espera de 10 horas no aeroporto de Londres, chegamos pela manhã em Islamabad, capital do Paquistão, onde um simpático funcionário da embaixada brasileira nos recebeu no aeroporto pequeno mas com lugar atapetado garantido e cercado pra quem quiser rezar. Seguimos de carro para Lahore, a 380 km dali. Pela janela horizontes desertos sem fim, um chão arenoso em tons de bege e cinza, colorido de tempos em tempos pelas roupas multicores e esvoaçantes de trabalhadores do campo ou andarilhos indo de um nada pra outro. E pelos ônibus e caminhões, também coloridos, cheios de desenhos, bordas trabalhadas, lotados de coisa e de gente.

Nas paradas o motorista nos ia apontando integrantes do Taliban, identificados pelas roupas e comprimento da barba. Aos poucos saberia reconhecê-los pelo olhar. Uma mistura de medo e desprezo: mulher e ainda sem véu…

A chegada se deu por uma periferia sem fim, até chegar na parte rica da cidade, mostrando uma disparidade que bem conhecemos entre uma classe alta, ocidentalizada ou não, e o ´resto´. Um trânsito que pode ser comparado ao dobro do volume de carros de São Paulo, mas com os motoristas do Rio de Janeiro… motos carregando famílias inteiras, um homem, uma ou duas mulheres (sempre sentadas de lado), o bebê e as crianças. Algumas carroças puxadas por cavalos e muitos táxis triciclos, com a audácia dos nossos motoboys. E todos andando ao contrário, que lá foi colônia inglesa, quando tudo ainda era a Índia. O Paquistão passou a existir como país de maioria absoluta muçulmana com o fim do Império Britânico na região em 1947.

O festival

Dez dias e noites de música, teatro, teatro de bonecos, cinema e dança. Artistas de quarenta países diferentes, de todos os continentes. Sete salas-tenda para dança, teatro e teatro de bonecos, três espaços para cinema e teatro, e um palco arena ao ar livre para os shows musicais, com capacidade para quatro mil pessoas. O World Performing Arts Festival acontece em Lahore desde 1992, quando começou como um festival de Teatro de Bonecos, organizado pelo Rafi Peer Theatre Workshop, da tradicional família de artistas Peerzada. É hoje o maior festival do sudeste da Ásia, e um dos principais eventos a promover a troca cultural e artística entre Oriente e Ocidente.

O convite é feito para que os artistas se apresentem, mas também para que permaneçam durante todo o evento. Assim vivemos intensamente em Lahore os dez dias do festival, e pudemos assistir espetáculos de linguagens diversas, tradicionais e contemporâneas, e ainda conhecer os maiores nomes da música paquistanesa. Três noites foram dedicadas à música local: a Mystic Soul Night, para a música de inspiração sufi, a mística islâmica; Ghazal Night, dedicada aos poetas, inesquecível pelo silêncio e concentração do público, e o encerramento do festival, a Classic Night, com representantes das mais importantes famílias de forte tradição musical no país – porque o conhecimento musical no Paquistão é transmitido pelas famílias, e pelo nome do artista já identificamos seu estilo.

O Samba e o Tango

Em um dos shows tivemos a participação especial de um grupo formado por argentinos e espanhóis que vivem em Barcelona, Conexion Tango. Tocamos juntos “O Samba e o Tango”, com um final apoteótico numa mistura bem-humorada dos ritmos. Mistura que agradou ao nosso embaixador que acabava de chegar da Índia (inimiga política do país), e considerou pertinente o exemplo não só de tolerância mas de amizade entre dois povos vizinhos. Desde que não se fale em futebol…

A dançarina argentina no seu vestido colado ao corpo e pernas descobertas dançando grudada em seu parceiro chileno, num país onde as mulheres andam um passo atrás dos homens, cabeças cobertas e roupas que não deixam transparecer uma única curva, e não dançam em público; o bailarino que dançou a dança de Shiva, mas quase não se apresenta mais devido à onda conservadora do país e o preconceito com as tradições indianas; os iranianos e as flores para as bailarinas americanas que apresentaram uma dança típica de seu país mas que é hoje proibida pelo governo fundamentalista do Irã; a bomba que explodiu no ponto do ônibus entre o hotel e o festival, a Xuxa ucraniana, a banda paquistanesa/americana de punk rock, os tapetes de tantas cores e desenhos, a amabilidade dos paquistaneses, as conversas sobre Deus, os jogos de críquete nos parques, o estádio de hockey, os talibans da estrada.

A cabeça rodando, entro no quarto do hotel, e pra tentar dormir ligo a televisão. MTV da China, filmes de Bollywood, musicais indianos, noticiários em árabe, ou urdu e punjabi, idiomas paquistaneses, muitos homens barbados, tento distinguir se é uma rede pirata falando do próximo ataque terrorista, ou apenas o jornal da noite. Melhor tentar as ovelhas.

Baco

Folga. Um passeio à tarde pelo mercado, cheio e animadíssimo, artigos de mil e uma noites, todo o imaginário de Ali Babá, Alladin e Sherazade, ali ao alcance dos olhos, das mãos, e de algumas rúpias. E para escolher com calma a melhor combinação de cores de véus, écharpes e roupas de seda, ou proveniência do tapete, chá de menta. Pra brindar à vida entramos no restaurante de um hotel cinco estrelas, e perguntamos logo ao garçom que vinho ele teria para nos oferecer – haviam nos indicado que em hotéis assim teríamos acesso a hábitos ocidentais. Ele ficou branco, e olhando para os lados e falando baixo, disse-nos que ali não serviam bebidas alcoólicas, explicando, são todos muçulmanos, seria uma afronta beber na presença deles. E num tom mais baixo ainda, se vocês tiverem sua própria garrafa, podem tentar conseguir um quarto para bebê-la… Ele só não nos indicou onde poderíamos encontrar a tal garrafa, então desistimos da comemoração e voltamos ao festival.

Educação sexual no museu e o rasta-pé do cercadinho

Lahore é uma metrópole, aproximadamente 10 milhões de habitantes, com grandes jardins e monumentos erguidos na época áurea da cidade, sob o Império Mongol, que durou do século XVI ao XIX. Destaque para o Shalimar Garden, terminado durante o Império de Shan Jehan, o forte e as muralhas da cidade. É uma pena que como não muçulmanos não possamos entrar nas mesquitas, mas pode-se passear pelos jardins, pátios e corredores que as cercam. A mesquita Badshahi é a maior de arquitetura Mongol do país, finalizada em 1674. Andar descalça por ela, ouvindo o canto que chama para uma das orações do dia ajuda a compreender a religiosidade do lugar. O museu da cidade, o Lahore Museum, apesar de ser um dos maiores do sul da Ásia não é muito grande em comparação aos museus europeus, mas apresenta pinturas e esculturas greco-budistas, peças tibetanas, instrumentos musicais, além de uma detalhada exposição de fotos da fundação do país.

A visita ao museu foi especial graças a um garoto de dezessete anos que passava suas tardes ali. Começou me explicando cada peça, e foi então me perguntando de onde eu era, se era casada, o que fazia ali. Nisso entraram alguns barbudos, e ele me fez notar que todas as mulheres naquele momento cobriram as cabeças e mesmo os rostos, e me encorajou a fazer o mesmo. Perguntei porque e ele me explicou que aqueles eram religiosos, e que era um sinal de respeito eu me cobrir. Perguntei porque novamente, e na seqüência acabei respondendo a tantas perguntas, praticamente uma aula intensiva de educação sexual, movida por uma compaixão instantânea por aquele garoto no auge de sua juventude, sem nenhuma informação sobre o sexo oposto e uma solidão de chorar.

Aliás é de se reparar a grande intimidade física existente entre os homens, em contraposição ao ostensivo recato imposto às mulheres.

Como estrangeira escapei um pouco dessa imposição, mas tive uma boa demonstração da condição feminina na vida cotidiana da cidade. Fomos a uma cerimônia sufi, em companhia de um sociólogo francês, um guia amigo paquistanês e o embaixador brasileiro. Quinta-feira à noite, bairro afastado. Uma árvore imensa, e sob ela uma pequena multidão sentada em roda no chão, acocorada nos galhos das árvores e pelos degraus que davam no mausoléu de um poeta. Dois Ogans tocando dhols, tambores enormes pendurados no corpo, e no meio homens em transe rodando sem parar, alguns com impressionantes movimentos frenéticos de cabeça, que pareciam querer desenroscar do pescoço. Encontramos um lugar na roda, e imediatamente me fizeram sinal pra não sentar ali, apontando-me um cercadinho onde todos deixavam os sapatos. Obedeci. Não foi exatamente amigável a maneira como me indicaram o lugar. Sentada sozinha, literalmente cercada por uma tela de arame, constatei que eu era a única mulher ali, e o fato de ter coberto a cabeça com um véu não os fez muito mais simpáticos à minha presença. Acabada a cerimônia fomos visitar o mausoléu do poeta, e de novo fui barrada na porta, e também não ganhei o belo colar de flores reservado aos visitantes – homens. Fui então até o pátio onde descobri outras mulheres, sob uma outra árvore centenária enorme, cheia de papeizinhos com pedidos e agradecimentos. Havia uma calma especial ali, e o guia paquistanês veio me fazer companhia. Mas a sensação desagradável da segregação não saiu de mim. Só um ano depois, e com o auxílio luxuoso do humor, vomitei essa experiência na forma transformadora de um samba. O Rasta-pé do Cercadinho, minha singela vingança, quem sabe um grão de areia no deserto das lutas pelos direitos das mulheres…

Muitas contradições num país que quase elegeu uma mulher pra Presidente (Benazir Bhutto, assassinada no final de 2007), que admite cada vez mais mulheres nas universidades, mas que ainda permite por lei a poligamia para os homens. Uma música belíssima e poemas de encontro com o amante divino, uma religiosidade que permeia todos os detalhes cotidianos, mas a constante e crescente pressão de grupos fundamentalistas. O amor e ódio em relação à cultura ocidental.

Depois de tantas aventuras, tanta informação e troca entre universos tão ricos quanto distintos, fica a certeza de que a arte, com sua liberdade infinita, é o caminho mais curto e eficaz para a comunicação entre as pessoas. Principal acontecimento cultural da cidade, quiçá do país, o World Performing Arts Festival realiza sua imensa contribuição ao esforço de compreensão e assimilação das diferenças, e mais que tolerância, promove a curiosidade e o interesse pela diversidade cultural, através do enriquecedor encontro de artistas. E se é que a vida imita mesmo a arte, então temos alguma esperança.

o que ouvir:

família Ali Khan

. Nusrat Fateh Ali Khan – considerado maior cantor paquistanês de Qawwali, forma musical nascida do encontro desde o século XII entre as tradições poéticas e musicais de monges sufistas vindos da Pérsia e a devoção musical de populações locais.
. Sain Zahoor – cantor de origem rural da região de Punjab, cresceu cantando em santuários sufi, e é hoje um dos principais divulgadores de poetas sufi e da música tradicional paquistanesa.

cantoras

. Reshman – natural de família cigana do Rajastão, cantou na infância em santuários Sindh, e é hoje uma das cantoras mais populares do país, tendo gravado muito para filmes tanto paquistaneses quanto indianos.
. Tina Sani – cantora Ghazal também bastante popular, de tradicional estilo Punjabi.
. Zarsanga – também de família cigana, conhecida como a Rainha da Música Pashto.

onde ir:

Shalimar Garden
Badshahi Mosque
Lahore Museum

World Performing Arts Festival
todo ano, mês de novembro
Complexo Cultural Al Amrah

 

 

revista do samba e a Mesquita Badshahi

trio Revista do Samba no pátio da Mesquita Badshahi – Lahore, Paquistão

  • esse texto foi escrito para a revista Lugar, da Folha de S.Paulo – publicado em dezembro 2008.  e fomos lá tocar no World Performing Arts Festival  em 2006.

TIA CIATA NA FIESP

tia Ciata abriu o seu terreiro e garantiu o samba frente à repressão

*tia Ciata abriu o seu terreiro e garantiu o samba frente à repressão 

 

O pior cego é aquele que não quer ver.

Voltando de mais uma manifestação contra o golpe, passei em frente à Fiesp. A “nossa” não tinha muita gente, pelo menos não muita gente em proporção à quantidade de policiais nos impedindo até de passar pelo vão do Masp.

Com certo medo do que está por vir, olhando pro imenso carro de som parado em frente à Fiesp com aqueles bonecos infláveis horrendos – hoje o pato não foi, provavelmente pros patrocinadores da ‘manifestação’ não terem que pagar direito autoral -, vejo tia Ciata.

Fiquei pensando se os músicos que estavam tocando no caminhão de som da Fiesp tinham visto aquela homenagem à tia Ciata bem ali em frente. Aliás a Paulista inteira está homenageando o centenário dessa música que faz o Brasil conhecido e amado em boa parte do mundo. Muito mais – e ainda bem! – do que o narigudo ‘dono’ da Fiesp ou qualquer político brasileiro fora o Lula.

Eles estavam tocando no carro um samba ridicularizando o PT. A parte que ouvi eram uns versos criticando a ciclovia do Haddad, dizendo que estavam vazias e que não tinha ninguém pra pedalar. Olhei pra pista, e naquele exato momento uns dez ciclistas desviavam dos ‘manifestantes’ que a ocupavam, obrigando-os a sair da ciclovia. Se o cantor não conseguiu – ou não quis – ver esses ciclistas, a tia Ciata é que pelo jeito ele não vai ver. Será que ela está rindo dele, pedindo perdão aos deuses do samba por aqueles músicos não saberem o que estão fazendo, por não conseguirem vê-la ali resistindo a tudo, dando esperança a quem passa.. ? .. ou estará triste em ver a criação de seu terreiro tão profanada, cantada pra defender os interesses da casa grande ainda por cima numa manifestação fake?

Não vi como era a banda, mas fiquei pensando se são cegos que não querem ver ou apenas não conseguem. Por ignorância, preguiça ou desinteresse concreto pela trajetória da música que eles estão ali usando de uma forma tão contrária à sua história.

E a tia Ciata só olhando. A força que ela representa ali, o símbolo da invenção e prática prazerosa do samba, uma mulher, como a nossa presidenta eleita, uma mulher como tantas que estão agora lutando pela democracia, contra essa direita machista, misógina, uma mulher como as que levaram flores pra presidenta, como as que foram detidas por se manifestarem contra o golpe no voo com deputados golpistas.

Será que ela está pensando no quanto o samba foi proibido, por ser coisa de ‘preto, pobre, vagabundo’ ? Ou lembrando do sucesso dos Oito Batutas em Paris, que não podiam tocar nos cinemas do Rio porque eram pretos na maioria? Vendo ali de cima o quanto demoramos pra ver que o Brasil é, sim um país racista, e que ao menos nesses últimos anos de governo (mais) popular avançamos – com muito ainda a avançar – na direção de um país mais justo? E que todas essas conquistas estão a ponto de descer pelo ralo pra ter que começar tudo de novo?

Ah, tia Ciata . .. . pelo menos te vi ali.  Porque o Brasil criou o samba, e vai conseguir sair dessa ! !

 

*foto do banner na av. Paulista em SP, em frente ao prédio da Fiesp, homenageando tia Ciata.